1. — Um dos nossos colegas transmitiu à Sociedade o extrato seguinte de um relatório lido na Academia de Medicina † pelo Dr. H. Bouley [Inspector-Geral das escolas de veterinária], sobre os sintomas da raiva no cão.
“No período inicial da raiva e quando a doença está completamente declarada,
há, nas intermitências, uma espécie de delírio no cão, que se pode chamar
delírio rábico, do qual Youatt [William
Youatt (Youatt, William, 1776-1847) | The Online Books Page;] foi
o primeiro a falar e a descrever perfeitamente.
“Esse delírio caracteriza-se por movimentos estranhos, que denotam que o animal doente vê objetos e ouve barulhos, que só existem naquilo que se tem pleno direito de chamar a sua imaginação. Com efeito, ora o animal se mantém imóvel, atento, como se estivesse à espreita; depois, de repente, atira-se e morde no ar, como faz o cão sadio que quer apanhar uma mosca no voo. Outras vezes, furioso e uivando, atira-se contra a parede, como se tivesse ouvido, do outro lado, ruídos ameaçadores.
“Raciocinando por analogia, é-se autorizado a admitir que são sinais de verdadeiras alucinações. Entretanto, quem não estivesse prevenido não daria importância a esses sintomas, que são muito fugazes, bastando, para desaparecerem, que se faça ouvir a voz do dono. Então vem um momento de repouso; os olhos se fecham lentamente, a cabeça pende, as patas dianteiras parecem desaparecer sob o corpo e o animal está prestes a cair. Mas, de repente, se ergue e novos fantasmas vêm assediá-lo; olha em torno de si com selvagem expressão, abocanha como se quisesse pegar um objeto ao alcance dos dentes e se lança, na extremidade da corrente, ao encontro de um inimigo que só existe na sua imaginação.”
2. — Esse fenômeno, minuciosamente observado pelo autor da memória, parece denotar que nesse momento o cão é atormentado pela visão de algo invisível para nós. É uma visão real ou uma criação fantástica de sua imaginação, em outras palavras, uma alucinação? Se for uma alucinação, certamente não é pelos olhos do corpo que vê, pois não são objetos reais; se forem seres fluídicos ou Espíritos, também não causam nenhuma impressão sobre o sentido da visão, e, assim, é por uma espécie de visão espiritual que ele os percebe. Num e noutro caso, gozaria de faculdade análoga, até certo ponto, à que possui o homem. A Ciência ainda não se tinha aventurado a dar uma imaginação aos animais. Ora, da imaginação a um princípio independente da matéria a distância não é grande, a menos que se admita que a matéria bruta: a madeira, a pedra, etc., possa ter imaginação.
3. — Todos os fenômenos de visão são atribuídos pela Ciência à imaginação superexcitada. Não obstante, por vezes têm-se visto crianças em tenra idade, que ainda não sabem falar, correr atrás de um ser invisível, sorrir-lhe, estender-lhe os braços e querer agarrá-lo. Em comparação com a raiva, este fato não tem grande semelhança com o do cão acima citado? A criança ainda não pode dizer o que vê, mas as que começam a falar dizem, positivamente, que veem seres invisíveis para os assistentes. Viram-nas descrever os avós falecidos, que elas não haviam conhecido. Concebe-se a superexcitação numa pessoa preocupada por uma ideia, mas não é, seguramente, o caso de uma criancinha. A imaginação sobreexcitada poderá despertar uma lembrança; o medo, a afeição, o entusiasmo poderão criar imagens fantásticas, é possível; sob o império de certas crenças, uma pessoa exaltada imaginará ver aparecer um ser que lhe é caro, a Virgem e os santos, ainda se admite; mas, como explicar, só por estas causas, o fato de uma criança de três a quatro anos descrever sua avó, que nunca viu? Seguramente não pode ser o produto de uma lembrança, nem da preocupação, nem de uma crença qualquer.
4. — Digamos de passagem, e como corolário do que precede, que a mediunidade vidente parece ser frequente, e mesmo geral, nas criancinhas. Nossos anjos-da-guarda viriam, assim, conduzir-nos, como pela mão, até o limiar da vida, para nos facilitar a entrada e nos mostrar sua ligação com a vida espiritual, a fim de que a transição de uma a outra não seja muito brusca. À medida que a criança cresce e pode fazer uso das próprias forças, o anjo-da-guarda se vela à sua vista, para deixá-la ao livre-arbítrio. Parece dizer-lhe: “Vim acompanhar-te até o navio, que te vai transportar pelo mar do mundo; agora, parte; voa com tuas próprias asas; mas, do alto do céu, velarei por ti; pensa em mim e em tua volta lá estarei para te receber.” Feliz aquele que, durante a travessia, não esquece seu anjo-da-guarda!
