O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão.
Doutrina espírita - 1ª parte.

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Revista espírita — Ano III — Março de 1860.

(Idioma francês)

Um médium curador.

Senhorita Désirée Godu, de Hennebon (Morbihan).  † 

(Sumário)


1. — Pedimos aos nossos leitores que se reportem ao artigo do mês passado sobre os médiuns especiais; melhor compreenderão os ensinamentos que vamos dar sobre a Srta. Désirée Godu, cuja faculdade oferece um caráter da mais notável especialidade. Há cerca de oito anos, ela passou sucessivamente por todas as fases da mediunidade; a princípio, médium de efeitos físicos muito poderosa, tornou-se, sucessivamente, médium vidente, audiente, falante, escrevente e, finalmente, todas as suas faculdades se concentraram na cura de doentes, que parece ser a sua missão, missão que desempenha com um devotamento e uma abnegação sem limites. Deixemos falar a testemunha ocular, o Sr. Pierre, professor em Lorient,  †  que nos transmite esses detalhes em resposta às perguntas que lhe dirigimos:

“A Srta. Désirée Godu, jovem de vinte e cinco anos, pertence a uma família muito distinta, respeitável e respeitada de Lorient; seu pai é um antigo militar, cavaleiro da Legião de Honra, e sua mãe, mulher paciente e laboriosa, ajuda a filha o quanto pode em sua penosa, mas,sublime missão. Há mais ou menos seis anos que essa família patriarcal dá esmolas de remédios prescritos e, frequentemente, daquilo que é necessário aos curativos, tanto aos ricos quanto aos pobres que a procuram. Suas relações com os Espíritos começaram no tempo das mesas girantes; então ela residia em Lorient e, durante, meses, não se falava senão das maravilhas operadas pela Srta. Godu com as mesas, sempre complacentes e dóceis sob suas mãos. Era um privilégio ser admitido às sessões de mesa em sua casa e lá não entrava quem quisesse. Simples e modesta, não buscava pôr-se em evidência. Entretanto, como bem podeis imaginar, a maledicência não a poupou.

“O próprio Cristo foi injuriado, embora só fizesse e ensinasse o bem. É de admirar que ainda se encontrem fariseus, quando ainda há homens que em nada creem? É a sina de todos quantos mostram uma superioridade qualquer serem alvo dos ataques da mediocridade invejosa e ciumenta. Nada lhes custa para derrubar aquele que ergue a cabeça acima do vulgo, nem mesmo o veneno da calúnia; o hipócrita desmascarado jamais perdoa. Mas Deus é justo e quanto mais maltratado for o homem de bem, tanto mais gloriosa será a sua reabilitação e mais humilhante a vergonha de seus inimigos: a posteridade o vingará.

“Aguardando sua verdadeira missão que, conforme se diz, deve começar dentro de dois anos, o Espírito que a guia propôs-lhe a de curar todos os tipos de doenças, o que ela aceitou. Para comunicar-se, ele agora se serve de seus órgãos, muitas vezes à sua revelia, em vez das batidas insípidas das mesas. Quando é o Espírito que fala, o timbre de sua voz já não é o mesmo e os seus lábios não se movem.

“A Srta. Godu recebeu apenas uma instrução comum, mas a parte principal de sua educação não devia ser obra dos homens. Quando consentiu em ser médium curador, o Espírito procedeu metodicamente para a sua instrução, sem que ela não visse outra coisa além de mãos. Uma misteriosa personagem lhe punha sob os olhos livros, gravuras ou desenhos, e lhe explicava todo o funcionamento dos órgãos do corpo humano, as propriedades das plantas, os efeitos da eletricidade, etc. Ela não é sonâmbula; ninguém a adormece. É completamente desperta que penetra os doentes com o olhar. O Espírito lhe indica os remédios, que ela geralmente prepara e aplica, cuidando e pensando as mais repugnantes feridas com a dedicação de uma irmã de caridade. Começaram por lhe dar a composição de certos unguentos  †  que curavam em poucos dias os panarícios e as feridas de pequena gravidade, a fim de lentamente habituá-la a ver, sem muita repulsa, todas as horrendas e repugnantes misérias que deviam aparecer aos seus olhos, pondo a finura e a delicadeza de seus sentidos às mais rudes provas. Não imaginemos nela encontrar um ser sofredor, doentio e fraco; desfruta do mens sana in corpore sano em toda a sua plenitude; longe de cuidar dos doentes por meio de um auxiliar, em tudo ela põe a própria mão, dando conta de tudo, graças à sua robusta constituição. Sabe inspirar aos doentes uma confiança sem limites, acha no coração consolações para todas as dores, tendo à mão remédios para todos os males. É de um caráter naturalmente alegre e jovial. Sua alegria é contagiante como a fé que a anima e atua instantaneamente sobre os doentes. Vi muitos se retirarem com os olhos cheios de lágrimas, doces lágrimas de admiração, de reconhecimento e de alegria. Todas as quintas-feiras, dia de feira, e domingos, das seis horas da manhã até cinco ou seis horas da tarde, a casa não se esvazia. Para ela, trabalhar é orar, e disso se desincumbe com consciência. Antes de ter de tratar os doentes passava dias inteiros confeccionando roupas para os pobres e enxovais para os recém-nascidos, empregando os meios mais engenhosos para que os presentes chegassem ao destino anonimamente, de sorte que a mão esquerda sempre ignorasse o que dava a direita. Possui grande número de certificados autênticos, concedidos por eclesiásticos, autoridades e pessoas notáveis, atestando curas que, em outros tempos, teriam sido consideradas miraculosas.”


