1. — O fato seguinte, publicado no Tour du monde, páginas 74 e seguintes, é tirado dos Promenades dans la Tripolitaine, pelo Sr. barão de Krafft.
“Muitas vezes tenho como guia e companheiro de passeio em minhas excursões fora da cidade, o cavas-bachi (chefe dos janízaros) † do consulado da França, que o cônsul geral teve a gentileza de pôr à minha disposição. É um magnífico negro de Ouadaï, † de seis pés de altura e que, a despeito de sua barba grisalha, conservou toda a atividade e toda a energia da mocidade. O alcaide Hassan não é um homem comum: ao tempo dos Caramanlys, governou a tribo dos Ouerchéfâna durante dezoito anos, e ninguém melhor que ele soube manter nas rédeas esta horda turbulenta. Valente até a temeridade, sempre defendeu os interesses de seus administrados contra as tribos vizinhas e, se necessário, contra o próprio governo; mas, ao mesmo tempo, os seus não mais podiam entregar-se aos seus caprichos e não brincavam com a severidade do alcaide Hassan. Para ele, a vida de um homem era apenas mais preciosa que a de um carneiro, e certamente ficaria muito embaraçado se lhe perguntassem o número exato de cabeças que ele tinha feito cair com sua mão, tanto a sua consciência está tranquila a esse respeito. Excelente homem, aliás, inteiramente devotado ao consulado, ao qual serve há dez anos.
“Numa de nossas primeiras saídas, vi um grupo de cinco ou seis mulheres aproximarem-se dele com ar súplice. Duas delas tinham nos braços pobres criancinhas de peito, cujos rostos, cabeças e pescoços estavam cobertos por uma placa dartrosa n de crostas purulentas. Era horrível e desagradável à vista.
“– Nosso pai, disseram as mães desoladas ao alcaide Hassan, é o profeta de Deus que te trás perto de nossa casa, porque queríamos ir à cidade para te encontrar e há bem dez dias que esperávamos a ocasião. O djardoun (pequeno lagarto branco muito inofensivo) passou sobre o nosso seio e envenenou o nosso leite; vê o estado de teus filhos e cura-os para que Deus te abençoe.
“– Então és médico? perguntei ao meu companheiro.
“– Não, respondeu ele, mas tenho a bênção do sangue nas mãos, e quem quer que a tenha, como eu, pode curar esta doença. É um dom natural de todo homem cujo braço cortou algumas cabeças. — Vamos, mulheres, dai o que é preciso.
“E logo uma das mães apresenta ao doutor uma galinha branca, sete ovos e três moedas de vinte paras; depois se agacha aos seus pés, erguendo o pequeno paciente acima de sua cabeça. Hassan tira solenemente da cintura seu isqueiro e sua pedra de fogo, como se quisesse acender o cachimbo. Bismillah! (em nome de Deus!) diz ele e se põe a fazer saltar do sílex numerosas fagulhas sobre a criança doente, enquanto recitava o sourat-el-fatéba, o primeiro capítulo do Alcorão.
“Terminada a operação, chegou a vez da outra criança, mediante a mesma oferenda; contentes, e depois de terem beijado respeitosamente a mão que acabava de restituir a saúde aos seus filhos, as mulheres partiram.
“Parece que o meu rosto denunciava a minha incredulidade, porque o alcaide Hassan, reunindo os honorários de sua cura maravilhosa, gritou às clientes: “Não deixeis de vir em sete dias me apresentar vossos filhos na skifa do consulado.” (A skifa é o vestíbulo externo, a sala de espera nas grandes casas).
“Com efeito, uma semana mais tarde, os pequeninos me foram mostrados; um estava completamente curado, o outro tinha apenas algumas cicatrizes de aparência muito satisfatória, indicando uma cura muito próxima. Fiquei estupefato, mas não convencido. Contudo, mais de vinte experiências semelhantes depois me forçaram a crer na incrível virtude das mãos abençoadas pelo sangue.”