5. — Voltemos ao assunto principal, que nos levou a essa digressão. Desde que se admita uma imaginação no cão, poder-se-ia dizer que a doença da raiva o superexcita a ponto de lhe provocar alucinações. Mas numerosos exemplos tendem a provar que o fenômeno das visões tem ocorrido em certos animais, no estado mais normal, sobretudo no cão e no cavalo; pelo menos é nestes que se tem observado mais. Raciocinando por analogia, pode supor-se que assim suceda com o elefante e com animais que, por sua inteligência, mais se aproximam do homem. É certo que o cão sonha; muitas vezes, durante o sono, já foram vistos fazendo movimentos que simulam a corrida; gemer ou manifestar contentamento. Seu pensamento está, pois, ativo, livre e independente do instinto propriamente dito. Que faz ele, o que pensa e o que vê nos seus sonhos? É o que, infelizmente, não nos pode dizer; mas o fato lá está.
6. — Até agora quase não nos havíamos preocupado com o princípio inteligente dos animais e, ainda menos, com sua afinidade com a espécie humana, a não ser do ponto de visto exclusivo do organismo material. Hoje procuramos conciliar seu estado e seu destino com a justiça de Deus; mas a respeito apenas foram feitos sistemas mais ou menos lógicos, nem sempre de acordo com os fatos. Se a questão ficou indecisa por tanto tempo, é que nos faltavam, como para muitas outras, elementos necessários para compreendê-la. O Espiritismo, que dá a chave de tantos fenômenos incompreendidos, mal observados ou despercebidos, não pode deixar de facilitar a solução desse grave problema, ao qual não se deu toda a atenção que merece, porque é uma solução de continuidade nos elos que ligam todos os seres, e no conjunto harmonioso da Criação.
Por que, então, o Espiritismo não resolveu imediatamente a questão? Seria o mesmo que perguntar por que um professor de Física não ensina aos alunos, desde a primeira lição, as leis da eletricidade e da óptica. Ele começa pelos princípios fundamentais da ciência, pelos que devem servir de base para a compreensão dos outros princípios, reservando para mais tarde a explicação das leis subsequentes. Assim procedem os grandes Espíritos que dirigem o movimento espírita; em boa lógica começam pelo começo e esperam que estejamos suficientemente instruídos num ponto, antes de abordar outro. Ora, qual devia ser o ponto de partida de seu ensino? A alma humana. Cabe a nós convencer de sua existência e de sua imortalidade; a nós compete dar a conhecer seus verdadeiros atributos e o destino que, de início, era preciso a ela ligar. Numa palavra, precisávamos compreender nossa alma, antes de procurar compreender a dos animais. O Espiritismo já nos ensinou bastante sobre a alma e suas faculdades; diariamente nos ensina mais e projeta luz sobre algum ponto novo. Mas quanto ainda resta a explorar!
À medida que o homem avança no conhecimento de seu estado espiritual, sua atenção é despertada para todas as questões que lhe dizem respeito, e a dos animais não é das menos interessantes; apreende melhor as analogias e as diferenças; busca explicar o que vê; tira consequências; ensaia teorias, sucessivamente desmentidas ou confirmadas por novas observações. É assim que, pelos esforços de sua própria inteligência, pouco a pouco se aproxima do objetivo. Nisto, como em todas as coisas, os Espíritos não nos vêm libertar do trabalho das pesquisas, porque o homem deve fazer uso de suas faculdades; ajudam-no, dirigem-no, o que já é muito, mas não lhe dão a ciência acabada. Uma vez no caminho da verdade, os Espíritos lha vêm revelar claramente, para fazer calar as incertezas e aniquilar os falsos sistemas. Mas, enquanto o homem espera, seu Espírito preparou-se para melhor compreendê-la e aceitá-la; e quando ela se mostra, não o surpreende; já estava no fundo do pensamento.
7. — Vede a marcha que seguiu o Espiritismo. Veio surpreender os homens de improviso? Não, certamente. Sem falar nos fatos que se produziram em todas as épocas, ele está na Natureza, como a eletricidade e, do ponto de vista do princípio, vinha preparando sua chegada há um século. Swedenborg, Saint-Martin, os teósofos, † Charles Fourier, Jean Reynaud e tantos outros, sem esquecer Mesmer, que deu a conhecer a força fluídica de Puységur, o primeiro a observar o sonambulismo, todos levantaram uma ponta do véu da vida espiritual; todos giraram em torno da verdadeira luz e dela mais ou menos se aproximaram; todos prepararam os caminhos e predispuseram os Espíritos, de sorte que o Espiritismo não teve, por assim dizer, senão que completar o que havia sido esboçado. Eis por que conquistou, quase instantaneamente, tão numerosas simpatias. Não falamos das outras causas múltiplas que lhe vieram em auxílio, provando que certas ideias já não eram compatíveis com o nível do progresso humano, e fizeram pressentir o advento de uma nova ordem de coisas, porque a Humanidade não pode ficar estacionária. Dá-se o mesmo com todas as grandes ideias que mudaram a face do mundo; nenhuma veio deslumbrar como um relâmpago. Cinco séculos antes do Cristo, Sócrates e Platão já não haviam lançado a semente das ideias cristãs?
