1. — À exceção dos eruditos, Apolônio de Tiana quase que só é conhecido de nome. O seu nome não é popular, por falta de uma. história ao alcance de todos. Só havia algumas traduções, baseadas numa tradução latina de formato incômodo. Devemos, pois, agradecer ao sábio helenista que acaba de popularizá-lo por meio de uma tradução conscienciosa, calcada no texto original grego, bem assim aos editores, por terem, com esta publicação, preenchido lamentável lacuna. n
Não há datas precisas sobre a vida de Apolônio. Conforme certos cálculos, teria nascido dois ou três anos antes de Jesus Cristo e morrido aos noventa e seis anos, pelos fins do primeiro século. Nasceu em Tiana, † cidade grega da Capadócia, † na Ásia Menor. Desde cedo deu provas de grande memória e notável inteligência, demonstrando grande entusiasmo pelo estudo. De todas as filosofias que estudou, adotou a de Pitágoras, cujos preceitos seguiu rigorosamente até a morte. Seu pai, um dos mais ricos cidadãos de Tiana, deixou-lhe uma fortuna considerável, que ele repartiu com os parentes, reservando apenas uma pequena parte para si, porque, como dizia, o sábio deve saber contentar-se com pouco. Viajou muito para se instruir; percorreu a Assíria, † a Cítia, † a Índia, † onde visitou os Brâmanes, † o Egito, † a Grécia, † a Itália † e a Espanha, † ensinando por toda parte a sabedoria, graças à doçura do seu caráter e à honradez de suas virtudes, recrutando numerosos discípulos que lhe seguiam os passos a fim de ouvi-lo, alguns dos quais o acompanharam em suas viagens. Um deles, porém — Eufrates — invejoso de sua superioridade e de sua boa reputação, tornou-se seu detrator e mortal inimigo, não cessando de espalhar calúnias contra ele para o perder; mas apenas conseguiu aviltar-se. Apolônio jamais se inquietou e, longe de lhe guardar qualquer ressentimento, lamentava-o por sua fraqueza e sempre procurava retribuir-lhe o mal com o bem. Ao contrário, Damis, jovem assírio que ele conheceu em Nínive, † a ele se ligou com uma fidelidade a toda prova, foi o companheiro assíduo de suas viagens, o depositário de sua filosofia e deixou sobre ele a maior parte das informações que possuímos.
O nome de Apolônio de Tiana está misturado ao de todas as personagens lendárias que a imaginação dos homens se deleitou em revestir de atributos maravilhosos. Seja qual for o exagero dos fatos a ele atribuídos, ê evidente que, ao lado das fábulas, encontra-se um fundo de verdades mais ou menos adulteradas. Ninguém poderia com segurança pôr em dúvida a existência de Apolônio de Tiana; o que é igualmente certo é que deve ter feito coisas notáveis, sem o que delas não teriam falado. Para que a imperatriz Júlia Domna, esposa de Séptimo-Severo, tivesse pedido a Filostrato n que escrevesse sua vida, fora necessário que ele tivesse dado o que falar, pois não é provável que ela tivesse encomendado um romance sobre um homem imaginário ou obscuro. Que Filostrato tivesse amplificado os fatos, ou que os tivesse achado amplificados, é provável e mesmo certo; pelo menos alguns deles estão fora de qualquer probabilidade. Mas o que não é menos certo é que colheu a essência de sua narrativa em relatos quase contemporâneos e que deviam gozar de suficiente notoriedade para merecerem a atenção da imperatriz. Às vezes a dificuldade está em deslindar a fábula da verdade. Neste caso há criaturas que acham mais simples negar tudo.
