O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão.
Doutrina espírita - 1ª parte.

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Revista espírita — Ano V — Fevereiro de 1862.

(Idioma francês)

Votos de Boas-Festas.

(Sumário)


1. — Várias centenas de cartas nos foram dirigidas por ocasião do Ano-Novo, de sorte que nos é materialmente impossível responder a cada uma em particular. Rogamos, pois, aos nossos honrados correspondentes aceitarem aqui a expressão da nossa sincera gratidão pelos testemunhos de simpatia com que nos prodigalizaram. Entre elas, contudo, uma há que, por sua natureza, exige uma resposta especial: é a dos espíritas de Lyon,  †  subscrita por cerca de duzentas assinaturas. Aproveitamos a oportunidade para acrescentar, a seu pedido, alguns conselhos gerais. A Sociedade Espírita de Paris,  †  à qual já demos conhecimento, julgando que podia ser útil a todos, não só nos solicitou a publicá-la na Revista, como decidiu pela sua impressão separada, a fim de ser distribuída a todos os seus sócios. Todos os que tiveram a gentileza de nos escrever, por certo participarão dos sentimentos de reciprocidade que aí exprimimos e que se dirigem, sem exceção, a todos os espíritas, franceses e estrangeiros, que nos honram com o título de seu chefe e de seu guia na nova estrada que se lhes descortina. Não é, pois, somente aos que nos escreveram por ocasião do Ano-Novo que nos estamos dirigindo, mas a todos os que, a cada instante, nos dão provas tão comoventes de seu reconhecimento pela felicidade e pelas consolações que haurem na doutrina, cientes que estão das nossas dificuldades e dos esforços empregados com vistas a favorecer a sua propagação; a todos, enfim, que acreditam sirvam os nossos trabalhos para alguma coisa na marcha progressiva do Espiritismo.


2. RESPOSTA DIRIGIDA AOS ESPÍRITAS LIONESES POR OCASIÃO DO ANO-NOVO.


Meus caros irmãos e amigos de Lyon,

A mensagem coletiva que houvestes por bem me enviar pela passagem do Ano-Novo causou-me viva satisfação, provando que conservastes de mim uma boa recordação. Mas o que mais me alegrou nesse ato espontâneo foi ter encontrado, entre as numerosas assinaturas que ali figuram, representantes de quase todos os grupos, porque é um sinal da harmonia que deve reinar entre eles. Sinto-me feliz por terdes compreendido perfeitamente o objetivo dessa organização [v. Organização do Espiritismo], cujos resultados já podeis apreciar, porquanto agora vos deve ser evidente que uma sociedade única teria sido quase impossível.

Agradeço-vos, meus bons amigos, os votos que formulais; eles me são tanto mais agradáveis quanto sei que partem do coração, e são estes que Deus ouve. Ficai satisfeitos, porque ele os acolhe diariamente, dando-me a alegria inaudita no estabelecimento de uma nova doutrina, de ver aquela a que me devotei crescer e prosperar, em meus dias, com extraordinária rapidez. Considero como um grande favor do céu poder testemunhar o bem que ela já fez. Essa certeza, da qual diariamente recebo os mais tocantes testemunhos, paga-me com juros todas as penas e fadigas. Não peço a Deus senão uma graça: a de me dar força física suficiente para ir até o fim de minha tarefa, que está longe de terminar. Mas, haja o que houver, terei sempre a consolação da certeza de que a semente das ideias novas, agora espalhadas por toda parte, é imperecível. Mais feliz que muitos outros, que não trabalharam senão para o futuro, a mim já é dado ver os primeiros frutos. Só lamento que a exiguidade de meus recursos pessoais não me tenha permitido pôr em execução os planos que tracei, a fim de que o avanço ocorresse de maneira ainda mais rápida. No entanto, se em sua sabedoria Deus o quis de outro modo, legarei esses planos aos meus sucessores que, sem dúvida, haverão de ser mais felizes. Apesar da penúria de recursos materiais, o movimento que se opera na opinião pública ultrapassou toda a expectativa. Crede, meus irmãos, que nisto o vosso exemplo teve influência. Recebei, pois, nossos cumprimentos pela maneira por que sabeis compreender e praticar a doutrina. Sei o quanto são grandes as provas que muitos de vós tendes de suportar; só Deus lhes conhece o termo neste mundo. Mas, também, quanta força contra a adversidade nos dá a fé no futuro! Oh! lastimai os que acreditam no nada após a morte, porquanto, para eles, o mal presente não tem compensação. O incrédulo infeliz é como o doente que não espera nenhuma cura; o espírita, ao contrário, é aquele que, doente hoje, sabe que amanhã estará bem.


