1. — Pode a homeopatia modificar as disposições morais? Tal é a pergunta que se fazem alguns médicos homeopatas e à qual não hesitam em responder afirmativamente, apoiando-se em fatos. Levando-se em conta a sua extrema gravidade, vamos examiná-la com cuidado, de um ponto de vista que nos parece ter sido negligenciado por aqueles senhores, por mais espiritualistas e mesmo espíritas que sem dúvida o sejam, porque há pouquíssimos médicos homeopatas que não sejam uma ou outra coisa. Mas, para a compreensão de nossas conclusões, algumas explicações preliminares sobre as modificações dos órgãos cerebrais são necessárias, sobretudo para as pessoas estranhas à fisiologia.
Um princípio que a simples razão faz admitir, que a Ciência constata diariamente, é que nada há de inútil na Natureza, que, até nos mais imperceptíveis detalhes, tudo tem um fim, uma razão de ser, uma destinação. Este princípio é particularmente evidente no que respeita ao organismo dos seres vivos.
Em todos os tempos o cérebro foi considerado como o órgão da transmissão do pensamento e a sede das faculdades intelectuais e morais. Hoje é reconhecido que certas partes do cérebro têm funções especiais e são afetadas por uma ordem particular de pensamentos e de sentimentos, pelo menos no que concerne à generalidade; é assim que se colocam, instintivamente, na parte anterior, as faculdades do domínio da inteligência, e que uma fronte fortemente deprimida e estreitada, é, para todo o mundo, um sinal de inferioridade intelectual. As faculdades afetivas, os sentimentos e as paixões se acham, por isto mesmo, como tendo sua sede em outras partes do cérebro.
Ora, se se considera que os pensamentos e os sentimentos são excessivamente múltiplos, e partindo do princípio de que tudo tem sua destinação e sua utilidade, é permitido concluir que cada feixe fibroso do cérebro não só corresponde a uma faculdade geral distinta, mas que cada fibra corresponde à manifestação de uma das nuanças desta faculdade, como cada corda de um instrumento corresponde a um som particular. É uma hipótese, sem dúvida, mas que tem todos os caracteres da probabilidade, e cuja negação não infirmaria as consequências que deduziremos do princípio geral; ela nos ajudará em nossa explicação.
O pensamento é independente do organismo. Não há por que discutir aqui esta questão, nem refutar a opinião materialista, segundo a qual o pensamento é secretado pelo cérebro, como a bile o é pelo fígado, nasce e morre com esse órgão; além de suas funestas consequências morais, esta doutrina tem contra si o fato de nada explicar.
Segundo as doutrinas espiritualistas, que são as da imensa maioria dos homens, não podendo a matéria produzir o pensamento, este é um atributo do Espírito, do ser inteligente, que, quando unido ao corpo, serve-se dos órgãos especialmente destinados à sua transmissão, como se serve dos olhos para ver, dos pés para andar. Sobrevivendo o Espírito ao corpo, o pensamento também lhe sobrevive.
Segundo a Doutrina Espírita, não só o Espírito sobrevive, mas preexiste ao corpo; não é um ser novo; traz, ao nascer, as ideias, as qualidades e as imperfeições que possuía; assim se explicam as ideias, as aptidões e os pendores inatos. O pensamento é, pois, preexistente e sobrevivente ao organismo. Este ponto é capital e é por não o terem reconhecido que tantas questões ficaram insolúveis.
Estando na Natureza todas as faculdades e aptidões, o cérebro encerra os órgãos, ou, pelo menos, o germe dos órgãos necessários à manifestação de todos os pensamentos. A atividade do pensamento do Espírito sobre um ponto determinado impele ao desenvolvimento da fibra ou, se se quiser, do órgão correspondente; se uma faculdade não existir no Espírito, ou se, existindo, deve ficar em estado latente, o órgão correspondente, estando inativo, não se desenvolve ou se atrofia. Se o órgão for atrofiado congenitamente, não podendo manifestar-se a faculdade, o Espírito parece dele privado, embora de fato o possua, desde que lhe é inerente. Enfim, se o órgão, primitivamente em seu estado normal, se deteriora no curso da vida, a faculdade, de brilhante que era, vai perdendo a cor, depois se apaga, mas não se destrói; é apenas um véu que a obscurece.