As personagens desta natureza são apreciadas muito diversamente; cada um as julga conforme suas opiniões, suas crenças e, mesmo, conforme seus interesses. Mais que qualquer outro, Apolônio de Tiana devia dar motivo para controvérsia, pela época em que viveu e pela natureza de suas faculdades. Entre outras coisas lhe atribuem o dom de curar, a presciência, a visão a distância, o poder de ler o pensamento, expulsar os demônios e de se transportar instantaneamente de um lugar para outro, etc. Poucos filósofos gozaram em vida de maior popularidade. Seu prestígio ainda era aumentado pela austeridade de seus hábitos, pela sua doçura, simplicidade, desinteresse, caráter benevolente e reputação de saber. O paganismo deitava, então, os seus últimos lampejos, e se debatia contra a invasão do Cristianismo nascente: quis transformá-lo num Deus. Misturando ideias cristãs a ideias pagãs, alguns o tomaram por um santo; os menos fanáticos não viram nele mais que um filósofo. É a opinião mais razoável e o único título que ele alguma vez aceitou, porquanto recusou o de filho de Júpiter, como alguns o pretendiam. Embora contemporâneo do Cristo, parece que dele não ouviu falar, porque em sua vida não faz nenhuma alusão ao que, então, se passava na Judeia. †
Entre os cristãos que mais tarde o julgaram, uns o declararam velhaco e impostor; outros, não podendo negar os fatos, pretenderam que operasse prodígios pela assistência do demônio, sem pensar que assim confessavam os mesmos prodígios, fazendo de Satã o rival de Deus, pela dificuldade de distinguir os prodígios divinos dos diabólicos. São as duas opiniões que têm prevalecido na Igreja.
O autor dessa tradução manteve-se em sábia neutralidade. Não esposou nenhuma versão e, a fim de permitir que cada um as apreciasse, indicou com escrupuloso cuidado todas as fontes em que se pode colhê-las, deixando a cada um a liberdade de tirar, pela comparação dos argumentos favoráveis e contrários, a consequência que julgar conveniente, limitando-se a fazer uma tradução fiel e conscienciosa.
Os fenômenos espíritas, magnéticos e sonambúlicos lançam hoje uma luz inteiramente nova sobre os fatos atribuídos a essa personagem, demonstrando a possibilidade de certos efeitos, até hoje relegados ao domínio fantástico do maravilhoso, e permitindo separar o possível do impossível.
2. — Antes de mais, o que é o maravilhoso? O cepticismo responde: É tudo aquilo que, estando fora das leis da Natureza, é impossível. Depois acrescenta: Se os relatos antigos são pródigos em fatos desse gênero, deve-se ao amor do homem pelo maravilhoso. Mas de onde vem esse amor? É o que ele não diz e que tentaremos explicar. Isto não será inútil àquilo que nos interessa.
Aquilo que o homem chama de maravilhoso o transporta pelo pensamento além dos limites do conhecido e é a inspiração íntima por uma ordem de coisas melhor, que o leva a procurar com avidez o que aí o pode ligar e lhe dar uma ideia. Tal aspiração lhe vem da intuição que tem, de que essa ordem de coisas deve existir; não a encontrando na Terra, busca-a na esfera do desconhecido. Mas não será essa mesma aspiração um indício providencial de que algo existe além da vida corporal? Ela só é dada ao homem, porque, nada esperando, os animais não buscam o maravilhoso. Intuitivamente o homem compreende que há, fora do mundo visível, uma força, da qual faz uma ideia mais ou menos justa, conforme o desenvolvimento de sua inteligência e, muito naturalmente, vê a ação direta dessa força em todos os fenômenos que não compreende. Assim, outrora, uma imensidade de fatos passava por maravilhosos e hoje são perfeitamente explicados, entrando no domínio das leis naturais. Disso resultou que todos os homens que possuíssem faculdades ou conhecimentos superiores ao vulgo passariam por ter uma porção dessa força invisível, ou domínio sobre ela; foram chamados de magos ou feiticeiros. A opinião da Igreja fez prevalecer a ideia de que tal força não poderia provir senão do Espírito do mal, quando exercida fora de seu seio. Eram tempos de barbárie e de ignorância, em que se queimavam os pretensos magos e feiticeiros; o progresso da Ciência os recolocou na Humanidade.
