1. — Informam-nos de Bordeaux † que um eclesiástico daquela cidade escreveu a uma senhora muito idosa a carta seguinte, datada de 8 de janeiro último. Estamos formalmente autorizados a publicá-la, bem como a resposta que lhe foi dada.
“Senhora,
“Lamento ontem não ter podido conversar convosco em particular a respeito de certas práticas religiosas contrárias ao ensino da santa Igreja. Falou-se muito disto em vossa família e mesmo da existência de um círculo. Eu me sentiria feliz, senhora, se soubesse que só tendes desprezo por essas superstições diabólicas e que estais sempre sinceramente ligada aos dogmas invariáveis da religião católica.
“Tenho a honra, etc.
“X…”
RESPOSTA.
“Meu caro Sr. Abade,
“Estando minha mãe muito doente para responder pessoalmente à vossa bondosa carta de 8 do corrente, apresso-me em o fazer por ela e de sua parte, a fim de tranquilizar vossa solicitude quanto aos perigos que ela e sua família podem correr.
“Caro senhor, em minha casa não se realiza nenhuma prática religiosa que possa inquietar os católicos mais fervorosos, a menos que o respeito e a prece pelos mortos, a fé na imortalidade da alma, uma confiança ilimitada no amor e na bondade de Deus, uma observância tão rígida quanto o permite a natureza humana das santas doutrinas do Cristo sejam práticas reprovadas pela santa Igreja católica.
“Quanto ao que possam dizer de minha família, mesmo da existência de um círculo, estou tranquila: jamais dirão, aqui ou alhures, que algum de nós tenha feito algo do qual tenha de corar ou esconder-se; e eu não coro nem me oculto por admitir o desenvolvimento e a clareza que as manifestações espíritas espalham para mim e para muitos outros, sobre aquilo que havia de obscuro, do ponto de vista de minha inteligência, em tudo quanto parecia sair das leis da Natureza. Devo a essas superstições diabólicas o crer com sinceridade, com reconhecimento, em todos os milagres que a Igreja nos dá como artigo de fé e que, até o presente, eu encarava como símbolos, ou, antes — confesso-o — como fantasias. Devo-lhes uma paz de espírito que até agora não tinha obtido, fossem quais fossem os meus esforços. Devo-lhes a fé, a fé sem limites, sem reflexão, sem comentários; enfim, a fé, tal como recomenda a santa Igreja aos seus filhos, tal como o Senhor deve exigir das criaturas, tal como nosso divino Salvador a pregou pela palavra e pelo exemplo.
“Tranquilizai-vos, pois, caríssimo senhor. O bom Pastor reuniu em seu redor as ovelhas indiferentes que o seguiam maquinalmente por hábito e que, agora, o seguem e o seguirão sempre com amor e reconhecimento. O divino Mestre perdoou a São Tomé por só haver acreditado depois de ter visto. Pois bem! Ainda hoje ele vem fazer que os incrédulos toquem o seu lado e as suas mãos e é com um amor sem-nome que aqueles que duvidam se aproximam para beijar seus pés sangrentos e agradecer a esse pai bom e misericordioso por permitir que essas verdades imutáveis se tornem palpáveis, a fim de fortalecer os fracos e esclarecer os cegos que se recusavam até a ver a luz que brilha há tantos séculos.
“Permiti, agora, que eu reabilite minha mãe aos olhos da santa Igreja. De toda minha família, meu marido e eu somos os únicos que temos a felicidade de seguir esta via que cada um tem liberdade de julgar do seu ponto de vista. Apresso-me, pois, a vos tranquilizar a tal respeito. Quanto a mim, pessoalmente, encontrei muita força e consolo na certeza palpável de que aqueles que nós amamos, e que choramos, estão sempre ao nosso lado, pregando o amor a Deus acima de tudo; o amor ao próximo, a caridade sob todas as suas faces, a abnegação, o esquecimento das injúrias, o bem pelo mal (o que, parece, não se afasta dos dogmas da Igreja) que, aconteça o que acontecer, me prendo àquilo que sei, ao que vi, pedindo a Deus que envie as suas consolações àqueles que, como eu, não ousavam refletir nos mistérios da religião, temerosos de que essa pobre razão humana, que só quer admitir o que compreende, destruísse as crenças que o hábito me dava um ar de possuir.