Conforme os indivíduos, há faculdades, aptidões, tendências que se manifestam desde o começo da vida, enquanto outras se revelam em épocas mais tardias e produzem as mudanças de caráter e de disposições que se notam em certas pessoas. Neste último caso, geralmente não são disposições novas, mas aptidões preexistentes, que dormitam até que uma circunstância as venha estimular e despertar. Pode-se estar certo de que as disposições viciosas, que por vezes se manifestam subitamente e tardiamente, tinham seu germe preexistente nas imperfeições do Espírito, porque este, marchando sempre para o progresso, se for essencialmente bom não pode tornar-se mau, ao passo que de mau pode tornar-se bom.
O desenvolvimento ou o enfraquecimento dos órgãos cerebrais acompanha o movimento que se opera no Espírito. Essas modificações são favorecidas em todas as idades, mas, sobretudo, na juventude, pelo trabalho íntimo de renovação que se opera incessantemente no organismo, da seguinte maneira:
Como se sabe, os principais elementos do organismo são o oxigênio, o hidrogênio, o azoto e o carbono que, por suas múltiplas combinações, formam o sangue, os nervos, os músculos, os humores e as diferentes variedades de substâncias. Pela atividade das funções vitais, as moléculas orgânicas são incessantemente expelidas do corpo pela transpiração, pela exalação e por todas as secreções, de sorte que se não fossem substituídas, o corpo se reduziria e acabaria por definhar. O alimento e a aspiração incessantemente trazem novas moléculas, destinadas a substituir as que se vão, de onde se segue que, num dado tempo, todas as moléculas orgânicas são inteiramente renovadas e, numa certa idade, não existe mais uma só das que formavam o corpo em sua origem. É o caso de uma habitação, da qual se arrancassem as pedras uma a uma, substituindo-as à medida por uma nova pedra da mesma forma e tamanho, e assim por diante, até a última. Ter-se-ia sempre a mesma casa, mas formada de pedras diferentes.
Dá-se o mesmo com o corpo, cujos elementos constitutivos são, conforme os fisiologistas, totalmente renovados de sete em sete anos. As diversas partes do organismo sempre subsistem, mas os materiais são mudados. Dessas mudanças gerais ou parciais nascem as modificações que sobrevêm, com a idade, no estado sanitário de certos órgãos, as variações que sofrem os temperamentos, os gostos, os desejos que influem sobre o caráter.
Nem sempre as aquisições e as perdas estão em perfeito equilíbrio. Se as aquisições superam as perdas, o corpo cresce, aumenta; se se dá o contrário, o corpo diminui. Assim se explicam o crescimento, a obesidade, o emagrecimento, a decrepitude.
A mesma causa produz a expansão ou a interrupção do desenvolvimento dos órgãos cerebrais, conforme as modificações que se operam nas preocupações habituais, nas ideias e no caráter. Se as circunstâncias e as causas que agem diretamente sobre o Espírito, provocando o exercício de uma aptidão ou de uma paixão, forem mantidas em estado de inércia, a atividade que se produz no órgão correspondente aí faz afluir o sangue e, com ele, as moléculas constituintes do órgão, que cresce e toma força em proporção desta atividade. Pela mesma razão, a inatividade da faculdade produz o enfraquecimento do órgão, do mesmo modo que uma atividade muito intensa e persistente também pode levar à sua desorganização ou enfraquecimento, por uma espécie de gasto, tal como acontece com uma corda muito esticada.
As aptidões do Espírito são, pois, sempre uma causa, e o estado dos órgãos um efeito. Pode suceder, entretanto, que o estado dos órgãos seja modificado por uma causa estranha ao Espírito, tal como doença acidental, influência atmosférica ou climática; então são os órgãos que reagem sobre o Espírito, não alterando as suas faculdades, mas perturbando a sua manifestação.