2. — Sabemos, por pessoas dignas de fé, que não há o menor exagero no relato que acabamos de transcrever e temos a satisfação de poder assinalar o digno emprego que a Srta. Godu faz da excepcional faculdade de que foi dotada. Esperamos que estes elogios, que temos o prazer de reproduzir no interesse da Humanidade, não alterem sua modéstia, que dobra o valor do bem, e que ela não escute as sugestões do espírito do orgulho. O orgulho é o escolho de um grande número de médiuns e vimos muitos cujas faculdades transcendentes se aniquilaram ou perverteram, desde que deram ouvidos a este demônio tentador. As melhores intenções não dão garantia contra os embustes e é precisamente contra os bons que dirige as suas baterias, pois se satisfaz em fazê-los sucumbir e mostrar que ele é o mais forte; insinua-se no coração com tanta habilidade que muitas vezes o enche sem que o suspeite. Assim, o orgulho é o último defeito que confessamos a nós mesmos, semelhante a essas moléstias mortais que se tem em estado latente e sobre cuja gravidade o doente se ilude até o último momento. Eis por que é tão difícil erradicá-lo.

A partir do momento que um médium desfrute de uma faculdade, por menos notável que seja, é procurado, elogiado, adulado. Para ele isso é uma terrível pedra de toque, pois acaba se julgando indispensável, se não for essencialmente simples e modesto. Infeliz dele, sobretudo se julgar que somente ele poderá entrar em contato com os bons Espíritos. Custa-lhe reconhecer que foi enganado e, muitas vezes, escreve ou ouve sua própria condenação, sua própria censura, sem acreditar que a ele seja dirigida. Ora, é precisamente essa cegueira que o aprisiona. Os Espíritos enganadores se aproveitam para o fascinar, o dominar, o subjugar cada vez mais, a ponto de lhe fazerem tomar por verdades as coisas mais falsas; é assim que nele se perde o dom precioso, que não havia recebido de Deus senão para se tornar útil aos semelhantes, já que os bons Espíritos sempre se afastam daqueles que preferem escutar os maus. Aquele a quem a Providência destina a ser posto em evidência o será pela força das coisas, e os Espíritos bem saberão tirá-lo da obscuridade, se isso for útil, ao passo que, muitas vezes, quanta decepção para quem é atormentado pela necessidade de fazer falar de si! O que sabemos do caráter da Srta. Godu dá-nos a firme confiança de que ela se encontra acima dessas pequenas fraquezas e, assim, jamais comprometerá, como tantos outros, a nobre missão que recebeu.


[Revista de abril de 1860.]

3 CARTAS DO DR. MORHÉRY SOBRE A SRTA. DÉSIRÉE GODU.


Falamos sobre a notável faculdade da Srta. Désirée Godu, como médium curador, e poderíamos ter citado atestados autênticos que temos sob os olhos. Mas eis um testemunho cujo alcance ninguém contestará. Não se trata de um desses certificados liberados um tanto levianamente, mas do resultado de observações sérias de um homem de saber, eminentemente competente para apreciar as coisas sob o duplo ponto de vista da ciência e do Espiritismo. O Dr. Morhéry nos envia as duas cartas seguintes, cuja reprodução por certo nossos leitores agradecerão:


“Plessis-Boudet, perto de Loudéac  †  (Côtes-du-Nord).


“Senhor Allan Kardec,

“Embora sobrecarregado de ocupações neste momento, como membro correspondente da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, devo informar-vos de um acontecimento para mim inesperado e que, sem dúvida, interessa a todos os nossos colegas.