3. — Onde encontrais — perguntam os incrédulos — mais histórias maravilhosas? Não será na Antiguidade, entre os povos selvagens, nas classes menos esclarecidas? Não é prova de que resultam da superstição, filha da ignorância? Da ignorância é incontestável, e por uma razão muito simples. Os antigos, que sabiam menos que nós, não eram menos impressionados pelos mesmos fenômenos; conhecendo menos as verdadeiras causas, buscavam causas sobrenaturais para as coisas mais naturais. Ajudados pela imaginação e secundados pelo medo, de um lado, e pelo gênio poético, do outro, engendravam contos fantásticos, ampliados pelo gosto da alegoria peculiar aos povos do Oriente. Lutando afanosamente com o fogo que o consumia, Prometeu devia passar como um ser sobre-humano, punido por sua temeridade, por ter usurpado os direitos de Júpiter. Franklin, o moderno Prometeu, para nós é um simples sábio. Montgolfier, † elevando-se nos ares, nos tempos mitológicos teria sido Ícaro. † Por quem tomariam o Sr. Poitevin, levando-se num cavalo?
4. — Tendo feito uma porção de fatos entrar na ordem natural, a Ciência reduziu bastante os fatos maravilhosos. Mas terá explicado tudo? Conhece todas as leis que regem os mundos? Nada mais tem a ensinar? Cada dia dá um desmentido a esta orgulhosa pretensão. Não tendo ainda investigado todos os segredos de Deus, daí resulta que muitos fatos antigos se acham inexplicados. Ora, não admitindo como possível senão aquilo que compreende, acha mais simples chamá-los maravilhosos, fantásticos, isto é, inadmissíveis pela razão. A seus olhos todos os homens, que supostamente os produziram, ou são mitos ou impostores e, diante de tal juízo, Apolônio de Tiana não encontraria graça. Ei-lo, assim, condenado pela Igreja, que admite os fatos, como um suposto Satã, e pelos cientistas, que não os admitem, como um hábil prestidigitador.
A lei de gravitação abriu novo caminho à Ciência e explicou uma multidão de fenômenos sobre os quais se haviam edificado teorias absurdas; a lei das afinidades moleculares veio dar-lhe um novo passo; a descoberta do mundo microscópico abriu-lhe novos horizontes; por sua vez a eletricidade veio revelar-lhe uma nova força, da qual não suspeitava. A cada uma dessas descobertas viu ela serem resolvidas muitas dificuldades, muitos problemas, muitos mistérios incompreendidos ou falsamente interpretados. Mas quanta coisa ainda a esclarecer! Não se poderá admitir a descoberta de uma nova lei, de uma nova força, que venham projetar a luz sobre pontos ainda obscuros? Pois bem! É uma nova força que o Espiritismo vem revelar; esta força é a ação do mundo invisível sobre o visível. Mostrando nesta ação uma lei natural, ele recua mais ainda os limites do maravilhoso e do sobrenatural, porque explica uma porção de coisas que pareciam inexplicáveis antes da descoberta da eletricidade.
5. — Limita-se o Espiritismo a admitir o mundo invisível como hipótese e como meio de explicação? Não, porquanto seria explicar o desconhecido pelo desconhecido. Ele prova a sua existência por fatos patentes, irrecusáveis, como o microscópio provou a existência do mundo dos infinitamente pequenos. Tendo, pois, demonstrado que o mundo invisível nos envolve, que esse mundo é essencialmente inteligente, uma vez que se compõe das almas dos homens que hão vivido, concebe-se facilmente que possa representar um papel ativo no mundo visível e produza fenômenos de uma ordem particular. São esses fenômenos que a Ciência chama de maravilhosos, por não os poder explicar pelas leis conhecidas. Sendo tais fenômenos uma lei da Natureza, devem ter-se produzido em todos os tempos. Ora, como repousassem na ação de uma força fora da Humanidade, e como todas as religiões têm por princípio a homenagem prestada a essa força, serviram de base a todas os credos; esta a razão por que todos os relatos antigos, assim como todas as teogonias, † são pródigos em alusões e alegorias concernentes às relações do mundo invisível com o visível, ininteligíveis se não se conhecem tais relações. Querer explicá-las sem isto é querer explicar os fenômenos elétricos sem a eletricidade. Esta lei é uma chave que abrirá a maior parte dos santuários misteriosos da Antiguidade. Uma vez reconhecida, os historiadores, os arqueólogos, os filósofos verão desdobrar-se um horizonte completamente novo e a luz se fará sobre os pontos mais obscuros.