Um efeito semelhante pode resultar das substâncias ingeridas no estômago, como alimentos ou medicamentos. Essas substâncias aí se decompõem, e os princípios essenciais que encerram, misturados ao sangue, são levados, pela corrente da circulação, a todas as partes do corpo. É reconhecido pela experiência que os princípios ativos de certas substâncias são levados mais particularmente a tal ou qual víscera: o coração, o fígado, os pulmões, etc., e aí produzem efeitos reparadores ou deletérios, conforme sua natureza e propriedades especiais. Algumas, agindo desta maneira sobre o cérebro, podem exercer sobre o conjunto, ou sobre partes determinadas, uma ação estimulante ou estupefaciente, conforme a dose e o temperamento, por exemplo, as bebidas alcoólicas, o ópio e outras.
Nós nos estendemos um pouco sobre os detalhes que precedem, a fim de dar a compreender o princípio sobre o qual pode apoiar-se, com aparência de lógica, a teoria das modificações do estado moral por meios terapêuticos. Esse princípio é o da ação direta de uma substância sobre uma parte do organismo cerebral, tendo por função especial servir à manifestação de uma faculdade, de um sentimento ou de uma paixão, porque não pode vir ao pensamento de ninguém que tal substância possa agir sobre o Espírito.
Admitido, pois, que o princípio das faculdades esteja no Espírito, e não na matéria, suponhamos que se reconheça numa substância a propriedade de modificar as disposições morais, neutralizar uma inclinação má: isto só poderia ser por sua ação sobre o órgão correspondente a essa inclinação, ação que teria por efeito interromper o desenvolvimento desse órgão, atrofiá-lo ou paralisá-lo, se for desenvolvido. Torna-se evidente que, neste caso, não se suprime a inclinação, mas a sua manifestação, absolutamente como se ao músico se tirasse o seu instrumento.
Provavelmente são efeitos desta natureza que certos homeopatas observaram, e que os levaram a crer na possibilidade de corrigir, com o auxílio de medicamentos apropriados, vícios tais como o ciúme, o ódio, o orgulho, a cólera, etc. Uma tal doutrina, se verdadeira, seria a negação de toda responsabilidade moral, a sanção do materialismo, porque, então, a causa de nossas imperfeições estaria só na matéria; a educação moral se reduziria a um tratamento médico; o pior homem poderia tornar-se bom sem grandes esforços, e a Humanidade poderia ser regenerada com o auxílio de algumas pílulas. n Se, ao contrário, como não padece dúvida, as imperfeições forem inerentes à própria inferioridade do Espírito, não se o melhorará pela modificação de seu invólucro carnal, como não se endireitaria um corcunda, dissimulando sua deformidade sob os tecidos de suas roupas.
Contudo, não duvidamos que tais resultados sejam obtidos em alguns casos particulares, porquanto, para afirmar um fato tão grave, é preciso ter observado; mas estamos convictos de que se enganaram com a causa e o efeito. Por sua natureza etérea os medicamentos homeopáticos têm uma ação de certa forma molecular; sem dúvida podem agir, mais que outros, sobre certas partes elementares e fluídicas dos órgãos e lhes modificar a constituição íntima. Se, pois, como é racional admitir, todos os sentimentos da alma têm sua fibra cerebral correspondente para a sua manifestação, um medicamento que agisse sobre essa fibra, quer para a paralisar, quer para exaltar sua sensibilidade, paralisaria ou exaltaria, por isso mesmo, a expressão do sentimento, do qual fosse instrumento, mas o sentimento não deixaria de subsistir. O indivíduo estaria na posição de um assassino a quem se tirasse a possibilidade de cometer homicídios, cortando-lhe os braços, mas que conservasse o desejo de matar. Seria, pois, um paliativo, mas não um remédio curativo. Não se pode agir sobre o ser espiritual senão por meios espirituais; a utilidade dos meios materiais, se fosse constatado o efeito acima, talvez fosse de dominar mais facilmente o Espírito, de o tornar mais flexível, mais dócil e mais acessível às influências morais; mas nos embalaríamos em ilusões se esperássemos de uma medicação qualquer um resultado definitivo e duradouro.