3. — Pedis que continue com os meus conselhos. Eu os dou com muito gosto aos que creem necessitar deles e os reclamam. Mas só a esses. Aos que julgam muito saber e sentem-se dispensados das lições da experiência, nada direi; apenas desejo que um dia não se lamentem por haverem sobreestimado as próprias forças. Tal pretensão, aliás, acusa um sentimento de orgulho, contrário ao verdadeiro espírito do Espiritismo. Ora, pecando pela base, só por isto provam que se afastam da verdade. Não sois desse número, meus amigos; aproveito, pois, a circunstância para vos dirigir algumas palavras, a fim de provar que, de longe como de perto, sou todo vosso.

No ponto em que hoje as coisas se acham, e levando-se em conta a marcha do Espiritismo através dos obstáculos semeados em seu caminho, pode-se dizer que as principais dificuldades estão vencidas. Ele tomou o seu lugar e assentou-se em bases que doravante desafiam os esforços de seus adversários. Pergunta-se como pode ter adversários uma doutrina que nos torna felizes e melhores. Isto é muito natural. Nos seus primórdios, o estabelecimento das melhores coisas sempre fere interesses. Não tem sido assim com todas as invenções e descobertas que revolucionaram a indústria? Não tiveram inimigos obstinados as que hoje são consideradas como benefícios e das quais não poderíamos nos privar? Toda lei que reprime abusos não tem contra si os que vivem do abuso? Como queríeis que uma doutrina, que conduz ao reino da caridade efetiva, não fosse combatida pelos que vivem do egoísmo? E sabeis o quanto são estes numerosos na Terra. No princípio esperavam matá-lo pela zombaria; hoje veem que tal arma é impotente e, sob o fogo cerrado dos sarcasmos, ele continuou sua rota sem se deter. Não penseis que se confessarão vencidos. Não; o interesse material é mais tenaz. Reconhecendo que é uma potência, com a qual agora é preciso contar, vão desferir ataques mais sérios, mas que só servirão para melhor provar a fraqueza deles. Uns o atacarão abertamente, em palavras e em ações, e o perseguirão até na pessoa de seus aderentes, tentando desencorajá-los a força de intrigas, enquanto outros, sub-repticiamente, por vias indiretas, procurarão miná-lo secretamente. Ficai avisados de que a luta não terminou. Estou prevenido de que tentarão um supremo esforço; mas não temais: a garantia do sucesso está nesta divisa, que é a de todos os verdadeiros espíritas: Fora da caridade não há salvação. ( † ) Empunhai-a bem alto, porque ela é a cabeça de medusa para os egoístas.

A tática já posta em ação pelos inimigos dos espíritas, mas que vai ser empregada com novo ardor, é a de tentar dividi-los, criando sistemas divergentes e suscitando entre eles a desconfiança e a inveja. Não vos deixeis cair na armadilha e tende como certo que aquele que procura, seja por que meio for, romper a boa harmonia, não pode estar animado de boas intenções. Eis por que vos exorto a guardar a maior prudência na formação dos vossos grupos, não só para a vossa tranquilidade, mas no próprio interesse dos vossos trabalhos.

A natureza dos trabalhos espíritas exige calma e recolhimento. Ora, não há recolhimento possível se somos distraídos pelas discussões e pela expressão de sentimentos malévolos. Se houver fraternidade não haverá sentimentos de malquerença; mas não pode haver fraternidade com egoístas, com ambiciosos e orgulhosos. Com orgulhosos, que se escandalizam e se melindram por tudo; com ambiciosos, que se decepcionam quando não têm a supremacia, e com egoístas que só pensam em si mesmos, a cizânia não tardará a ser introduzida e, com ela, a dissolução. É o que gostariam os inimigos e é o que tentarão fazer. Se um grupo quiser estar em condições de ordem, de tranquilidade, de estabilidade, faz-se mister que nele reine um sentimento fraternal. Todo grupo que se formar sem ter por base a caridade efetiva, não terá vitalidade, ao passo que os que se fundarem segundo o verdadeiro espírito da doutrina olhar-se-ão como membros de uma mesma família que, embora não podendo viver sob o mesmo teto, moram em lugares diversos. Entre eles a rivalidade seria uma insensatez; não poderia existir onde reina a verdadeira caridade, porquanto esta não pode ser entendida de duas maneiras. Assim, reconhecereis o verdadeiro espírita pela prática da caridade em pensamentos, palavras e ações; e vos digo que aquele que em sua alma nutrir sentimentos de animosidade, de rancor, de ódio, de inveja ou de ciúme, mente a si mesmo se aspira a compreender e a praticar o Espiritismo.