Se esta lei ainda encontra opositores, tem isto de comum com tudo o que é novo; deve-se, além disso, ao espírito materialista que domina nossa época e, em segundo lugar, porque em geral se faz do mundo invisível uma ideia de tal modo falsa que a incredulidade é uma consequência. O Espiritismo não só demonstra a sua existência, mas o apresenta sob um aspecto tão lógico que a dúvida não tem mais razão de ser em quem quer que se dê ao trabalho de estudá-lo conscienciosamente.
Não pedimos aos cientistas que creiam; como, porém, o Espiritismo é uma filosofia que ocupa vasto espaço no mundo, mesmo que não passasse de um sonho mereceria exame, ainda que fosse para saber o que ele diz. Só lhes pedimos uma coisa: estudá-lo, mas estudá-lo a fundo, para não lhe imputar aquilo que ele não diz. Depois, então, creiam ou não creiam, auxiliados por essa alavanca, tomada como simples hipótese, que tentem resolver os milhares de problemas históricos, arqueológicos, antropológicos, teológicos, psicológicos, morais, sociais, etc., ante os quais têm fracassado, e verão o seu resultado. Não lhes pedir a fé não é exigir muito.
6. — Voltemos a Apolônio. Incontestavelmente os antigos conheciam o magnetismo. Encontramos sua prova em certas pinturas egípcias. Conheciam igualmente o sonambulismo e a dupla vista, que são fenômenos psicológicos naturais. Conheciam as diversas categorias de Espíritos, que chamavam deuses, e suas relações com os homens. Os médiuns curadores, videntes, falantes, auditivos, inspirados, etc., deviam existir entre eles como em nossos dias, como se veem numerosos exemplos entre os árabes. Com o auxílio desses dados e do conhecimento das propriedades do perispírito — envoltório corporal fluídico dos Espíritos — podemos perfeitamente nos dar conta de vários fatos atribuídos a Apolônio de Tiana, sem recorrer à magia, à feitiçaria, nem à astúcia. Dizemos de vários fatos, porquanto alguns há cuja impossibilidade o próprio Espiritismo vem demonstrar; é nisso que ele serve para distinguir a verdade do erro. Deixamos aos que tiverem feito um estudo sério e completo desta ciência o cuidado de estabelecer a distinção entre o possível e o impossível, o que lhes será fácil.
7. — Consideremos agora Apolônio de outro ponto de vista. Ao lado do médium, que naquele tempo o convertia num ser quase sobrenatural, nele havia o filósofo, o sábio. Sua filosofia revelava a doçura de seus hábitos e de seu caráter, de sua simplicidade em todas as coisas. Pode-se julgá-lo por algumas de suas máximas.
Tendo censurado os lacedemônios degenerados e efeminados, e havendo estes aproveitado os seus conselhos, escreveu aos éforos: † “Apolônio aos éforos: saúde! Os verdadeiros homens não devem cometer faltas; mas só aos homens de coração, se as cometem, cabe reconhecê-las.”
Tendo recebido do imperador uma carta de censura, os lacedemônios vacilavam entre conjurar sua cólera ou lhe responder com arrogância. Consultaram Apolônio quanto à forma de responder. Este veio à assembleia e lhes disse apenas estas palavras: “Se Palamédio inventou a escrita, não foi somente para que se pudesse escrever, mas para que se soubesse quando não se deve escrever.”
