O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão.
Doutrina espírita - 1ª parte.

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Revista espírita — Ano IV — Julho de 1861.

(Idioma francês)

DISSERTAÇÕES E ENSINOS ESPÍRITAS.

EM DITADOS ESPONTÂNEOS.

Hospital público. n

(Recebido pelo Sr. A. Didier, médium da Sociedade.)

(Sumário)


1. — Uma noite de inverno eu seguia os cais sombrios que confinam Notre-Dame.  †  Como bem o compreendeu um poeta, é o bairro do desespero e da morte. Essa região sempre foi, desde o Pátio dos Milagres até o Necrotério, o receptáculo de todas as misérias humanas. Hoje, que tudo se desmorona, esses imensos monumentos da agonia, que o homem chama Santas Casas de Misericórdia, talvez venham a cair também. Eu olhava essas luzes embaciadas que varam paredes sombrias e me dizia: Quantas mortes desesperadas! que fossa comum do pensamento, que traga diariamente tantos corações mudados, tantas inocências gangrenadas! É lá que têm morrido tantos sonhadores, poetas, artistas ou sábios! Há um pequeno corredor em ponte sobre o riacho que corre pesadamente; é por ali que passam os que não vivem mais. Os mortos são levados, então, para outro edifício, em cuja fachada deveriam escrever como na porta do inferno: Aqui não há mais esperança [Divina Comédia, Dante Alighieri]  † . Efetivamente, é aí que o corpo é recortado para servir à Ciência, mas é também aí que a Ciência subtrai à fé o menor vestígio de esperança.

Presa de tais pensamentos eu havia dado alguns passos, mas o pensamento vai mais rápido que nós. Fui alcançado por um rapaz, pálido e tiritando de frio que, sem-cerimônia, pediu fogo para o cachimbo; era um estudante de Medicina. Dito e feito; eu também fumava e entabulei conversa com o desconhecido. Descorado, magro e enfraquecido pelas vigílias, fronte vasta e olhos tristes, tal era, à primeira vista, o aspecto desse homem. Parecia pensativo e eu lhe comuniquei meus pensamentos. — “Acabo de dissecar, disse ele, mas só encontrei a matéria. Ah! meu Deus, acrescentou ele com um sangue-frio glacial, se quiserdes vos desembaraçar da estranha doença cognominada de crença na imortalidade da alma, ide ver diariamente, como eu, dissolver-se com tanta uniformidade essa matéria que chamamos corpo; ide ver como se apagam esses cérebros entusiastas, esses corações generosos ou degradados; ides ver se o nada que os apanha não é o mesmo em todos. Que loucura acreditar!” — Perguntei-lhe a idade. — “Tenho 24 anos, disse ele; agora devo deixar-vos, porque faz muito frio.”

Ao vê-lo afastar-se, perguntei a mim mesmo: É isto o resultado da Ciência?

Continuarei.

Gérard de Nerval. n

Continuarei.


2.Nota. Alguns dias mais tarde a Sra. Costel recebeu, em sua casa, a comunicação seguinte, cuja analogia com a precedente oferece notável particularidade.