O egoísmo e o orgulho matam as sociedades particulares, como destroem os povos e a sociedade em geral. Lede a História e vereis que os povos sucumbem sob a opressão desses dois mortais inimigos da felicidade dos homens. Quando se apoiarem nas bases da caridade, serão indissolúveis, porque estarão em paz entre si e com eles próprios, cada um respeitando os direitos e os bens dos vizinhos. Eis a era nova predita, da qual o Espiritismo é o precursor, e para a qual todo espírita deve trabalhar, cada um em sua esfera de atividade. É uma tarefa que lhes compete e da qual serão recompensados conforme a maneira por que a tenham realizado, pois Deus saberá distinguir os que, no Espiritismo, não buscaram senão a sua satisfação pessoal, daqueles que ao mesmo tempo trabalharam pela felicidade de seus irmãos.

Devo ainda vos chamar a atenção para outra tática de nossos adversários: a de procurar comprometer os espíritas, induzindo-os a se afastarem do verdadeiro objetivo da doutrina, que é o da moral, para abordarem questões que não são de sua competência e que poderiam, com toda a razão, despertar susceptibilidades e desconfianças. Também não vos deixeis cair nessa armadilha; afastai cuidadosamente de vossas reuniões tudo quanto disser respeito à política e às questões irritantes; nesse caso, as discussões não levarão a nada e apenas suscitarão embaraços, enquanto ninguém questionará a moral, quando ela for boa. Procurai, no Espiritismo, aquilo que vos pode melhorar; eis o essencial. Quando os homens forem melhores, as reformas sociais verdadeiramente úteis serão uma consequência natural. Trabalhando pelo progresso moral, assentareis os verdadeiros e mais sólidos fundamentos de todas as melhoras, deixando a Deus o cuidado de fazer que as coisas cheguem no devido tempo. No próprio interesse do Espiritismo, que ainda é jovem, mas que amadurece depressa, deveis opor uma firmeza inabalável aos que buscarem vos arrastar por um caminho perigoso.


4. — Visando a desacreditar o Espiritismo, pretendem alguns que ele vai destruir a religião. Sabeis que é exatamente o contrário, pois a maioria de vós, que mal acreditáveis em Deus e na alma, agora creem; quem não sabia o que era orar, ora com fervor; quem não mais punha os pés nas igrejas, a elas vão com recolhimento. Aliás, se a religião devesse ser destruída pelo Espiritismo, é que ela seria destrutível e o Espiritismo mais poderoso. Afirmá-lo seria falta de habilidade, porquanto seria confessar a fraqueza de uma e a força do outro.


5. — O ESPIRITISMO É UMA DOUTRINA MORAL QUE FORTALECE OS SENTIMENTOS RELIGIOSOS EM GERAL E SE APLICA A TODAS A RELIGIÕES; É DE TODAS, E NÃO PERTENCE A NENHUMA EM PARTICULAR. POR ISSO NÃO ACONSELHA A NINGUÉM QUE MUDE DE RELIGIÃO. Deixa a cada um a liberdade de adorar Deus à sua maneira e de observar as práticas ditadas pela sua consciência, pois Deus leva mais em conta a intenção que o fato. Ide, pois, cada um, ao templo do vosso culto, e assim provareis que vos caluniam, quando vos acusarem de impiedade.


6. — Na impossibilidade material em que me acho de manter relações com todos os grupos, pedi a um de vossos confrades que me representasse especialmente em Lyon, como o fiz alhures: é o Sr. Villon, cujo zelo e devotamento conheceis tão bem quanto a pureza de seus sentimentos. Além disso, sua posição independente lhe dá mais folga para a tarefa de que se quer encarregar; tarefa pesada, mas ante a qual não recuará. O grupo por ele formado em sua casa o foi sob os meus auspícios e conforme minhas instruções, quando de minha última viagem. Ali encontrareis excelentes conselhos e salutares exemplos. Verei com viva satisfação todos os que me honram com a sua confiança a ele se ligarem, como a um centro comum. Se alguns quiserem fazer um grupo à parte, evitai olhá-los com aversão; e, se vos atirarem pedras, não as recolhais, nem as devolvais: entre eles e vós Deus será o juiz dos sentimentos de cada um. Que aqueles que se julgam os únicos certos o provem por maior caridade e maior abnegação, porquanto a caridade não poderia estar do lado daquele que não cumpre o primeiro preceito da doutrina. Se estiverdes em dúvida, fazei sempre o bem: os erros do espírito sempre pesam menos na balança de Deus que os erros do coração.