Interrogando Apolônio, perguntou-lhe o cônsul romano Telesino [Caio Luccio Telesino]: “Quando vos aproximais do altar, qual a vossa prece? — Peço aos deuses que reine a justiça, que as leis sejam respeitadas, que os sábios sejam pobres, que os outros se enriqueçam, mas por meios honestos. — Que! quando pedis tantas coisas pensais em ser atendido? — Sem dúvida, porque peço tudo isto numa só palavra, ao me aproximar do altar: “Ó deuses! Dai-me o que me é devido.” Se eu pertencer ao número dos justos, obterei mais do que pedi; se, ao contrário, os deuses me puserem no número dos maus, punir-me-ão e não poderei censurá-los, visto que, não sendo bom, serei castigado.”
Conversando com Apolônio sobre a maneira de governar quando fosse imperador, disse-lhe Vespasiano: “Vendo o império aviltado pelos tiranos que vos acabo de citar, quis aconselhar-me convosco quanto à maneira de reabilitá-lo na estima dos homens. — Certo dia, disse Apolônio, um dos mais hábeis flautistas mandou seus alunos aos piores flautistas para lhes ensinar como não deviam tocar. Sabeis agora, Vespasiano, como não se deve reinar: vossos predecessores vo-lo ensinaram. Reflitamos agora sobre a maneira de bem reinar.”
Estando preso em Roma, no tempo de Domiciano, fez uma preleção aos prisioneiros, para lembrar-lhes a coragem e a resignação, e lhes disse: “Todos que aqui nos achamos, estamos presos durante isto que se chama vida. Ligada ao corpo perecível, nossa alma sofre numerosos males e é escrava de todas as necessidades da condição humana.”
Na sua prisão, respondendo a um emissário de Domiciano que o incitava a acusar Nerva, a fim de conseguir a sua liberdade, disse Apolônio: “Meu amigo, se fui posto a ferros por ter dito a verdade a Domiciano, o que me aconteceria, se houvesse mentido? O imperador crê que é a franqueza que merece os ferros, mas eu creio que é a mentira.
Numa carta a Eufrates: “Perguntei aos ricos se não tinham preocupações. “Como não as teríamos?” responderam eles. — “E de onde vêm as vossas preocupações? — De nossas riquezas.” Eufrates, eu vos lamento, pois acabais de enriquecer.”
Ao mesmo: “Os homens mais sábios são os mais breves em seus discursos. Se os tagarelas sofressem o que fazem sofrer aos outros, não falariam tanto.
Outra a Criton: “Disse Pitágoras que a Medicina é a mais divina das artes. Se assim é, faz-se necessário que o médico se ocupe da alma e, ao mesmo tempo, do corpo. Como um ser poderia estar sadio, quando a parte mais importante de si mesmo estivesse doente?”
Outra aos platônicos: “Se oferecerem dinheiro a Apolônio e isto lhe parecer razoável, ele não terá dificuldade em aceitar, por pouco que precise. Mas um salário pelo que ensina, jamais, por muito que necessite.”
Outra a Valério: “Ninguém morre, a não ser aparentemente, assim como ninguém nasce, a não ser em aparência. Com efeito, a passagem da essência à substância, eis o que se chama nascer; e o que se chama morrer é, ao contrário, a passagem da substância à essência.”
Aos sacrificadores do Olimpo: † “Os deuses não necessitam de sacrifícios. Que se deve fazer, então, para lhes ser agradável? Se não me engano, é preciso procurar adquirir a divina sabedoria e prestar, tanto quanto possível, serviços aos que o merecem. Eis o de que gostam os deuses. Os próprios ímpios podem fazer sacrifícios.”