“Agradeço, pois, ao Senhor, cuja bondade e poder incontestáveis permitem aos anjos e aos santos agora se tornarem visíveis, para salvarem os homens da dúvida e da negação, o que tinha sido permitido ao demônio fazer para os perder desde a criação do mundo. Tudo é possível a Deus, mesmo os milagres. Hoje o reconheço com felicidade e confiança.
“Recebei, caro senhor abade, meus sinceros agradecimentos pelo interesse que houvestes por bem testemunhar-nos e crede que faço votos ardentes para ver entrar em todos os corações a fé e o amor que hoje tenho a felicidade de possuir.
“Aceitai, etc.,
Émilie Collignon.”
Observação. – Desobrigamo-nos de qualquer comentário a esta carta, deixando a cada um o cuidado de apreciá-la. Apenas diremos que conhecemos um grande número de escritos no mesmo sentido.
2. — A passagem seguinte, extraída de uma delas, pode resumi-las, se não quanto aos termos, pelo menos quanto ao sentido:
“Embora nascida e batizada na religião católica, apostólica e romana, há trinta anos, isto é, desde a minha primeira comunhão, tinha esquecido minhas preces e o caminho da igreja; numa palavra, em mais nada acreditava, salvo na realidade da vida presente. Por uma graça celeste, o Espiritismo veio, finalmente, abrir-me os olhos; hoje os fatos me falaram. Não apenas creio em Deus e na alma, mas na vida futura, feliz ou desgraçada. Creio num Deus justo e bom, que pune os atos maus e não as crenças equivocadas. Como um mudo que recobra a palavra, lembrei-me de minhas preces e oro, não mais com os lábios e sem compreender, mas com o coração, a inteligência, com fé e amor. Ainda há pouco eu julgava ser um ato de fraqueza aproximar-me dos sacramentos da Igreja; hoje acredito praticar um ato de humildade agradável a Deus em os receber. Vós me repelis mesmo do tribunal da penitência; antes de mais, impondes uma retratação formal de minhas crenças espíritas; quereis que renuncie a conversar com o filho querido que perdi, e que veio dizer-me palavras tão doces, tão consoladoras; quereis que eu declare que essa criança, que reconheci como se estivesse viva em minha frente, é o demônio! Não! uma mãe não se engana assim tão grosseiramente. Mas, Sr. abade, são as próprias palavras dessa criança que, tendo-me convencido da vida futura, me reconduzem à Igreja! Como, pois, quereis que eu creia que é o demônio? Se isto é a última palavra da Igreja, há de se perguntar o que acontecerá quando todo mundo for espírita.
“Chamaste-me a atenção do alto da cátedra; apontaste-me com o dedo; levantastes contra mim uma populaça fanática; fizestes retirar de uma pobre mulher que compartilha de minhas crenças o trabalho que a fazia viver, dizendo-lhe que ela seria auxiliada se deixasse de me ver, esperando dobrá-la pela fome. Francamente, Sr. abade, Jesus-Cristo teria feito isto?
“Dizeis agir conforme a vossa consciência. Não tendes receio de que eu cometa violência e achais acertado que eu aja conforme a minha consciência. Contudo, me repelistes da Igreja; não tentarei lá voltar à força, porque em qualquer lugar a prece é agradável a Deus. Deixai-me apenas historiar as causas que, há tanto tempo, dela me haviam afastado; que fizeram a princípio nascer em mim a dúvida e desta à negação de tudo. Se agora sou maldita, como pretendeis, vereis a quem cabe a responsabilidade.”
Observação. – As reflexões que se originam de semelhantes coisas resumem-se em duas palavras: Fatal imprudência! Fatal cegueira! Tivemos em mão um manuscrito intitulado: Memórias de um incrédulo. É um curioso relato das causas que levam o homem às ideias materialistas e dos meios pelos quais ele pode ser reconduzido à fé. Ainda não sabemos se é intenção do autor publicá-lo.