“Nos últimos números de vossa Revista elogiastes a Srta. Désirée Godu, de Hennebon. Dissestes que depois de ter sido médium vidente, audiente e escrevente, esta senhorita se havia tornado, desde alguns anos, médium curador. Foi nesta última qualidade que ela se dirigiu a mim, reclamando meu concurso como doutor em Medicina, para provar a eficácia de sua medicação, que poderíamos chamar espírita. A princípio pensei que as ameaças que lhe eram feitas e os obstáculos interpostos à sua prática médica, sem diploma, fossem a única causa de sua determinação; mas ela me disse que o Espírito que a dirige há seis anos havia aconselhado a medida como necessária, do ponto de vista da Doutrina Espírita. Seja como for, julguei ser de meu dever e do interesse da Humanidade aceitar sua generosa proposta, mas duvidava que ela a realizasse. Sem a conhecer, nem jamais tê-la visto, tinha sabido que essa piedosa jovem não havia querido separar-se de sua família senão numa circunstância excepcional, para cumprir uma missão não menos importante, na idade de dezessete anos. Fiquei, pois, agradavelmente surpreendido ao vê-la chegar em minha casa, conduzida por sua mãe, que deixou no dia seguinte com profunda mágoa; mas essa mágoa era temperada pela coragem da resignação. Há dez dias a Srta. Godu está no seio de minha família, da qual constitui a alegria, malgrado sua enervante ocupação.

“Desde sua chegada, já constatei setenta e cinco casos de observações de doenças diversas, para a maioria das quais os recursos da Medicina haviam falhado. Temos amauroses,  †  oftalmias graves, paralisias antigas e rebeldes a todo tratamento, escrofulosos, herpéticos, cataratas e cânceres avançados. Todos os casos são numerados, a natureza da moléstia por mim constatada, os curativos mencionados, e tudo é ordenado como numa sala clinica destinada a observações.

“Ainda não há tempo suficiente para que eu me possa pronunciar de maneira peremptória sobre as curas operadas pela medicação da Srta. Godu. Mas, desde hoje, posso manifestar minha surpresa pelos resultados revulsivos que ela obtém pela aplicação de seus unguentos, cujos efeitos variam ao infinito, por uma causa que eu não poderia explicar dentro das regras ordinárias da Ciência. Também vi com prazer que ela cortava as febres sem nenhuma preparação de quinina ou de seus extratos, por meio de simples infusões de flores ou de folhas de diversas plantas.

“Acompanho com vivo interesse o tratamento de um câncer bastante avançado. Esse câncer, diagnosticado e tratado sem sucesso, como sempre, por vários colegas, é objeto da maior preocupação da Srta. Godu. Não são uma nem duas vezes que ela o pensa, mas a todas as horas. Desejo sinceramente que seus esforços sejam coroados de sucesso e que cure este indigente, que trata com zelo acima de qualquer elogio. Se o conseguir, pode-se naturalmente esperar que logrará outros e, neste caso, prestará um imenso serviço à Humanidade, curando essa terrível e atroz moléstia.

“Sei que alguns confrades censurarão e sorrirão da esperança em que me embalo. Mas que me importa, desde que essa esperança se realize! Já me fazem reprimendas por prestar concurso a uma pessoa cuja intenção ninguém contesta, mas cuja aptidão para curar é negada pela maioria, considerando-se que tal aptidão não lhe foi dada pela Faculdade.

“A isto responderei: não foi a Faculdade que descobriu a vacina, mas simples pastores; não foi a Faculdade que descobriu a cortiça  †  do Peru, mas os indígenas daquele país. A Faculdade constata os fatos; agrupa-os e classifica-os para formar a preciosa base do ensino, mas não os produz exclusivamente. Alguns tolos – infelizmente há muitos por aqui, como em toda parte – se julgam espirituosos por qualificarem a Srta. Godu de feiticeira. Certamente é uma feiticeira amável e bastante útil, pois não inspira nenhum temor de feitiçaria nem o desejo de sacrificá-la na fogueira.

“A outros, que pretendem seja ela instrumento do demônio, responderei sem rodeios: se o demônio vem à Terra curar os incuráveis, abandonados e indigentes, forçoso é concluirmos que finalmente ele se converteu, merecendo, por isso, os nossos agradecimentos: Ora, duvido muito que entre os que assim falam não haja muitos que prefiram ser curados por suas mãos, a morrerem nas mãos de médico. Recebamos, pois, o bem de onde vier e, a não ser com provas autênticas, não atribuamos o seu mérito ao diabo. É mais moral e mais racional atribuir o bem a Deus e lho agradecer; a respeito, penso que minha opinião será partilhada por vós e por todos os meus colegas.