Seria completamente diferente se se tratasse de ajudar a manifestação de uma faculdade existente. Suponhamos um Espírito inteligente encarnado, não tendo ao seu serviço senão um cérebro atrofiado e não podendo, por conseguinte, manifestar suas ideias: será para nós um idiota. Admitindo, o que julgamos possível à homeopatia, mais do que a qualquer outro gênero de medicação, que se possa dar mais flexibilidade e sensibilidade às fibras cerebrais, o Espírito manifestaria seu pensamento, como um mudo, ao qual se tivesse desatado a língua. Mas se o Espírito fosse idiota por si mesmo, ainda que tivesse ao seu serviço o cérebro do maior gênio, nem por isso seria menos idiota. Não podendo um medicamento qualquer agir sobre o Espírito, não lhe poderia dar o que não tem, nem tirar o que tem; mas agindo sobre o órgão da transmissão do pensamento, pode facilitar essa transmissão sem que, por isto, nada seja mudado no estado do Espírito. O que é difícil, o mais das vezes mesmo impossível no idiota de nascença, porque há interrupção completa e quase sempre geral do desenvolvimento nos órgãos, torna-se possível quando a alteração é acidental e parcial. Neste caso, não é o Espírito que se aperfeiçoa, são os meios de comunicação.
[Revista de junho.]
2.
A homeopatia no tratamento das doenças morais.
(2º artigo. — Vide o número de março de 1867.)
O artigo que publicamos no número de março sobre a ação da homeopatia nas doenças morais, nos valeu, de um dos mais ardentes partidários deste sistema e, ao mesmo tempo, um dos mais fervorosos adeptos do Espiritismo, o doutor Charles Grégory, a seguinte carta, que julgamos por bem publicar, em razão da luz que a discussão pode trazer à questão.
“Caro e venerado mestre,
“Vou tentar explicar-vos como compreendo a ação da homeopatia sobre o desenvolvimento das faculdades morais.
“Como eu, admitis que todo homem saudável possui rudimentos de todas as faculdades e de todos os órgãos cerebrais necessários à sua manifestação. Também admitis que certas faculdades vão se desenvolvendo sempre, enquanto outras, as que sem dúvida são apenas rudimentares, depois de mal terem dado alguns lampejos, parecem extinguir-se completamente. No primeiro caso, em vossa opinião, os órgãos cerebrais que dizem respeito às faculdades em pleno desenvolvimento teriam sua livre manifestação, ao passo que os rudimentares, que a maior parte das vezes se relacionam, também, com aptidões rudimentares, se atrofiam completamente com o avançar da idade, por falta de atividade vital.
“Se, pois, por meio de medicamentos apropriados, eu agir sobre os órgãos imperfeitos, se aí desenvolver um acréscimo de atividade vital, se para aí requisito uma nutrição mais poderosa, é bem claro que, aumentando o volume, eles permitirão que a faculdade rudimentar melhor se manifeste, e que, pela transmissão das ideias e dos sentimentos que tiverem colhido, pelos sentidos, no mundo exterior, imprimirão à faculdade correspondente uma influência salutar e, por sua vez, a desenvolverão, porque tudo se liga e se mantém no homem; a alma influi sobre o físico, como o corpo influi sobre a alma. Esta já é, portanto, uma primeira influência dos medicamentos através do aumento dos órgãos sobre as faculdades correspondentes da alma; uma possibilidade de o homem crescer em potencialidades e em aptidões, por meio de forças tiradas do mundo material.
“Agora, para mim não está provado de modo algum que nossas pequenas doses, chegadas a um estado de sublimação e de sutileza que ultrapassam todos os limites, de certo modo não tenham em si algo de espiritual, que por sua vez age sobre o Espírito. Nossos medicamentos, dados no estado de divisão que a arte os faz sofrer, não são mais substâncias materiais, mas, em minha opinião, forças que, necessariamente, devem agir sobre as faculdades da alma que, também elas, são forças.
“E, depois, como creio que o Espírito do homem, antes de encarnar-se na Humanidade, sobe todos os degraus da escala e passa pelo mineral, a planta e o animal e na maior parte dos tipos de cada espécie, onde preludia para seu completo desenvolvimento como ser humano, quem me diz que, dando medicamento que nem é mineral, nem planta, nem animal, mas o que poderia chamar sua essência e, de certo modo, seu espírito, não se age sobre a alma humana composta dos mesmos elementos? Porque, digam o que disserem, o espírito é bem alguma coisa e, desde que se desenvolveu e se desenvolve incessantemente, deve ter tomado seus elementos em alguma parte.