8. — Um outro motivo tinha feito adiar a solução relativa aos animais. Essa questão toca em preconceitos há muito enraizados, e que teria sido imprudente chocar de frente, razão por que os Espíritos não o fizeram. A questão é apresentada hoje; agita-se em diversos pontos, mesmo fora do Espiritismo; os desencarnados nela tomam parte, conforme suas ideias pessoais; essas várias teorias são discutidas, examinadas; uma imensidão de fatos, como o que trata este artigo, e que outrora teriam passado despercebidos, hoje chamam a atenção, em razão dos próprios estudos preliminares que têm sido feitos. Sem adotar esta ou aquela opinião, a gente se familiariza com a ideia de um ponto de contato entre a animalidade e a Humanidade; e, quando vier a solução definitiva, seja qual for o sentido em que ocorra, deverá apoiar-se sobre argumentos peremptórios, que não darão margem a qualquer dúvida. Se a ideia for verdadeira, terá sido pressentida; se for falsa, é que se terá encontrado algo mais lógico para pôr em seu lugar.
Tudo se liga, tudo se encadeia, tudo se harmoniza na Natureza. O Espiritismo veio dar uma ideia-mãe e pode ver-se quão fecunda é esta ideia. Antes da luz que ele lança sobre a psicologia, ter-se-ia dificuldade em crer que pudessem surgir tantas considerações a propósito de um cão raivoso.
Depois que o relatório do Sr. Bouley foi lido na Sociedade de Paris, † um Espírito deu a respeito a seguinte comunicação.
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(Sociedade Espírita de Paris, 30 de junho de 1865. – Médium: Sr. Desliens.)
Existe a visão no cão e em alguns outros animais, nos quais fenômenos semelhantes aos descritos pelo Sr. Bouley possam produzir-se? Para mim a questão não padece dúvida. Sim; o cão e o cavalo veem ou sentem os Espíritos. Nunca testemunhastes a repugnância que, por vezes, manifestam esses animais, ao passarem num local onde ignoravam tivesse sido enterrado um corpo humano? Certamente direis que seus sentidos podem ser despertados pelo odor particular dos corpos em putrefação; então, por que passam indiferentes ao lado do cadáver enterrado de um outro animal? Por que se diz que o cão pressente a morte? Nunca vistes cães uivando sob as janelas de uma pessoa agonizante, quando esta lhe era desconhecida? Não vedes, também, fora da excitação da raiva, diversos animais se recusarem a obedecer à voz do dono, recuarem amedrontados ante um obstáculo que lhes parece barrar a passagem, e se enfurecerem? e depois passarem tranquilamente pelo mesmo sítio que lhes inspirava terror, como se o obstáculo tivesse desaparecido? Tem-se visto animais salvarem seus donos de um perigo iminente, recusando-se a percorrer o caminho onde estes teriam podido sucumbir. Os fatos de visões nos animais se encontram na Antiguidade e na Idade Média, bem como em nossos dias.
Assim, não há dúvida de que os animais veem os Espíritos. Aliás, dizer que eles têm imaginação não é lhes conceder um ponto de semelhança com o Espírito humano? e o instinto não é neles a inteligência rudimentar, apropriada às suas necessidades, antes que tenha passado pelos cadinhos modificadores, que a devem transformar e dar-lhe novas faculdades? O homem também tem instintos, que o fazem agir de maneira inconsciente, no interesse de sua conservação; porém, à medida que nele se desenvolvem a inteligência e o livre-arbítrio, o instinto se enfraquece, para dar lugar à razão, porque esse guia cego lhe é menos necessário.
O instinto, que está em todo o seu vigor no animal, perpetuando-se no homem, onde se perde pouco a pouco, certamente é um traço de união entre as duas espécies. A sutileza dos sentidos no animal, como no selvagem e no homem primitivo, suprindo nuns e noutros a ausência ou a insuficiência do senso moral, é outro ponto de contato. Enfim, a visão espiritual que, com toda evidência, lhes é comum, embora em graus muito diversos, também vem diminuir a distância que parece erguer entre eles uma barreira intransponível. Contudo, nada concluais de maneira absoluta, mas observai atentamente os fatos, porque somente dessa observação a verdade brotará um dia para vós.
Mokí.
Observação. – Este conselho é muito sábio, pois, evidentemente apenas nos fatos é que se pode assentar uma teoria sólida; fora disso só haverá opiniões e sistemas. Quando constatados, os fatos são argumentos sem réplica, cujas consequências, mais cedo ou mais tarde, terão de ser aceitas. Foi o princípio que serviu de base à Doutrina Espírita, e é o que nos leva a dizer que o Espiritismo é uma ciência de observação.