“Aliás, que isso se torne ou não uma realidade, sempre resultará algo para a Ciência. Não sou homem de olvidar certos meios empregados, que hoje muito negligenciamos. Diz-se que a Medicina fez imensos progressos. Sim, sem dúvida, para a Ciência, mas não tanto na arte de curar. Apreendemos muito e muito esquecemos. O Espírito humano é como o oceano: não pode abarcar tudo; quando invade uma praia, deixa outra. Voltarei ao assunto e vos porei ao corrente dessa curiosa experiência. Ligo a ela a maior importância; se triunfar, será uma brilhante manifestação contra a qual será impossível lutar, porque nada detém os que sofrem e querem curar-se. Estou decidido a tudo afrontar com esse objetivo, mesmo o ridículo que tanto se teme na França.

“Aproveito a oportunidade para vos enviar minha tese inaugural. Se vos derdes ao trabalho de lê-la, compreendereis facilmente quanto eu estava disposto em admitir o Espiritismo. Esta tese foi defendida quando a Medicina havia caído no mais profundo materialismo. Era um protesto contra essa corrente que nos arrastou para a Medicina orgânica e a farmacologia mineral, de que tanto se abusou. Quanta saúde arruinada pelo uso de substâncias minerais que, em caso de insucesso, aumentam o mal e, no de melhora, muitas vezes deixam traços em nosso organismo!

“Aceitai, etc.

Morhéry.”


“20 de março de 1860.


“Senhor,

“Em minha última carta anunciei-vos que a Srta. Désirée Godu tinha vindo exercer sua faculdade curadora sob minhas vistas. Hoje venho vos trazer algumas novidades.

“Desde 25 de fevereiro, comecei minhas observações sobre um grande número de doentes, quase todos indigentes e impossibilitados de tratamento adequado. Alguns têm doenças pouco importantes. A maioria, porém, é acometida por afecções que resistiram aos meios curativos ordinários. Cataloguei, desde 25 de fevereiro, 152 casos de moléstias muito variadas. Infelizmente, em nossa região, sobretudo os doentes indigentes seguem seus caprichos e não têm paciência para se resignarem a um tratamento contínuo e metódico. Desde que experimentam melhora, julgam-se curados e nada mais fazem. É um fato muitas vezes constatado em minha clientela e que, necessariamente, deveria ocorrer com a Srta. Godu.

“Como já vos disse, nada quero prejulgar, nada afirmar, exceto os resultados constatados pela experiência. Mais tarde farei o inventário de minhas observações e constatarei as mais notáveis. Mas, desde já, posso exprimir a minha admiração por certas curas obtidas fora dos meios ordinários.

“Vi curar sem quinino três episódios de febres intermitentes, rebeldes, dos quais um havia resistido a todos os meios por mim empregados.

 “A Srta. Godu curou igualmente três panarícios e duas inflamações subaponevróticas da mão, em poucos dias. Fiquei deveras surpreendido.

“Posso também constatar a cura, ainda não radical, mas muito avançada, de um de nossos mais inteligentes trabalhadores, Pierre Le Boudec, de Saint-Hervé,  †  surdo há 18 anos; ele ficou tão maravilhado quanto eu, quando, após três dias de tratamento, pôde ouvir o canto dos pássaros e a voz de seus filhos. Vi-o esta manhã; tudo leva a crer numa cura radical dentro em pouco.

“Entre nossos doentes, o que mais atrai minha atenção neste momento é um tal Bigot, operário em Saint-Caradec,  †  acometido há dois anos e meio por um câncer do lábio inferior. O câncer chegou ao último grau; o lábio inferior está parcialmente destruído; as gengivas, as glândulas sublinguais e submaxilares estão canceromatosas; o próprio osso maxilar inferior está afetado pela moléstia. Quando se apresentou em minha casa seu estado era desesperador; suas dores eram atrozes; não dormia há seis meses; qualquer operação era impraticável, pois o mal estava muito avançado; a cura me parecia impossível e o declarei com toda franqueza à Srta. Godu, a fim de premuni-la contra uma derrota inevitável. Minha opinião não variou quanto ao prognóstico; não posso acreditar na cura de um câncer tão avançado. Entretanto, devo declarar que, desde o primeiro curativo, o doente experimenta alívio e, a partir de 25 de fevereiro, dorme bem e se alimenta; voltou-lhe a confiança; a ferida mudou de aspecto de modo visível e, se isso continuar, a despeito de minha opinião tão formal, serei obrigado a esperar uma cura. Se realizar-se será o maior fenômeno de cura que se possa constatar. É preciso esperar e ter paciência com o doente. A Srta. Godu tem com ele um cuidado todo especial; por vezes tem feito curativos de meia em meia hora. Esse indigente é o seu favorito.

