1. — Escrevem-nos de Lyon, † em 3 de outubro de 1864:
“Conheceis a reputação do capitão B… É um homem de fé ardente, de convicção
comprovada; dele já falastes em vossa Revista. [v.
Epidemia demoníaca na Saboia.] Há algum tempo achava-se nas margens
do rio Saône, †
em companhia de um advogado, espírita como ele. Prolongando o passeio,
aqueles senhores entraram num restaurante para almoçar e logo viram
outro viajante, entrando no mesmo estabelecimento. O recém-chegado falava
alto, ordenava o prato com brusquidão e parecia querer monopolizar o
pessoal do restaurante. Vendo esse sem-cerimônia, o capitão disse em
voz alta algumas palavras um pouco severas ao recém-vindo. De repente
sentiu-se tomado de estranha tristeza. O Sr. B… é médium audiente; ouve
distintamente a voz de seu filho, do qual recebe frequentes comunicações,
murmurando ao seu ouvido: “O homem tão rude que estais vendo vai suicidar-se.
Vem aqui fazer sua última refeição.”
“O capitão levanta-se precipitadamente, dirige-se ao desordeiro e lhe pede perdão por ter externado tão alto o seu pensamento. Depois o arrasta para fora do estabelecimento e lhe diz: “Senhor, ides suicidar-vos.” Houve grande estupefação da parte do indivíduo, ancião de setenta e seis anos, que lhe respondeu:
“Quem vos pode revelar semelhante coisa?” – “Deus”, respondeu o Sr. B… Depois, começou a falar-lhe docemente e com bondade sobre a imortalidade da alma e, reconduzindo-o a Lyon, o entreteve sobre o Espiritismo e de tudo quanto em casos tais Deus pode inspirar, a fim de encorajar e consolar.
“O velho contou-lhe sua história. Antigo ortopedista, tinha sido arruinado por um sócio infiel. Ficando doente, viu-se forçado a ficar longo tempo no hospital; mas, uma vez curado, sua saúde o atirou no olho da rua, sem nenhum recurso. Foi recolhido por uma pobre operária, criatura sublime que, durante meses seguidos, o alimentou, sem a isto ser obrigada por nenhum laço que não fosse a piedade. Mas o medo de lhe continuar sendo um fardo o havia impelido ao suicídio.
“O capitão foi ver a digna mulher, encorajou-a, ajudou-a; mas quando se tem de viver, o dinheiro acaba depressa e ontem todo o parco mobiliário da operária teria sido vendido se alguns espíritas não tivessem resgatado os poucos móveis de seu único quarto, pois, desde que passou a alimentar o velho, há um ano, a casa de penhores havia apreendido colchões, cobertores, etc. A penhora foi suspensa graças aos bons corações, tocados por esse generoso devotamento. Mas não é tudo: é preciso continuar até que o velho tenha conseguido um refúgio junto às irmãs de caridade. A respeito, Cárita fez-me escrever uma comunicação, que vos remeto, com toda a expressão de nosso reconhecimento, a vós, caro senhor, que nos tornastes espíritas. Quanto a mim, não esqueço que me convidastes a ir ter convosco, quando voltardes.”
2. — Eis a comunicação:
Apelo aos bons corações.
“O Espiritismo, esta estrela do Oriente, não vem somente abrir-vos as portas da Ciência. Faz mais que isto: é um amigo que vos conduz uns aos outros, para vos ensinar o amor ao próximo e, sobretudo, a caridade. Não esta esmola degradante, que procura na bolsa a menor moeda para lançar na mão do pobre, mas a doce mansuetude do Cristo, que conhecia o caminho onde se encontra o infortúnio oculto.