Aos efésios do templo de Diana: † “Conservastes todos os ritos dos sacrifícios, todo o fausto da realeza. Como banqueteadores e convivas alegres, sois irrepreensíveis; mas quantas censuras não vos podem ser feitas, como vizinhos da deusa noite e dia? Não é de vosso meio que saem os vigaristas, os salteadores, os mercadores de escravos, todos os homens ímpios e injustos? O templo é um covil de ladrões.”
Aos que se julgam sábios: “Dizeis que sois meus discípulos? Pois bem! acrescentai que permaneceis sempre em casa, jamais ides às termas, não matais os animais, não comeis carne, estais livres das paixões, da inveja, da malignidade, do ódio, da calúnia, do ressentimento, que, enfim, pertenceis ao número dos homens livres. Não façais como os que, em discursos mentirosos, fazem crer que vivem de um modo, ao passo que vivem de modo totalmente oposto.”
Ao seu irmão Hestieu: “Em toda parte sou olhado como um homem divino; nalguns lugares chegam a me tomar por um deus. Em minha pátria, contudo, não passo de um desconhecido. É de admirar? Vós mesmos, meus irmãos, bem vejo que ainda não estais convencidos de que eu seja superior a muitos homens pela palavra e pelos costumes. E como os meus concidadãos e os meus parentes se enganaram a meu respeito? Ah! este erro me é bem doloroso! Sei que é belo considerar toda a Terra como sua pátria e todos os homens como irmãos e amigos, já que todos descendem de Deus e são de uma mesma natureza, visto terem igualmente as mesmas paixões e serem todos, igualmente, homens, quer nascidos gregos ou bárbaros.”
Estando em Catânia, † na Sicília, numa instrução dada a seus discípulos, falando do Etna, † disse: “Escutando-os, sob essa montanha geme acorrentado algum gigante, Tifeu † ou Enceládio, † que, em sua longa agonia, vomita todo esse fogo. Concordo que tenham existido gigantes, porque, em diversos locais, túmulos entreabertos nos deixam ver esqueletos que indicam homens de estatura extraordinária; mas eu não poderia admitir que tivessem entrado em luta contra os deuses; no máximo teriam ultrajado seus templos e suas estátuas. Mas que tenham escalado o céu e dali expulsado os deuses, é insensato dizer e acreditar. Outra fábula, que parece menos irreverente para com os deuses e da qual já não devemos fazer caso, é que Vulcano † trabalha na forja nas profundezas do Etna e que ali faz incessantemente retinir a bigorna. Em diversos pontos da Terra há outros vulcões e ninguém se lembra de dizer que haja outros tantos gigantes e Vulcanos.”
8. — Certos leitores teriam achado mais interessante que citássemos os prodígios de Apolônio para os comentar e explicar; mas, antes de tudo, quisemos mostrar o filósofo e o sábio, em vez do taumaturgo. Pode-se aceitar ou rejeitar tudo quanto se queira dos fatos maravilhosos a ele atribuídos, mas parece difícil que um homem que diz tais palavras, que professa e pratica tais princípios, seja um prestidigitador, um velhaco, ou um possesso do demônio.
No que respeita a prodígios, citaremos apenas um, que prova suficientemente uma das faculdades de que ele era dotado. Depois de narrar minuciosamente o assassinato de Domiciano, acrescenta Filostrato:
“Enquanto tais fatos se passavam em Roma, Apolônio os via em Éfeso.
Domiciano foi assaltado por Clemente por volta de meio-dia [Veja os
detalhes da morte do imperador na web † ];
no mesmo dia, no mesmo momento, Apolônio dissertava nos jardins contíguos
aos xistos. De repente baixou um pouco a voz, como se tomado de súbito
pavor. Continuou seu discurso, mas a linguagem não tinha a força habitual,
como acontece aos que falam pensando em outra coisa. Depois se calou,
como quem perde o fio da conversa; lançou para o chão um olhar assustador,
deu três ou quatro passos à frente e exclamou: “Fulmina o tirano! fulmina!”