Repetirei aqui o que já disse em outras oportunidades: em caso de divergência de opinião, o meio fácil de sair da incerteza é ver qual a opinião que reúne o maior número de partidários, pois há nas massas um bom-senso inato que não se deixa enganar. O erro só seduz alguns espíritos enceguecidos pelo amor-próprio e por um falso julgamento, mas a verdade acaba sempre vitoriosa. Tende certeza de que o erro deserta das fileiras que se esclarecem, e que há uma obstinação irracional em crer que um só tenha razão contra todos. Se os princípios que professo só encontrassem alguns ecos isolados e fossem repelidos pela opinião geral, eu seria o primeiro a reconhecer que me havia enganado. Mas vendo crescer incessantemente o número dos aderentes, em todas as classes da sociedade e em todos os países do mundo, devo acreditar na solidez das bases sobre as quais repousam. Eis por que vos digo com toda a segurança: marchai firmemente na via que vos é traçada; dizei aos vossos antagonistas que, se quiserem que os sigais, que vos ofereçam uma doutrina mais consoladora, mais clara, mais inteligível, que melhor satisfaça à razão è que, ao mesmo tempo, seja uma garantia para a ordem social. Pela vossa união, frustrareis os cálculos dos que vos quisessem dividir. Provai, enfim, pelo vosso exemplo, que a doutrina nos torna mais moderados, mais brandos, mais pacientes e mais indulgentes. Esta é a melhor resposta a ser dada aos detratores, ao mesmo tempo que a vista dos resultados benéficos é o mais poderoso meio de propaganda.

Eis, meus amigos, os conselhos que vos dou e aos quais acrescento os meus votos de Boas-Festas para o ano que começa. Não sei que provas Deus nos destina este ano, mas sei que, sejam quais forem, as suportarei com firmeza e resignação, pois sabeis, para vós, como para o soldado, que a recompensa é proporcional à coragem.

Quanto ao Espiritismo, pelo qual mais vos interessais que por vós mesmos, e cujo progresso, pela minha posição, posso julgar melhor que ninguém, sinto-me feliz em vos dizer que o ano se inicia sob os mais favoráveis auspícios e, sem dúvida, verá crescer o número de adeptos numa proporção impossível de ser prevista. Mais alguns anos como estes que se passaram e o Espiritismo terá arrebanhado três quartas partes da população.

Deixai que vos cite um fato entre milhares.

Num Departamento vizinho de Paris existe uma pequena cidade onde o Espiritismo penetrou apenas há seis meses. Em poucas semanas tomou um desenvolvimento considerável; uma oposição formidável foi logo organizada contra os seus partidários, ameaçando até mesmo os seus interesses privados. Eles enfrentaram tudo com uma coragem e um desinteresse dignos dos maiores elogios; entregaram-se à Providência e a Providência não lhes faltou. Essa cidade conta uma população operária numerosa, em cujo meio as ideias espíritas, graças à oposição que fizeram, manifestam-se rapidamente. Ora, um fato digno de nota é que as mulheres e as jovens, em vez de aguardarem os habituais presentes do Ano-Novo, preferiram adquirir as obras necessárias à sua instrução, de modo que, só para essa cidade, encarregou-se um livreiro de as expedir às centenas. Não é prodigioso ver simples operários reservarem suas economias para comprar livros de moral e de filosofia, em lugar de romances e bugigangas? homens preferindo esta leitura às alegrias ruidosas e degradantes dos cabarés? Ah! é que aqueles homens e aquelas mulheres, sofredores como vós, agora compreendem que não é aqui que se realiza a sua sorte; ergue-se a cortina e eles entreveem os esplêndidos horizontes do futuro. Esta cidadezinha é Chauny,  †  no Departamento do Aisne. Novos filhos na grande família, eles vos saúdam, companheiros de Lyon, como seus irmãos mais velhos, formando, desde agora, um dos elos da cadeia espiritual que já une Paris,  †  Lyon,  †  Metz,  †  Sens,  †  Bordeaux  †  e outras, e que em breve ligará todas as cidades do mundo num sentimento de mútua confraternidade; porque em toda parte o Espiritismo lançou sementes fecundas e seus filhos se dão as mãos por cima das barreiras dos preconceitos de seitas, castas e nacionalidades.

Vosso dedicado irmão e amigo,

Allan Kardec.


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