“Meus bons amigos, encontrei em meu caminho uma destas misérias de que a História não fala, mas de que o coração se lembra, quando testemunhou tão rudes provas. É uma pobre mulher; é mãe; tem um filho desempregado há vários meses; além disso, alimenta uma infeliz operária, como ela. E, como se não bastasse, um velho vem diariamente encontrá-la à hora do almoço, quando há o que comer. Mas no dia em que falta o necessário, as duas pobres mulheres, criaturas admiráveis pela caridade, dão a sua refeição aos dois homens, o velho e o jovem, sob a alegação de que,, estando com fome, comeram antes. Vi isto repetir-se muitas vezes; vi o velho, num momento de desespero, vender sua última roupa, e querer, por insigne ato de loucura, dar o último adeus à vida, antes de partir para o mundo invisível, onde Deus vos julga a todos.
“Vi a fome imprimir suas marcas nesses deserdados do bem-estar social, mas as mulheres oraram a Deus com fervor, e foram ouvidas. Já pôs irmãos, espíritas, sobre os seus passos, e quando a caridade chama, os corações devotados respondem. As lágrimas do desespero já secaram; só resta a angústia do amanhã, o fantasma ameaçador do inverno, com seu cortejo de geadas, de gelo e de neve. Eu vos estendo a mão em favor deste infortúnio. Os pobres, amigos, são envidados de Deus. Vêm dizer-vos: Nós sofremos; Deus o quer; é o nosso castigo e, ao mesmo tempo, um exemplo para a nossa melhora. Vendo-nos tão infelizes, vosso coração se enternece, vossos sentimentos se dilatam, aprendeis a amar e a lamentar o infeliz. Socorrei-nos, a fim de que não murmuremos e, também, para que Deus vos sorria dos píncaros de seu belo paraíso.
“Eis o que disse a pobre em seus farrapos; eis o que repete o anjo-da-guarda que vos vela e o que vos repito, simples mensageira da caridade, intermediária entre o Céu e vós.
“Sorride ao infortúnio, ó vós que sois tão ricamente dotados de todas as qualidades do coração; ajudai-me em minha tarefa; não deixeis fechar-se esse santuário de vossa alma, onde mergulhou o olhar de Deus. E um dia, quando entrardes na mãe-pátria, quando, com o olhar incerto e o passo inseguro, buscardes o vosso caminho através da imensidade, eu vos abrirei a porta do templo de par em par, onde tudo é amor e caridade, e vos direi: Entrai, meus amados, eu vos conheço!”
Cárita. n
3. — A quem farão acreditar seja esta a linguagem do diabo? Foi a voz do diabo que se fez escutar ao ouvido do capitão, sob o nome de seu filho, para adverti-lo que o velho ia suicidar-se e, ao mesmo tempo, manifestar-lhe pesar por haver dito palavras que o deviam ferir? Conforme a doutrina que um partido busca fazer prevalecer, segundo a qual só o diabo se comunica, esse capitão deveria ter repelido como satânica a voz que lhe falava; disso teria resultado o suicídio do velho, o mobiliário das pobres operárias teria sido vendido e elas talvez tivessem morrido de fome.
Entre os donativos que recebemos em sua intenção, há um que devemos mencionar, embora sem nomear o autor. Estava acompanhado da seguinte carta:
“Senhor Allan Kardec,
“Soube por um parente, que o obteve de vós, o relato da bela ação, verdadeiramente cristã, realizada por uma pobre operária de Lyon, em benefício de um velho infeliz. O parente também me mostrou um apelo muito eloquente em seu favor, por um Espírito que se dá o nome de Cárita. À sua pergunta, se nele eu reconhecia a linguagem do demônio, respondi que os nossos melhores santos não falariam melhor. É minha opinião, e foi por isso que tomei a liberdade de pedir-lhe uma cópia.
“Senhor, não passo de um pobre padre, mas vos envio o óbolo da viúva, em nome de Jesus-Cristo, para essa brava e digna mulher. Anexo, encontrareis a módica soma de cinco francos, lamentando não poder dar mais. Peço o favor de silenciar o meu nome.
“Dignai-vos aceitar, etc.”
Abade X…
[1]
[v. Cárita.]