1. — A Presse de 27 de julho de 1862 fez a apreciação crítica da obra acima indicada. Ela se prende de maneira muito direta à Doutrina Espírita, de modo que nossos leitores nos agradecerão por reproduzi-la. Nós mesmos poderíamos ter feito a análise da obra, mas preferimos a de uma pessoa desinteressada na questão. Limitar-nos-emos a fazê-la seguir de algumas considerações. Diz o redator:
“Que de mais atraente para o espírito e mais refrescante para alma do que encontrar, na hora presente, um homem de fé sincera, verdadeira e profunda, um homem que crê e, no entanto, raciocina, e raciocina sem preconceitos, para buscar a verdade à luz de sua consciência? Tal é o Sr. Renaud. Nele as matemáticas e a Ciência não aniquilaram o sentimento nem turbaram as forças misteriosas que nos ligam ao infinito pela fé. O Sr. Renaud é um crente firme, convicto, mesmo um excelente cristão, se, aliás, existe um mau católico, do que não se defende; ao contrário.
Sua razão esclarecida, não menos que seu coração afetuoso, lhe faz repelir para bem longe a ideia de um Deus vingador, ciumento e colérico, de um Deus que teria escolhido a cólera para ligar a criatura ao seu autor, um Deus que pune o filho pela falta do pai, coisa iníqua aos olhos da justiça humana.
O Deus do Sr. Renaud é um Deus de luz e de amor. A harmonia de sua obra infinita manifesta sua onipotência e sua bondade. O homem não é sua vítima, mas seu colaborador numa parte mínima, mas ainda gloriosa e proporcional às suas forças. Por que, então, o mal e como o explicar? O mal não vem de uma queda primitiva, que teria mudado todas as condições da vida humana; tem por causa o não cumprimento da lei de Deus e a desobediência do homem, fazendo mau uso do livre-arbítrio. Teríamos achado mais claro que o Sr. Renaud tivesse dito simplesmente que o homem começa pelo instinto, que só gradualmente pode desenvolver seus sentimentos superiores e sua inteligência. O homem-espécie, como todos os seres vivos, não pode de repente apoderar-se da plenitude de seu ser. Percorre evoluções sucessivas e normais. Sua infância social é caracterizada pelo domínio dos instintos; daí sua ignorância, sua miséria e sua brutalidade. À medida que se eleva na vida, pouco a pouco se desprende do limo dos primeiros anos. Cresce a inteligência, os sentimentos ganham força, começa a humanizar-se. Quanto mais o homem compreende, tanto mais se liga à lei, mais se torna religioso, concorrendo, de sua parte, para a harmonia geral. O sofrimento é uma advertência, um estimulante para se livrar do mal, para se retirar da sombra e marchar para a luz. Quanto mais progride, mais horror tem ao mundo do instinto, da luta, da violência e da guerra; quanto mais vê e compreende, melhor aspira ao mundo da paz e da ordem, ao império da razão, ao reino dos sentimentos elevados, que são a dignidade e a marca sagrada de sua espécie.
Daí resulta que, graças à Ciência, à indústria, ao incessante progresso da sociabilidade, o gênero humano tende constituir-se como o rei, ou, se se preferir um termo menos ambicioso, como o gerente de seu globo. Mas depois, e admitindo por um momento esta hipótese que, a bem dizer, parece tornar-se mais certa cada dia, não restará sempre por satisfazer esse desejo insaciado do homem, que não pode parar e limitar-se ao presente, por mais magnífico que seja?
Que me importa, afinal, vossa felicidade material e terrestre, se me deixa a alma vazia e alterada? A gente se sente tomada de um supremo tédio e de um grande desgosto, em presença de tal felicidade, que dura tão pouco.
Isto é verdade, responde o Sr. Renaud, e é aqui que ele triunfa. Iluminado pela Ciência, sua fé robusta nos destinos eternos do homem lhe mostra todo um futuro infinito de atividade consciente e de alegrias paradisíacas.
Ao primeiro despertar do pensamento, aos primeiros sobressaltos da alma, o homem eleva o olhar ao céu, interroga suas profundezas infinitas e busca qual pode ser o seu vínculo com o Universo que entrevê. Essa existência terrestre, tão curta e, muitas vezes, tão triste, não lhe basta. Sente que participa do infinito e, a todo preço, nele quer encontrar lugar. O homem tem horror ao nada, como a Natureza tem horror pelo vazio. Em vez de ficar sem ideal, ele se lançará desvairado em suas crenças mais estranhas. Daí tantas concepções paradisíacas mais ou menos loucas, mas que atestam essa necessidade absoluta e fundamental de se sentir ligado ao infinito, certo da imortalidade.