Dir-se-ia que visse não a imagem do fato num espelho, mas o próprio
fato em toda a sua realidade. Os efésios (porquanto Éfeso inteira assistia
ao discurso de Apolônio) foram tomados de espanto. Apolônio parou, semelhante
a um homem que buscasse ver o desfecho de um acontecimento duvidoso.
Enfim exclamou: “Tende bom ânimo, efésios. O tirano foi morto hoje.
Que digo, hoje? Por minerva! Acaba de ser morto agora mesmo, quando
me interrompi.” Os efésios pensaram que Apolônio houvesse perdido o
juízo; desejavam vivamente que ele tivesse dito a verdade, mas temiam
que algum perigo resultasse desse discurso. “Não me admiro — disse Apolônio
— que ainda não me acreditem: a própria Roma ainda não sabe por completo.
Mas eis que o saberá, a notícia se espalha e milhares de cidadãos já
acreditam; isto faz pular de alegria o duplo desses homens e o quádruplo
e o povo inteiro. A notícia logo chegará aqui; podeis adiar, até que
souberdes do fato, o sacrifício que deveis oferecer aos deuses por esta
ocasião. Quanto a mim, retiro-me para lhes render graças pelo que vi.”
Os efésios mantiveram-se na sua incredulidade, mas logo vieram mensageiros
para lhes anunciar a boa nova e testemunharem em favor da ciência de
Apolônio; porque o assassinato do tirano, o dia e a hora em que foi
consumado, o autor do assassínio, que havia entusiasmado Apolônio, todos
os detalhes eram perfeitamente conformes aos que os deuses lhe haviam
mostrado no dia em que discursava aos efésios.”
Naquela época nada mais era preciso para fazê-lo passar por um homem
divino. Em nossos dias os cientistas o teriam tratado como visionário.
Para nós era dotado da segunda vista, cuja explicação é dada pelo Espiritismo.
(Vide a teoria do sonambulismo e da dupla vista em
O Livro dos Espíritos, nº 455.)
Sua morte apresentou outro prodígio. Certa tarde, tendo entrado no templo de Dictina [Ártemis Dictina], em Lynde (Creta), † não obstante os cães ferozes que lhe guardavam a entrada e que, em vez de ladrar à sua chegada, vieram acariciá-lo, foi, por isto mesmo, detido como mago pelos guardas do templo, e acorrentado. Durante a noite desapareceu à vista dos guardas, sem deixar vestígios e sem que lhe encontrassem o corpo. Dizem que naquela ocasião foram ouvidas vozes de moças que cantavam: “Deixai a Terra; ide para o Céu, ide!” como para o exortar a elevar-se da Terra para as regiões superiores.
Assim termina Filostrato a narração da vida de Apolônio:
“Mesmo depois de desaparecido, Apolônio sustentou a imortalidade da alma e ensinou que é verdade aquilo que se diz a respeito. Havia então em Tiana um certo número de jovens apaixonados por sua filosofia; a maior parte de suas discussões girava em torno da alma. Um deles não podia admitir que fosse imortal. Eis dez meses — dizia ele — que rogo a Apolônio me revele a verdade sobre a imortalidade da alma; mas ele está tão morto que minhas preces são inúteis, não me aparecendo nem mesmo para provar que era imortal. Cinco dias depois falou do mesmo assunto com os seus companheiros e adormeceu no mesmo lugar em que havia ocorrido a discussão. De repente pulou, como se vitimado por um acesso de demência: estava meio adormecido e banhado de suor. Eu te acredito, bradou ele. Seus camaradas perguntaram-lhe o que tinha. Não vedes o sábio Apolônio? Está em nosso meio, ouve a nossa discussão e recita melodiosos cantos sobre a alma. — Onde está ele? perguntaram os outros, pois não o vemos e isto é uma felicidade que preferiríamos a todos os bens da Terra. — Parece que veio só para mim: quer ensinar-me aquilo que me recusava a crer. Escutai, pois, escutai os cantos divinos que me faz ouvir:
“A alma é imortal; não é vossa, mas da Providência. Quando o corpo está esgotado, semelhante a um corredor veloz que vence todo o seu trajeto, a alma se eleva e se precipita nos espaços etéreos, tomada de desprezo pela triste e rude escravidão que sofreu. Mas que vos importam essas coisas! Conhecê-las-ei quando não mais existirdes. Por que tentar penetrar esses mistérios, se ainda vos encontrais entre os vivos?”