Uma noite eu seguia pelos cais desertos; o tempo estava bonito e fazia calor. As estrelas de ouro se destacavam no azul sombrio; a Lua arredondava seu círculo elegante e seus níveos raios iluminavam como um sorriso a água profunda. Os álamos, guardas silenciosos das margens do Sena,  †  erguiam suas formas esbeltas e eu passava lentamente, ora olhando o reflexo dos astros na água, ora o reflexo de Deus na abóbada azulada. À minha frente caminhava uma mulher e, com uma curiosidade pueril, eu lhe seguia os passos, que pareciam regular os meus. Caminhamos assim durante muito tempo. Chegados em frente ao Hospital, cujas fachadas deixavam ver aqui e ali aberturas iluminadas, ela parou e, virando-se para mim, dirigiu-me subitamente a palavra, como se eu fosse seu companheiro. — Amigo, perguntou ela, crês que os que sofrem aqui sofrem mais da alma que do corpo? ou crês que a dor física extingue a centelha divina? — Creio, respondi eu, profundamente surpreendido, que, para a maioria dos infelizes, que a esta hora sofrem e agonizam, a dor física é o descanso e o esquecimento de suas misérias habituais. — Tu te enganas, amigo, retomou ela, sorrindo gravemente. A doença é a suprema angústia para os deserdados da Terra, para os pobres, os ignorantes e os abandonados; ela só deixa no esquecimento os que, semelhantes a ti, não sofrem senão a nostalgia dos bens sonhados e só conhecem as dores idealizadas, coroadas de violetas. Quis falar; ela fez sinal que me calasse e, erguendo a branca mão para o Hospital, disse: Ali se agitam infelizes que calculam o número de horas roubadas pela doença ao seu salário; ali mulheres angustiadas pensam no cabaré que entorpece a mágoa e faz os maridos esquecerem o pão dos filhos; ali, acolá, em toda parte as preocupações terrenas apertam e sufocam o pálido clarão da esperança, que não pode resvalar nessas almas desoladas. Deus é ainda mais esquecido por esses infelizes, vencidos pelo sofrimento, do que no seu paciente labor; é que Deus está muito alto, muito distante, enquanto a miséria está próxima. Que fazer, então, para dar a esses homens, a essas mulheres, o impulso moral necessário para que se despojem de seu invólucro carnal, não como insetos rastejantes, mas como criaturas inteligentes, ou para que entrem menos sombrios e menos desesperados na batalha da vida? Tu, sonhador; tu, poeta que rimas sonetos à Lua, alguma vez já pensaste nesse formidável problema que só duas palavras podem resolver: caridade e amor?

A mulher parecia crescer e o frêmito das coisas divinas corria em mim. Escuta ainda — retomou ela, e sua grande voz parecia encher a cidade com a sua harmonia — Ide todos, vós os poderosos, os ricos, os inteligentes; ide espalhar uma notícia maravilhosa; dizei aos que sofrem e que estão abandonados, que Deus, seu pai, não mais está refugiado no céu inacessível e lhes envia, para os consolar e assistir, os Espíritos daqueles que eles perderam; que seus pais, suas mães, seus filhos, curvados à sua cabeceira e lhes falando a língua conhecida, ensinar-lhes-ão que além da tumba brilha uma nova aurora, semelhante a uma nuvem que dissipa os males terrenos. O anjo abre os olhos de Tobias; que, por sua vez, o anjo do amor abra as almas fechadas dos que sofrem sem esperança. E, dizendo isto, a mulher tocou levemente minhas pálpebras e eu vi, através das paredes do Hospital, os Espíritos, puras chamas, que faziam resplandecer as salas desoladas. Sua união com a Humanidade se consumava, e as chagas da alma e do corpo eram pensadas e aliviadas pelo bálsamo da esperança. Legiões de Espíritos, mais inumeráveis e mais brilhantes que as estrelas, expulsavam de sua frente, como vapores impuros, o desespero, a dúvida, e do ar, da terra, do rio, escapava uma só palavra: amor.

Fiquei muito tempo imóvel e transportado para fora de mim mesmo; depois as trevas invadiram novamente a Terra; o espaço tornou-se deserto. Quando olhei ao meu redor a mulher não mais estava; um grande tremor agitou-me e fiquei indiferente ao que me cercava. Desde essa noite chamaram-me de sonhador e de louco. Oh! que doce e sublime loucura a de crer no despertar do túmulo! Mas como é pungente e estúpida a loucura que mostra o nada como única compensação de nossas misérias, como única recompensa às virtudes obscuras e modestas! Qual é, aqui, o verdadeiro louco: o que espera, ou o que desespera?

Alfred de Musset. n


Após a leitura desta comunicação, Gérard de Nerval dita espontaneamente o que segue, por outro médium, o Sr. Didier:

“Meu nobre amigo Musset terminou por mim. Nós nos havíamos entendido; já que a continuação era exatamente a resposta à primeira parte que ditei, era preciso um estilo diferente e imagens mais consoladoras.”



[1] N. do T.: L’Hôtel-Dieu,  †  em francês, corresponde às nossas Santas Casas de Misericórdia.


[2] [v. Gérard de Nerval.]


[3] [v. Alfred de Musset.]


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