Conhece-se o paraíso dos budistas, os Campos Elíseos dos gregos, o paraíso dos selvagens, com suas florestas e prados abundantes em caça, o paraíso de Maomé, com suas delícias materiais e suas huris imaculadas. O paraíso católico, que coloca a Humanidade num estado de beatitude contemplativa infinita, é uma concepção em relação com as épocas cruéis, em que o trabalho é punição e castigo, em que o sofrimento geral é tal que a resignação neste mundo e o repouso no outro puderam parecer a soberana sabedoria e o mais elevado ideal. Mas, sem sombra de dúvida, esta hipótese é inteiramente contraditória com as noções mais simples e mais claras da existência. Viver é ser; ser é agir com todas as forças de suas faculdades e de sua energia vital. Viver é aspirar e transformar-se incessantemente.
A metempsicose de Pitágoras, embora respeitando a ideia de atividade, é incompleta, por limitar a transformação a passagens nos organismos que vivem na face da Terra e não levar em conta a lei do progresso ascendente, que governa todas as coisas.
Segundo o Sr. Renaud, só há uma maneira racional de encarar esta questão da imortalidade. Para começar, o autor repele a concepção de que, após uma estação no mundo visível, lugar de provação, colocaria o homem no mundo invisível, o paraíso, no estado de beato contemplativo e mais que desinteressado de seus semelhantes e de sua obra terrestre. Que eleitos e que vivos senão esses seres despojados de todo desejo e de toda aspiração, de toda atividade fecunda, de todo interesse por seu passado e seus semelhantes, pelo Universo infinito, onde trabalharam, sentiram e pensaram!…
O Sr. Renaud repele igualmente esta hipótese de uma série indefinida de existências, quer na Terra, quer em outros globos. Esse gênero de imortalidade já possui uma grande vantagem sobre a primeira concepção, pois abre um campo indefinido à atividade humana. Os Srs. Jean Reynaud, Pierre Leroux, Henri Martin, Lamennais, abraçam mais ou menos esta ideia. Mas há um ponto capital que a destrói pela base: é a ausência da memória. De que me adianta uma imortalidade da qual não tenho consciência e que só Deus conhece? Para que minha imortalidade seja real, preciso é que, numa vida diferente da minha vida atual, eu guarde a lembrança de minhas existências anteriores e tenha consciência da continuidade e da identidade de meu ser. Só assim sou verdadeiramente imortal, participando do infinito e consciente de meu papel no Universo. Não conhecemos nosso ser senão por suas manifestações; sua essência virtual nos escapa. Em que, pois, repugnaria à razão admitir que o nosso ser, cuja persistência aqui constatamos em suas modificações incessantes, persistisse eternamente? Apenas muda de forma e de órgãos conforme o meio que atravessa em suas sucessivas encarnações.
É assim que o Sr. Renaud chega a expor sua concepção, que satisfaz a esta condição essencial: conservar a memória. Além disso, é conforme à justiça e à onipotente bondade de Deus.
Não há vazio no Universo, como não há o nada. Ora, se o mundo visível está em toda parte, o mundo invisível não está em parte alguma, diz precisamente o Sr. Renaud, a menos que também não esteja em toda parte.
Nesta Terra o homem tem dois estados bem distintos. Em vigília ele se lembra geralmente de todos os seus atos e tem consciência de si mesmo; durante o sono perde a memória e a consciência. Consequentemente, por que não teria o homem dois distintos modos de existência, sempre ligados entre si, sempre unidos à vida da espécie e do planeta? Primeiro, a existência que conhecemos na Terra, depois outra existência de ordem mais elevada, na qual o indivíduo se organiza e se encarna por meio de fluidos imponderáveis, participa de maneira mais larga e mais extensa na vida do nosso turbilhão, conserva a memória de suas existências anteriores e possui plena consciência de seu papel e de sua função no Universo? A existência mundana ou visível está em relação com o sono? A existência transmundana ou etérea tem analogia com a vigília?
Nesta hipótese, a solidariedade do gênero humano, nas suas gerações presentes e futuras, aparece-nos completa e inteira.
Cada um de nós viveu, vive e viverá em diferentes épocas da vida da espécie nesta Terra, e no seu duplo modo visível e invisível. Cada um de nós aí nasce e daí sai, conforme a lei de número, peso e medidas que preside à harmonia dos mundos. Nossas diversas alternâncias são contadas como os dias e as estações. Cada um de nós renasce na Terra, toma sua classe na espécie e sua função no trabalho geral, consoante o seu valor e segundo a lei da ordem universal. É possível que cada um de nós passe pelos diversos estados e funções que nos apresenta o conjunto da espécie. Seguramente a mais absoluta justiça preside a essas transformações, como a mais harmoniosa ordem brilha na eterna criação, nas variadas combinações que caracterizam todo organismo e todo ser vivo. Renascemos para a vida etérea e dela saímos sob essas mesmas condições de ordem e de harmonia.
Tal a concepção do Sr. Renaud, que aqui não posso expor com todo o desenvolvimento desejável. É preciso recorrer ao seu livro, claro, simples, rápido, onde uma fé profunda, aliada a uma razão tão elevada quanto imparcial, prende constantemente o leitor sob o encanto de uma teoria de tal modo consoladora quanto religiosa e grandiosa. A livre espontaneidade do homem, sua solidariedade íntima e incessante com os semelhantes, com o seu globo, com o seu turbilhão, com o Universo, sua atividade cada vez mais progressiva, eficaz, irradiante, em harmonia com as leis divinas, uma cadeia infinita para sua eterna aspiração, a onipotência e a bondade de Deus justificadas, explicadas e glorificadas, o amor pelo vínculo entre Deus e o homem, eis o que ressalta deste opúsculo, o mais completo de todos os que foram escritos sob a inspiração desta grande palavra: “Os desejos do homem são as promessas de Deus.”