“Quanto a outras coisas, nada tenho a dizer. Poderia edificar-vos sobre os boatos, mexericos e alusões à feitiçaria; mas como a tolice é inerente à Humanidade, não me dou ao trabalho de tentar erradicá-la.

“Aceitai, etc.

Morhéry.”


Observação. – Como se pode ficar convencido pelas duas cartas acima, o Dr. Morhéry não se deixa fascinar pelo entusiasmo; observa as coisas friamente, como homem esclarecido que não se permite ilusões; demonstra inteira boa-fé e, pondo de lado o amor-próprio do médico, não teme confessar que a Natureza pode prescindir dele, inspirando a uma jovem sem instrução os meios de curar que ele não encontrou sequer em sua Faculdade, nem em seu próprio cérebro, não se julgando humilhado por isso. Seus conhecimentos de Espiritismo mostram-lhe que a coisa é possível, sem que, por isso, haja derrogação das leis da Natureza; ele a compreende, desde que essa notável faculdade é para ele um simples fenômeno, mais desenvolvido na Srta. Godu que em outros. Pode-se dizer que essa jovem representa, para a arte de curar, o que Joana d’Arc representava para a arte militar. O Dr. Morhéry, esclarecido sobre os dois pontos essenciais – o Espiritismo como fonte e a Medicina ordinária como controle – pondo de lado o amor-próprio e qualquer sentimento pessoal, encontra-se na melhor posição para julgar imparcialmente, e nós cumprimentamos a Srta. Godu pela resolução tomada, de colocar-se sob seu patrocínio. Sem dúvida os leitores nos serão gratos por mantê-los ao corrente das observações que serão feitas ulteriormente.


[Revista de maio de 1860.]

4 CORRESPONDÊNCIA.


Carta do Dr. Morhéry sobre diversas curas obtidas pela medicação da senhorita Désirée Godu:


Plessis-Doudet, perto de Loudéac,  †  Côtes-du-Nord, 25 de abril de 1860.


Senhor Allan Kardec,

Venho hoje me desobrigar da promessa feita de vos assinalar os casos de cura que obtive com o concurso da Srta. Godu. Como havereis de compreender, não enumerarei todos, pois seria muito longo. Limito-me a fazer uma escolha, não em virtude da gravidade, mas da variedade das moléstias. Não quis repetir os mesmos casos nem mencionar curas de pouca importância.

Vede, senhor, que a Srta. Godu não perdeu tempo desde que se encontra em Plessis-Boudet. Já visitamos mais de duzentos doentes e tivemos a satisfação de curar quase todos os que tiveram a paciência de seguir as prescrições. Não vos falo dos nossos cancerosos, eles estão bem encaminhados; mas esperarei resultados positivos antes de me pronunciar. Temos ainda grande número de doentes em tratamento; escolhemos, de preferência, os que são considerados incuráveis. Dentro de pouco tempo espero ter novos casos de cura a vos indicar. São principalmente as afecções reumatismais, as paralisias, as ciáticas, as úlceras, os distúrbios ósseos e as chagas de qualquer natureza que o sistema de tratamento parece dar melhores resultados.

Posso assegurar-vos, senhor, que aprendi muitas coisas úteis que, antes do meu contato, essa senhorita ignorava. Cada dia ela me ensina algo de novo, tanto para o tratamento quanto para o diagnóstico. Em relação ao prognóstico, ignoro como pode fixá-lo; todavia, ela não se engana. Com a ciência ordinária não se pode explicar uma tal penetração, mas vós, senhor, a compreendeis facilmente.

Termino declarando que certifico como verdadeiras e sinceras todas as observações que se seguem, com a minha assinatura.

Aceitai, etc.

Morhéry, doutor em Medicina.


Observação, nº 5 (23 de fevereiro de 1860). François Langle, trabalhador jornaleiro. Diagnóstico: febre terçã há seis meses. A febre tinha resistido ao sulfato de quinina, por mim administrado várias vezes ao doente; foi curado em cinco dias de tratamento com simples infusões de plantas diversas, e o doente passa melhor do que nunca. Poderia citar dez curas semelhantes.

Observação, nº 9 (24 de fevereiro de 1860). Senhora R…, de Loudéac, 32 anos de idade. Diagnóstico: inflamação e intumescimento crônico das amígdalas; cefalalgia violenta; dores na coluna vertebral; abatimento geral; ausência de apetite. O mal começou por arrepios e surdez e já dura dois anos. – Prognóstico: caso grave e difícil de curar, o mal tem resistido aos melhores tratamentos aplicados. Hoje a doente está curada; prossegue o tratamento apenas para evitar uma recaída.