“Tal o oráculo tão claro, dado por Apolônio sobre os destinos da alma. Quis ele que, conhecendo a nossa natureza, marchássemos com o coração alegre, para o fim que nos destinam as Parcas.”
9. — A aparição de Apolônio depois da morte é tratada como alucinação
pela maioria de seus comentadores, cristãos ou outros, que pretendiam
que o jovem tivesse a imaginação ferida pelo próprio desejo de o ver,
o que o levou apensar que o tinha visto. Em todos os tempos, contudo,
a Igreja, tem reconhecido esse tipo de aparição; cita vários exemplos
como autênticos. O Espiritismo vem explicar o fenômeno, baseado nas
propriedades do perispírito, envoltório ou corpo fluídico do Espírito
que, por uma espécie de condensação, toma uma aparência visível e pode,
como se sabe, tornar-se tangível. Sem o conhecimento da lei constitutiva
dos Espíritos, esse fenômeno é maravilhoso; conhecida a lei, o maravilhoso
desaparece para dar lugar a um fenômeno natural. (Vide em O
Livro dos Médiuns a teoria das manifestações visuais, capítulo VI.)
Admitindo que o jovem tivesse sido joguete de uma ilusão, restaria aos
negadores explicar as palavras atribuídas a Apolônio, palavras sublimes
e inteiramente opostas às ideias que, momentos antes, ele acabava de
sustentar.
O que faltava a Apolônio para ser cristão? Muito pouco, como se vê. Não permita
Deus que estabeleçamos um paralelo entre ele e o Cristo! O que prova
a incontestável superioridade deste e a divindade de sua missão é a
revolução produzida no mundo inteiro pela doutrina que ele, obscuro,
e seus apóstolos, tão obscuros quanto ele, pregaram, enquanto que a
de Apolônio morreu com ele. Seria, pois, impiedade apresentá-lo como
rival do Cristo! Mas, se quisermos prestar atenção ao que disse a respeito
do culto pagão, veremos que condena as formas supersticiosas e lhes
desfere terrível golpe, substituindo-as por ideias mais sãs. Se assim
tivesse falado ao tempo de Sócrates teria, como este último, pago com
a vida aquilo que haveriam chamado a sua impiedade. Mas na época em
que viveu as crenças pagãs já haviam feito sua parte e ele foi ouvido.
Por sua moral preparou os pagãos, em cujo meio viveu, para receberem,
com menos dificuldade, as ideias cristãs, às quais serviu de transição.
Assim, acreditamos estar com a verdade, dizendo que ele serviu de traço
de união entre o paganismo e o Cristianismo. Sob esse aspecto, talvez
tivesse ele também uma missão. Podia ser ouvido pelos pagãos, mas não
o foi pelos judeus. [v. O
Espiritualismo e o ideal na arte e na poesia dos gregos, do mesmo
autor.]
[1]
Apolônio de Tiana, sua vida, suas viagens, seus prodígios [Appolonius
de Tyane, sa vie, ses voyages, ses prodiges - Google Books];
por Filostrato. Nova tradução do texto grego, pelo Sr. Chassang, †
mestre de conferências na Escola Normal. — 1 vol. in-12 de 500 páginas.
Preço: 3,50 francos. Casa Didier & Cia, editores, Quai des Augustins,
35, Paris.
[2]
[v. Júlia Domna, Séptimo-Severo, Filostrato… na
web. †