“Tudo quanto posso dizer é que não agimos sobre a alma com as nossas 200ª e 600ª diluições, materialmente, mas virtualmente e, de certo modo, espiritualmente.
“Os fatos estão aí, fatos numerosos, bem observados, e que bem poderiam demonstrar que não estou completamente errado. Para citar a mim mesmo, embora não goste muito de questões pessoais, direi que, experimentando em mim mesmo, há trinta anos, remédios homeopáticos, de certo modo criei em mim novas faculdades, sem dúvida rudimentares, mas que na minha mais exuberante juventude jamais tinha conhecido quando ignorava a homeopatia, e que hoje, aos cinquenta e dois anos, encontro bem desenvolvidas: o sentimento da cor e das formas.
“Acrescentarei ainda que, sob a influência de nossos meios, vi caracteres mudarem completamente; à leviandade sucederam a reflexão e a solidez do raciocínio; à lubricidade, a continência; à maldade, a benevolência; ao ódio, a bondade e o perdão das injúrias. Evidentemente não é coisa para alguns dias; são mesmo precisos alguns anos de cuidados, mas se chega a esses belos resultados por meios tão cômodos, que não há nenhuma dificuldade em decidir os clientes que vos são devotados, e um médico os tem sempre. Eu mesmo observei que os resultados obtidos por nossos meios eram adquiridos para sempre, ao passo que os dados pela educação, os bons conselhos, as exortações seguidas, os livros de moral quase não resistiam ante a possibilidade de satisfazer uma paixão ardente, e as tentações em relação com nossas fraquezas, antes adormecidas e entorpecidas do que curadas. Se, neste último caso, surgiam triunfos, não era sem lutas violentas, que não convinha prolongar por muito tempo.
“Eis, caro mestre, as observações que desejava submeter-vos sobre esta questão tão grave da influência da homeopatia sobre o moral humano.
“Para concluir: quer seja pelo cérebro que o medicamento age sobre as faculdades, quer aja ao mesmo tempo sobre a fibra cerebral e sobre a faculdade correspondente, não está menos demonstrado para mim, por centenas de fatos, que a ação sutil e profunda de nossas doses sobre o moral humano é bem real. Além disso, é-me demonstrado que a homeopatia deprime certas faculdades, certos sentimentos ou certas paixões muito exaltadas, para realçar outras muito enfraquecidas, e como que paralisadas, conduzindo, por isto mesmo, ao equilíbrio e à harmonia e, por conseguinte, à melhora real e ao progresso do homem em todas as suas aptidões, e facilidade de vencer-se a si mesmo.
“Não julgueis que tal resultado anule a responsabilidade humana, e que se chegue a esse progresso tão desejado sem sofrimentos e sem lutas. Não basta tomar um medicamento e dizer: “Vou vencer a minha inclinação para a cólera, o ciúme e a luxúria.” Oh! não! O remédio apropriado, uma vez introduzido no organismo, aí não traz uma modificação profunda senão ao preço de violentos sofrimentos morais e físicos e, muitas vezes, de longa, muito longa duração; sofrimentos que devem ser repetidos várias vezes, variando os medicamentos e as doses, e isto durante meses e, às vezes, anos, se se quiser chegar a resultados concludentes. É este o preço a pagar por seu melhoramento moral; é esta a prova e a expiação pelas quais tudo se paga neste mundo inferior, e vos confesso que não é coisa fácil de se corrigir, mesmo pela Homeopatia. Não sei se, pelas angústias interiores que se sofre, não se paga mais caro esse progresso do que pela modificação mais lenta, é verdade, mas sem dúvida mais suave e mais suportável da ação puramente moral de todos os dias, pela observação de si mesmo e o ardente desejo de vencer-se.
“Termino aqui. Mais tarde eu vos contarei inúmeros fatos que bem vos poderão convencer.
“Recebei, etc.”