Observação, nº 13 (25 de fevereiro de 1860). Pierre Gaubichais, do vilarejo de Ventou-Lamotte,  †  23 anos. Diagnóstico: inflamação subaponevrótica no dorso e na palma da mão. – Prognóstico: caso grave, mas não incurável. A cura foi obtida em menos de quinze dias. Temos quatro ou cinco casos semelhantes.

Observação, nº 18 (26 de fevereiro de 1860). François R…, de Loudéac, 27 anos. Diagnóstico: tumor branco cicatrizado no joelho esquerdo; abscesso fistuloso na parte posterior da coxa, acima da articulação. O mal existe desde os dez anos. – Prognóstico: caso muito grave e incurável, resistiu aos melhores tratamentos instituídos durante seis anos. O doente foi pensado com unguentos preparados pela Srta. Godu e tomou infusões de plantas diversas. Hoje se pode considerá-lo curado.

Observação, nº 23 (25 de fevereiro de 1860). Jeanne Gloux, operária em Tierné-Loudéac. Diagnóstico: panarício muito intenso há dez dias. A doente foi curada radicalmente em quinze dias apenas com os unguentos da Srta. Godu. As dores desapareceram a partir do segundo curativo. Temos três curas semelhantes.

Observação, nº 12 (25 de fevereiro de 1860). Vincent Gourdel, tecelão em Lamotte, 32 anos. Diagnóstico: oftalmia aguda, consequente a uma erisipela intensa. Injeção inflamatória da conjuntiva e grande belida n manifestando-se na córnea transparente do olho esquerdo; estado inflamatório geral. – Prognóstico: afecção grave e muito intensa. É de temer-se que o olho se perca em dez dias. – Tratamento: aplicação de unguentos sobre o olho doente. Hoje a oftalmia está curada; a belida desapareceu, mas o tratamento continua para combater a erisipela, que parece ser de natureza periódica e, talvez, dartrosa. n

Observação, nº 31 (27 de fevereiro de 1860). Marie-Louise Rivière, jornaleira em Lamotte, 24 anos. Diagnóstico: reumatismo antigo na mão direita, com debilidade completa e paralisia das falanges; impossibilidade de trabalhar. Causa desconhecida. – Prognóstico: cura muito difícil, se não impossível. Curada em vinte dias de tratamento.

Observação, nº 34 (28 de fevereiro de 1860). Jean-Marie Le Berre, 19 anos, indigente em Lamotte. Diagnóstico: cefalalgia violenta, insônia, hemorragias frequentes pelas fossas nasais, desvio para dentro do joelho direito e para fora da mesma perna. O doente realmente está estropiado. – Prognóstico: incurável. – Tratamento: tópico extrativo e unguentos da Srta. Godu. Hoje o membro se endireitou e a cura é mais ou menos completa; entretanto, continua-se o tratamento, por precaução.

Observação, nº 50 (28 de fevereiro de 1860). Marie Nogret, 23 anos, de Lamotte. Diagnóstico: Inflamação da pleura e do diafragma, intumescimento e inflamação das amígdalas e da úvula, palpitações, tontura, sufocações. – Prognóstico: embora a paciente seja forte, seu estado é grave; não pode dar dois passos. – Tratamento: infusões de plantas diversas. Melhor desde o dia seguinte e cura radical em oito dias.

10º Observação, nº 109 (12 de março de 1860). Pierre Le Boudu, comuna de Saint-Hervé.  †  Diagnóstico: surdez desde os dezoito anos, consequente a uma febre tifoide. – Prognóstico: incurável e rebelde a todo tratamento. – Tratamento: injeções e usos de infusões de plantas diversas, preparadas pela Srta. Godu. Hoje o doente ouve o movimento de seu relógio; o barulho o incomoda e atordoa, em razão da sensibilidade do ouvido.

11º Observação, nº 132 (18 de março de 1860). Marie Le Maux, dez anos, residente em Grâces.  †  Diagnóstico: reumatismo com rigidez das articulações, particularmente em ambos os joelhos; a criança só anda com muletas. – Prognóstico: caso muito grave, se não incurável. – Tratamento: tópico extrativo, e curativos com unguentos da Srta. Godu. Cura em menos de vinte dias. Hoje anda sem muletas, nem bengala.

12º Observação, nº 80 (19 de março de 1860) Hélène Lucas, nove anos, indigente em Lamotte. Diagnóstico: protrusão e intumescimento permanente da língua, que avança de 5 a 6 centímetros além dos lábios e parece estrangulada; a língua é rugosa, os dentes inferiores estão corroídos pela língua; para comer, a criança é obrigada a afastar a língua para um lado com uma mão e introduzir os alimentos na boca com a outra. Tal estado remonta à idade de dois meses e meio. – Prognóstico: caso muito grave julgado incurável. Hoje a língua retraiu-se e a doente está quase completamente curada.