2. — Há criaturas que nem os fatos mais patentes podem convencer; todavia, é preciso convir que, neste caso, é permitido logicamente não acreditar na eficácia da bênção do sangue, obtida sobretudo em tais condições, nem na das faíscas do isqueiro. Entretanto, não deixa de existir o fato material da cura; se não tem esta causa, deve ter outra. Se vinte experiências semelhantes, do conhecimento do narrador, vieram confirmá-lo, essa causa não pode ser fortuita e deve provir de uma lei. Ora, esta lei não é senão a faculdade curadora de que aquele homem é dotado. Na sua ignorância do princípio, ele atribuía a faculdade ao que chamava a bênção do sangue, crença em relação com os costumes do país, onde a vida de um homem nada vale. O isqueiro e as outras fórmulas são acessórios que só têm valor na sua imaginação e que servem, sem dúvida, pela importância a elas ligadas, para lhe dar mais confiança em si mesmo e, conseguintemente, para aumentar o seu poder fluídico.
3. — Este fato levanta naturalmente uma questão de princípio, relativa ao dom da faculdade de curar, à qual responde a comunicação seguinte, dada a respeito.
(Sociedade de Paris, †
23 de fevereiro de 1867. — Médium: Sr. Desliens.)
Por vezes as pessoas se admiram, com aparente razão, quando encontram em indivíduos indignos, faculdades notavelmente desenvolvidas, e que deveriam ser, de preferência, atributo de homens virtuosos e isentos de preconceitos; e, contudo, a história dos séculos passados apresenta, quase que a cada página, exemplos de mediunidades notáveis, possuídas por Espíritos inferiores e impuros, por fanáticos sem raciocínio! Qual pode ser o motivo de tal anomalia?
Entretanto, aí nada há que possa causar admiração; um estudo um pouco sério e refletido do problema dará a sua chave.
Quando fenômenos extraordinários, pertencentes à ordem extracorporal, são produzidos, realmente o que acontece? — É que individualidades encarnadas servem de órgãos de transmissão à manifestação. Elas são instrumentos movidos por uma vontade exterior. Ora, demandariam a um simples instrumento o que se exigiria do artista que o faz vibrar?… Se é evidente que um bom piano é preferível a um defeituoso, não é menos certo que, num como no outro, se distinguirá o toque do artista do de um principiante. — Se, pois, o Espírito que intervém na cura encontra um bom instrumento, dele se servirá de bom grado; senão empregará o que lhe oferecerem, por mais defeituoso que seja.
Também é preciso considerar, no exercício da faculdade mediúnica, e em particular no exercício da mediunidade curadora, que podem apresentar-se dois casos bem distintos: ou o médium pode ser curador por sua própria iniciativa, ou não passa de um agente, mais ou menos passivo, de um motor excepcional.
No primeiro caso, só poderá agir se suas virtudes e sua força moral lho permitirem. Será um exemplo na sua conduta, privada ou pública, um modelo, um missionário vindo para servir de guia ou de sinal de ligação aos homens de boa vontade! O Cristo é a personificação suprema do curador.
Quanto àquele que é apenas um médium, sendo instrumento, pode ser mais ou menos defeituoso, e os atos que se operam por seu intermédio de modo algum o impedem de ser imperfeito, egoísta, orgulhoso ou fanático. Membro da grande família humana, da mesma maneira que a generalidade, participa de todas as suas fraquezas.
Lembrai-vos destas palavras de Jesus: “Não são os que gozam de saúde que precisam de médico.” ( † ) Há que se ver, então, um sinal da vontade da Providência nessas faculdades que se desenvolvem em meios e em pessoas imperfeitas. É um meio de lhes dar a fé que, mais cedo ou mais tarde, os conduzirá ao bem; se não for hoje, será amanhã; são sementes que não estão perdidas, porque vós, espíritas, sabeis que nada se perde para o Espírito.
Em naturezas moralmente e fisicamente mais rudes, não é raro encontrar faculdades transcendentes, porque essas individualidades, por terem pouca ou nenhuma vontade pessoal, limitam-se a deixar agir a influência que as dirige. Poder-se-ia dizer que agem por instinto, ao passo que uma inteligência mais desenvolvida, querendo se dar conta da causa que a põe em movimento, por vezes se coloca em condições que não permitem uma realização tão fácil dos desígnios providenciais.
Por mais bizarros e inexplicáveis que sejam os efeitos que se produzem aos vossos olhos, estudai-os atentamente, antes de considerar um só como infração às leis eternas do Mestre Supremo! Não há uma só que não afirme a sua existência, a sua justiça e a sua sabedoria eternas; se a aparência disser o contrário, crede bem que será apenas uma aparência, que desaparecerá para dar lugar à realidade, com um estudo mais aprofundado das leis conhecidas e o conhecimento daquelas cuja descoberta está reservada ao futuro.
Clélie Duplantier. n
[1]
[v. Clélie
Duplantier.]