3. — Esta carta em nada modifica a opinião que emitimos sobre a ação da Homeopatia no tratamento das doenças morais, e que, ao contrário, vem confirmar os próprios argumentos do Dr. Grégory Insistimos, pois, em dizer que, se os medicamentos homeopáticos podem ter uma ação sobre o moral, é agindo sobre os órgãos das manifestações, o que pode ter sua utilidade em certos casos, mas não sobre o Espírito; que as qualidades boas ou más e as aptidões são inerentes ao grau de adiantamento ou de inferioridade do Espírito, e que não é com um medicamento qualquer que se pode fazê-lo avançar mais depressa, nem lhe dar qualidades que não pode adquirir senão sucessivamente e pelo trabalho; que uma tal doutrina, fazendo depender as disposições morais do organismo, tira do homem toda responsabilidade, a despeito do que diz o Sr. Grégory, e o dispensa de todo trabalho sobre si mesmo para se melhorar, desde que se poderia torná-lo bom à sua revelia, administrando-lhe tal ou qual remédio; que se, com a ajuda de meios materiais, podem modificar-se os órgãos das manifestações, o que admitimos perfeitamente, esses meios não podem mudar as tendências instintivas do Espírito, do mesmo modo que, cortando a língua de um falador, não se lhe tira a vontade de falar. Um costume do Oriente vem confirmar nossa asserção por um fato material bem conhecido.
Evidentemente o estado patológico influi sobre o moral em certos aspectos, mas as disposições que têm esta fonte são acidentais e não constituem o fundo do caráter do Espírito; são estas, sobretudo, que uma medicação apropriada pode modificar. Há pessoas que só são benevolentes depois de ter jantado bem e às quais nada se deve pedir quando estão em jejum; deve-se concluir, por isto, que um bom jantar seria um remédio contra o egoísmo? Não, porque essa benevolência, provocada pela plenitude da satisfação sensual, é um efeito do próprio egoísmo; não passa de uma benevolência aparente, de um produto deste pensamento: “Agora que não mais preciso de nada, posso ocupar-me um pouco com os outros.”
Em resumo, não contestamos que certos medicamentos — e os homeopáticos mais que qualquer outros — produzem alguns dos efeitos indicados, mas contestamos enfaticamente seus resultados permanentes e, sobretudo, tão universais, como pretendem algumas pessoas. Um caso em que a Homeopatia nos parece particularmente aplicável com sucesso é o da loucura patológica, porque aqui a desordem moral é consequência da desordem física, e que agora é constatado pela observação dos fenômenos espíritas, que o Espírito não é louco. Não há por que o modificar, mas lhe dar os meios de manifestar-se livremente. A ação da Homeopatia pode ser aqui tanto mais eficaz, quanto age principalmente pela natureza espiritualizada de seus medicamentos, sobre o perispírito, que apresenta papel preponderante nesta afecção.
Teríamos mais de uma objeção a fazer sobre algumas das proposições contidas nesta carta, mas isto nos levaria muito longe. Contentamo-nos, pois, em considerar as duas opiniões. Como, em tudo, os fatos são mais concludentes que as teorias, e são eles, em última análise, que confirmam ou destroem as últimas, desejamos ardentemente que o Dr. Grégory publique um tratado especial prático de Homeopatia aplicado ao tratamento das doenças morais, a fim de que a experiência possa generalizar-se e decidir a questão. Mais que qualquer outro, ele nos parece capaz de fazer esse trabalho ex-professo.
[Vide: O sentido espiritual, 2ª carta do Dr. Grégory a Allan Kardec.]
[1] N. do T.: É perfeitamente lógico este raciocínio de Allan Kardec, considerando-se o estado em que se achava a ciência médica do seu tempo. Então não se dispunham dos avanços conquistados no campo da farmacologia, da bioquímica, da genética, da biologia e da engenharia moleculares, que permitiram a síntese de medicamentos de real valor, hoje usados com sucesso nos distúrbios mentais. Embora não curem a doença em si, cujo substrato está no Espírito imortal, é inegável que trazem certo alívio às partes lesadas, ou supostas como tais, alcançando, quem sabe, o próprio perispírito, e propiciando uma trégua ao doente, seguida de visível melhora, a fim de que a sua reforma moral, esta sim, e os recursos da prece e da fluidoterapia possam operar a cura definitiva, na atual ou no curso de outras existências.