Morhéry.


Notar-se-á sem dificuldades que as notícias acima não constituem esses certificados banais, solicitados pela cupidez, nos quais muitas vezes a complacência disputa com a ignorância. São observações de um profissional que, pondo de lado o amor-próprio, admite francamente a sua insuficiência em presença dos infinitos recursos da Natureza, que não lhe disse a última palavra nos bancos escolares. Reconhece que essa moça, sem instrução especial, ensinou-lhe mais do que certos livros dos homens, porque lê no próprio livro da Natureza. Como homem sensato, prefere salvar um doente por meios aparentemente irregulares, a deixá-lo morrer segundo as regras; e não se julga humilhado.

Comprometemo-nos a fazer um estudo sério no próximo artigo, do ponto de vista teórico, sobre essa faculdade intuitiva, mais frequente do que se pensa, mas que é mais ou menos desenvolvida, através da qual a ciência poderá haurir preciosas luzes, quando os homens não se julgarem mais sábios que o Senhor do Universo. Através de um homem muito esclarecido, natural do Hindustão  †  e de origem indiana, obtivemos preciosos ensinamentos sobre as práticas da Medicina intuitiva pelos nativos, e que vêm acrescentar à teoria o testemunho de fatos autênticos, bem observados.


[Revista de junho de 1860.]

5 MEDICINA INTUITIVA.


Plessis-Boudet, 23 de maio de 1860.

Senhor,


Em minha última carta dei-vos um boletim das curas obtidas por meio da medicação da Srta. Godu. Estou sempre com a intenção de vos manter ao corrente dos fatos, mas hoje julgo mais útil falar do seu modo de tratar. É bom manter as pessoas a par disso, porque de longe vêm doentes que fazem uma ideia muito falsa desse gênero de medicação, e que se expõem a fazer uma viagem inútil ou de pura curiosidade.

A Srta. Godu não é sonâmbula. Jamais consulta a distância, nem mesmo em meu domicílio, mas apenas sob minha direção e meu controle. Quando estamos de acordo, o que ocorre quase sempre, pois agora estou em condições de apreciar sua medicação, começamos o tratamento convencionado e a Srta. Godu faz os curativos e prepara as tisanas. Numa palavra, age como enfermeira, mas enfermeira de elite, e com um zelo sem paralelo, em nossa modesta casa de saúde improvisada.

Será por um fluido depurador, de que seria dotada, que ela consegue resultados tão preciosos?

Será por sua pertinácia na aplicação dos curativos, ou pela confiança que inspira?

Será, enfim, por um sistema de medicação bem concebido e bem dirigido, que ela obtém sucesso?

Tais as três perguntas que muitas vezes me faço.

No momento não quero entrar na primeira questão, porque exige um estudo aprofundado e uma discussão científica de primeira ordem. Ela virá mais tarde.

A respeito da segunda questão, hoje posso resolver afirmativamente, uma vez que a Srta. Godu se acha nas mesmas condições que todos os médicos, enfermeiras ou operadores, que sabem levantar o moral de seus doentes e inspirar-lhes uma confiança salutar.

Quanto à terceira questão, não hesito mais em resolvê-la afirmativamente. Adquiri a convicção de que a medicação da Srta. Godu constitui todo um sistema muito metódico. Este sistema é simples em sua teoria, mas, na prática, varia ao infinito; e é na aplicação que reclama toda a atenção e toda a habilidade possíveis. O profissional mais experiente tem dificuldade em compreender, de saída, esse mecanismo e essa série de modificações incessantes, em razão do progresso ou do declínio da doença. Fica ofuscado e pouco compreende; mas, com o tempo, dá-se conta facilmente dessa medicação e dos seus efeitos.

Seria longo demais enumerar em detalhes e, currente calamo [Ao correr da pena], todo um sistema médico novo para nós, embora, por certo, muito antigo em relação à idade dos homens em nosso planeta. Eis as bases sobre as quais repousa o sistema, que raramente sai da medicina revulsiva.