É. de Pompéry.
2. — Este artigo deu origem às duas cartas seguintes, igualmente publicadas na Presse de 31 de julho e 5 de agosto de 1862.
“Paris, † 29 de julho de 1862.
“Ao redator.
“Senhor ,
“Acabo de ler na Presse de ontem à tarde a seguinte passagem (artigo do Sr. de Pompéry, sobre a obra do Sr. Renaud):
“O Sr. Renaud repele a hipótese de uma série indefinida de existências, quer na Terra, quer em outros globos… Hipótese a que abraçam mais ou menos os Srs. Jean Reynaud, Pierre Leroux, Henri Martin, Lamennais… Há um ponto capital que a destrói pela base: é a ausência da memória. De que me adianta uma imortalidade da qual não tenho consciência e que só Deus conhece? Para que minha imortalidade seja real, preciso é que, numa vida diferente da minha vida atual, eu guarde a lembrança de minhas existências anteriores e tenha consciência da continuidade e da identidade de meu ser.
“Em minha opinião o Sr. Pompéry tem razão; uma metempsicose indefinida e sem
memória não é a imortalidade. Mas, se tem razão quanto às ideias, equivoca-se
quanto às pessoas. Dos quatro escritores citados, apenas um professou
a doutrina que ele combate: é o Sr. Pierre Leroux, em seu livro
Humanité - Google Books. No que me concerne, já que ele me
incluiu, embora sem títulos, para figurar ao lado de três filósofos
célebres, devo dizer que não tenho outra opinião senão a que acaba de
expressar acima o Sr. Pompéry.
“Quanto ao Sr. Jean Reynaud, de certo modo ele fez de tal opinião o coroamento
de seu livro
Terre et ciel - Google Books, onde apresenta a ausência de
memória como condição das existências inferiores, e a memória readquirida
e conservada para sempre como um atributo essencial da vida superior.
“Também não creio que o Sr. Lamennais, numa época qualquer de sua carreira, tenha, de algum modo, parecido inclinar-se à ideia da transmigração inconsciente e indefinida. Ela era muito contrária a todas as suas tendências.
“Ser-vos-ei reconhecido, senhor redator-chefe, se vos dignardes acolher esta reclamação, e rogo aceiteis meus mais distintos sentimentos.”
Henri Martin.
AO REDATOR.
3. — “Senhor,
“Ao tecer considerações sobre o livro do Sr. Renaud disse eu, conforme este, que os Srs. Henri Martin, Jean Reynaud, Pierre Leroux e Lamennais não podiam, de acordo com os sistemas por eles adotados, admitir que o homem preservasse a memória em suas existências ulteriores. Isto não implica absolutamente que não estivesse, no pensamento desses filósofos, a ideia de que o homem conserva, em suas existências indefinidas, a identidade e a perpetuidade de seu ser por meio da memória.
“A reclamação do Sr. Henri Martin seria, pois, muito justa, do ponto de vista de sua intenção, o que constato com prazer. Resta saber agora se o Sr. Renaud, discutindo os sistemas de seus ilustres contraditores, não tem razão de concluir pela sua insuficiência. Aí está toda a questão, na qual não posso entrar. É preciso ver o debate no livro do Sr. Renaud, que, aliás, dá testemunho da mais alta simpatia por estes homens eminentes.
“Aceitai, etc.”
E. de Pompéry.
4. — Eis, pois, um debate travado seriamente num jornal, sem anedotas vulgares e tolas, sobre a questão da pluralidade das existências, uma das bases fundamentais da Doutrina Espírita, por homens cujo valor intelectual não poderia ser contestado, o que prova não ser ela tão absurda quanto a alguns apraz dizer. Se se quiser aprofundar mesmo as ideias emitidas no artigo do Sr. de Pompéry, nele encontrarão as da Doutrina Espírita sobre este ponto; nada falta para as completar, a não ser as relações entre os mundos visível e invisível, de que não se cogita. Tão somente pela força do raciocínio e da intuição, esses senhores, aos quais poderiam juntar-se muitos outros, tais como Charles Fourier e Louis Jourdan, chegaram ao ponto culminante do Espiritismo sem ter passado pela fieira intermediária. A única diferença entre eles e nós é que encontraram a coisa por si mesmos, ao passo que a nós foi revelada pelos Espíritos, aí estando, aos olhos de certa gente, o seu maior erro.
[1]
1 vol. in-18. Preço: 2 fr.; Ledoyen; Palais-Royal. †
Não confundir com Jean Reynaud. [Veja mais informações sobre Claude
Hélène Hippolyte Renaud (1803-1873), em:
Hippolyte Renaud et de Sainte-Agathe.]