1. — Há no mundo três tipos que serão eternos. Esses três tipos, grandes homens os pintaram tais quais eram em seu tempo; e adivinharam que existiriam sempre. Esses três tipos são, inicialmente, Hamlet, n que diz para si mesmo: To be or not to be, that is the question [Ser ou não ser, eis a questão]; depois Tartufe, n que resmunga preces enquanto medita no mal; por fim Don Juan, que a todos diz: Não creio em nada. Molière achou, sozinho, dois desses tipos; Aviltou Tartufe e fulminou Don Juan. Sem a verdade o homem fica na dúvida como Hamlet, sem consciência como Tartufe, sem coração como Don Juan. Hamlet está em dúvida, é verdade, mas procura, é infeliz, a incredulidade o acabrunha, suas mais doces ilusões se afastam cada vez mais, e esse ideal, essa verdade que ele persegue cai no abismo como Ofélia n e fica perdida para sempre. Então enlouquece e morre como um desesperado; mas Deus o perdoará, porque teve coração, amou e foi o mundo que lhe roubou aquilo que queria conservar.
Os outros dois tipos são atrozes, porque egoístas e hipócritas, cada um a seu modo. Tartufe toma a máscara da virtude, o que o torna odioso; Don Juan em nada crê, nem mesmo em Deus: só acredita em si mesmo. Jamais tivestes a impressão de ver, nesse famoso símbolo que é Don Juan e na estátua do Comendador, o cepticismo diante das mesas girantes? O corrompido Espírito humano frente à sua mais brutal manifestação? Até o presente o mundo não viu neles senão uma figura inteiramente humana. Credes que não se deve neles ver e sentir algo mais? Como o gênio inimitável de Molière não teve, nessa obra, o sentimento do bem-senso dos fatos espirituais, como o tinha sempre dos defeitos deste mundo!
Gérard de Nerval. n
2. OS TRÊS TIPOS.
(CONTINUAÇÃO.)
[Revista de fevereiro de 1861.]
Nota — Nos três ditados seguintes, o Espírito desenvolve
cada um dos três tipos esboçados no primeiro. (Vide o número de janeiro
de 1861.)
Aqui no vosso mundo, o interesse, o egoísmo e o orgulho abafam a generosidade, a caridade e a simplicidade. O interesse e o egoísmo são os dois gênios maus do financista e do novo-rico; o orgulho é o vício do que sabe e, sobretudo, do que pode. Quando um coração verdadeiramente pensador examina esses três vícios horríveis, sofre, porque o homem que pensa sobre o nada e sobre a maldade deste mundo é, em geral — não o duvideis — uma criatura cujos sentimentos e instintos são delicados e caridosos. E, como bem o sabeis os delicados são infelizes, conforme disse La Fontaine, que esqueci de pôr ao lado de Molière. Só os delicados são infelizes, porque sentem.
Hamlet é a personificação desta parte infeliz da Humanidade, que sofre e chora sempre e que se vinga, vingando a Deus e a moral. Hamlet teve de castigar vícios horrorosos em sua família: o orgulho e a luxúria, isto é, o egoísmo. Aspirando à verdade, essa alma terna e melancólica ofuscou-se ao sopro do mundo, como um espelho que não pode refletir o que é bom e o que é justo. E essa alma tão pura derramou o sangue de sua mãe e vingou a sua honra. Hamlet é a inteligência impotente, o pensamento profundo em luta contra o orgulho estúpido e contra a impudicícia materna. O homem que pensa e que vinga um vício da Terra, seja qual for, é culpado aos olhos dos homens, mas, muitas vezes, não o é perante Deus. Não penseis que eu queira idealizar o desespero: já fui bastante castigado, mas há tanta névoa ante os olhos do mundo!
Nota. — Instado a dar a sua apreciação sobre La Fontaine,
do qual acabara de falar, acrescentou o Espírito:
La Fontaine não é mais conhecido do que Corneille e Racine. Conheceis apenas os vossos literatos, ao passo que os alemães conhecem tanto Shakespeare quanto Goëthe. Para voltar ao meu assunto, La Fontaine é o francês por excelência, ocultando sua originalidade e sua sensibilidade sob o nome de Esopo e de pensador alegre. Mas, tende certeza, La Fontaine era um delicado, como vos dizia há pouco; vendo que não era compreendido, afetou essa simplicidade que dizeis falsa. Nos vossos dias teria sido arrolado no regimento dos falso-modestos. A verdadeira inteligência não é falsa, mas muitas vezes temos de uivar com os lobos; e foi isso que perdeu La Fontaine na opinião de muita gente. Não vos falo de seu gênio: este é igual, se não superior, ao de Molière.
Para voltar ao nosso cursinho de literatura muito familiar, Don Juan é, como já tive a honra de vos dizer, o tipo mais perfeitamente pintado de gentil-homem depravado e blasfemo. Molière o elevou até o drama, porque, na verdade, a punição de Don Juan não devia ser humana, mas divina. É pelos golpes inesperados da vingança celeste que tombam as cabeças orgulhosas. O efeito é tanto mais dramático quanto mais imprevisto.
Eu disse que Don Juan era um tipo; mas, na verdade, é um tipo raro, porque, realmente, veem-se poucos homens dessa têmpera, desde que quase todos são covardes; refiro-me à classe dos indiferentes e dos corruptos.
Muitos blasfemam; poucos, no entanto — eu vos asseguro — ousam blasfemar sem temor. A consciência é um eco que lhes devolve a blasfêmia e a escutam tremendo de medo, embora sorriam diante do mundo. São o que hoje chamamos de fanfarrões do vício. Esse tipo de libertino é numeroso nos vossos dias, mas estão muito longe de serem filhos de Voltaire.
Para voltar ao nosso assunto, Molière, como o autor mais sábio e o observador mais profundo, não somente castigou os vícios que atacam a Humanidade, como os que ousam dirigir-se a Deus.
Até agora vimos dois tipos: um generoso e infeliz; outro feliz, segundo o mundo, mas bem miserável perante Deus. Resta-nos ver o mais feio, o mais ignóbil, o mais repugnante: refiro-me a Tartufo.
Na Antiguidade, a máscara da virtude já era horrenda, porque, sem se haver depurado pela moral cristã, o paganismo também tinha virtudes e sábios. Mas diante do altar do Cristo essa máscara é ainda mais feia, por ser a do egoísmo e da hipocrisia. Talvez o paganismo tenha tido menos Tartufos que a religião cristã. Explorar o coração do homem sábio e bom, lisonjeá-lo em todas as suas ações, enganar as pessoas confiantes por uma aparente piedade, levar a profanação até receber a Eucaristia com o orgulho e a blasfêmia no coração, eis o que faz Tartufo, o que fez e o que fará, sempre. Ó homens imperfeitos e mundanos! que condenais um princípio divino e uma moral sobre-humana porque dela quereis abusar, estais cegos quando confundis os homens com esse princípio, isto é, Deus com a Humanidade. É porque oculta as suas torpezas sob o manto sagrado que Tartufo é horroroso e repugnante. Maldição sobre ele, porque amaldiçoava quando era perdoado e meditava uma traição quando pregava a caridade.
Gérard de Nerval.
[1]
[Hamlet, drama em cinco atos de
William Shakespeare.]
[2]
[Tartufo, comédia em cinco atos e em versos, escrita por Molière
em 1667.]
[3] [Ofélia,
personagem no drama Hamlet de
William Shakespeare.]
[4] [v.
Gérard de Nerval.]