Na maioria dos casos, a Srta. Godu aplica um tópico extrativo, composto de uma ou duas matérias, encontradas em toda parte, na choupana como no castelo. Esse tópico tem uma ação de tal modo enérgica que se obtêm efeitos incomparavelmente superiores a todos os nossos revulsivos conhecidos, sem excetuar o cautério atual e as moxas.  †  n

Às vezes, ela se limita à aplicação de vesicatórios,  †  quando um efeito mais enérgico não é indispensável. A habilidade consiste em proporcionar o remédio ao mal, em manter uma supuração constante e variada, e eis o que ela obtém com um unguento tão simples que não se pode classificar no número dos medicamentos. Pode ser assimilado aos ceratos  †  simples e mesmo aos cataplasmas;   †  entretanto, tal unguento produz efeitos duráveis e muito variados: aqui são sais calcários que aparecem sobre o emplastro; nos hidrópicos, é água; nas pessoas com humores, é uma supuração abundante, ora clara, ora espessa. Enfim, os efeitos de seu unguento variam ao infinito, por uma causa que ainda não apreendi e que, aliás, deve entrar no estudo da primeira questão. Isto quanto ao exterior. Mais tarde dir-vos-ei uma palavra sobre a medicação interna, que compreendo facilmente. Não se deve pensar que o mal seja tirado qual se fora um passe de mágica; como sempre, são precisos tempo e perseverança para curar radicalmente as doenças rebeldes.

Aceitai, etc.

Morhéry.


[Revista de janeiro de 1862.]

6. CARTA AO DR. MORHÉRY, A PROPÓSITO DA SRTA. GODU.


Nos últimos tempos, muitas pessoas têm comentado os estranhos fenômenos operados pela Srta. Godu, notadamente os que dizem respeito à produção de diamantes e de grãos preciosos por meios não menos estranhos. A propósito, o Dr. Morhéry nos escreveu uma longa carta descritiva e algumas pessoas admiraram-se de que não a tivéssemos comentado. A razão disso é que não apreciamos nenhum fato com entusiasmo, examinando friamente as coisas antes de as aceitar, pois a experiência nos tem ensinado quanto devemos desconfiar de certas ilusões. Se tivéssemos publicado sem exame todas as maravilhas que nos foram relatadas com maior ou menor boa-fé, nossa revista talvez tivesse se tornado mais divertida; devemos, porém, conservar-lhe o caráter sério que sempre teve. Quanto à nova e prodigiosa faculdade que se teria revelado na Srta. Godu, acreditamos sinceramente que a de médium curador era mais preciosa e mais útil à Humanidade e, mesmo, à propagação do Espiritismo. Contudo, nada negamos, e aos que pensam, com tal notícia, que deveríamos tomar o primeiro trem para nos certificarmos, responderemos que, se a coisa é real, não deixará de ser oficialmente constatada; que, então, haverá sempre oportunidade de comentá-la, e nosso amor-próprio não sofrerá se formos o primeiro a proclamá-la. Aliás, eis um trecho da resposta que demos ao Dr. Morhéry:

“ (…) É certo que não publiquei todos os relatórios que me enviastes sobre as curas operadas pela Srta. Godu, mas, por outro lado, disse o bastante para chamar a atenção para ela. Se falasse constantemente do caso, poderia dar a impressão de estar a serviço de interesses particulares. Aconselhava a prudência que o futuro viesse confirmar o passado. Quanto aos fenômenos que relatais na última carta, são tão estranhos que não me arriscarei a publicá-los senão quando tiver a sua confirmação de maneira irrecusável. Quanto mais anormal é um fato, tanto mais exige circunspeção. Não vos surpreendais, pois, que eu a tenha, e bastante, nesta circunstância. Aliás, é também a opinião do comitê da Sociedade, ao qual submeti a vossa carta. Decidiu ele, por unanimidade, que antes mesmo de falar do caso, conviria aguardar o seu desdobramento. Até o momento esse fato é de tal modo contrário a todas as leis naturais e, mesmo, a todas as leis conhecidas do Espiritismo, que o primeiro sentimento que provoca, mesmo entre os espíritas, é o de incredulidade. Falar dele antecipadamente e antes de poder apoia-lo com provas autênticas, seria excitar sem proveito a verve dos gracejadores de mau gosto.”


Allan Kardec.



[1] N. do T.: Mancha permanente da córnea devida a traumatismos ou ulcerações.


[2] N. do T.: Que apresenta dartro, termo genérico com o qual se designavam várias afecções cutâneas. [Dartro: s. m. (fr. e ing. dartre). 1) Termo antigo que designava diversas afecções como o eczema, a psoríase, a pitiríase, etc. 2) Atualmente, em linguagem corrente, designa as lesões cutâneas limitadas que formam placas rubras isoladas, finamente escamosas e furfuráceas. V. pitiríase (adj.: dartroso.) — Fonte: http://medicosdeportugal.saude.sapo.pt/action/10/glo_id/3587/menu/2/]


[3] N. do T.: bastonete de artemísia,  †  que, queimado em contato com a pele de certas regiões do corpo, produz efeito comparável ao da acupuntura.


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