A carta seguinte foi dirigida à Sociedade de Estudos Espíritas pelo Dr. de Grand-Boulogne, antigo vice-cônsul da França.
Senhor Presidente,
Desejando ardentemente fazer parte da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, mas forçado a deixar a França brevemente, venho solicitar a honra de ser aceito como membro correspondente. Tenho a vantagem de vos conhecer pessoalmente e não necessito vos dizer com que interesse e simpatia acompanho os trabalhos da Sociedade. Li vossas obras, bem como as do Barão de Guldenstubbé e, consequentemente, conheço os pontos fundamentais do Espiritismo, cujos princípios adoto sinceramente, tais quais vos são ensinados. Como protesto aqui a minha firme vontade de viver e morrer como cristão, esta declaração me leva a vos fazer a minha profissão de fé, e talvez vejais com que interesse minha fé religiosa acolhe naturalmente os princípios do Espiritismo. Na minha opinião, eis como as duas coisas se associam:
1. Deus: criador de todas as coisas.
2. Objetivo e fim de todos os seres criados: concorrer para a harmonia universal.
3. No universo criado, três reinos principais: o reino material, ou inerte; o orgânico ou vital; o intelectual e moral.
4. Tudo é criado e submetido a leis.
5. Os seres compreendidos nos dois primeiros reinos obedecem irresistivelmente, e por eles a harmonia jamais é perturbada.
6. Como os dois primeiros, o terceiro reino está submetido a leis, mas goza do estranho poder de subtrair-se a elas; possui a temível faculdade de desobedecer a Deus: é o que constitui o livre-arbítrio.
O homem pertence simultaneamente aos três reinos: é um Espírito encarnado.
7. As leis que regem o mundo moral estão formuladas no decálogo, mas se resumem neste admirável preceito de Jesus: Amai a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a vós mesmos. ( † )
8. Toda derrogação da lei constitui uma perturbação na harmonia universal. Ora, Deus não permite que tal perturbação persista e a ordem deve ser necessariamente restabelecida.
9. Existe uma lei destinada à reparação da desordem no mundo moral, e esta lei está contida por inteiro na palavra: expiação.
10. A expiação efetua-se: 1º – pelo arrependimento e os atos de virtude; 2º – pelo arrependimento e as provas; 3º – pelas preces e as provas do justo, unidas ao arrependimento do culpado.
11. A prece e as provas do justo, embora concorram da maneira mais eficaz para a harmonia universal, são insuficientes para a expiação absoluta da falta; Deus exige o arrependimento do pecador; mas com esse arrependimento, a prece do justo e sua penitência em favor do culpado basta, à eterna justiça, e o crime é perdoado.
12. A vida e a morte de Jesus põem em evidência esta adorável verdade.
13. Sem livre-arbítrio não há pecado, mas também não há virtude.
14. O que é a virtude? A coragem no bem.
15. O que há de mais belo no mundo não é, como disse um filósofo, o espetáculo de uma grande alma lutando contra a adversidade; é o esforço perpétuo de uma alma progredindo no bem e, de virtude em virtude, elevando-se até o Criador.
16. Qual a mais bela de todas as virtudes? A caridade.
17. O que é a caridade? É o atributo especial da alma que, em suas ardentes aspirações para o bem, esquece de si mesma e se consome em esforços pela felicidade do próximo.
18. O saber está muito abaixo da caridade; ele nos eleva na hierarquia espírita, mas não contribui para o restabelecimento da ordem perturbada pelo mau. O saber nada expia, nada resgata, em nada influi sobre a justiça de Deus: a caridade, ao contrário, expia e apazigua. O saber é uma qualidade; a caridade, uma virtude.
19. Ao encarnar os Espíritos, qual foi o desígnio de Deus? Criar, para uma parte do mundo espiritual, uma situação sem a qual não existiria nenhuma das grandes virtudes que nos enchem de respeito e de admiração. Com efeito, sem o sofrimento não há caridade; sem o perigo não há coragem; sem o infortúnio não há devotamento; sem a perseguição não há estoicismo; sem a cólera não há paciência, etc. Ora, sem a corporeidade, com o desaparecimento desses males, desapareceriam essas virtudes.
Para o homem um pouco desprendido dos laços da matéria, neste conjunto do bem e do mal há uma harmonia, uma grandeza de ordem mais elevada que a harmonia e a grandeza do mundo exclusivamente material.
Isto responde em poucas palavras às objeções fundadas sobre a incompatibilidade do mal com a bondade e a justiça de Deus.
Seria preciso escrever volumes e mais volumes para desenvolver convenientemente essas diversas proposições. Entretanto, o objetivo desta comunicação não é oferecer à Sociedade uma tese filosófica e religiosa; eu quis apenas formular algumas verdades cristãs em harmonia com a Doutrina Espírita. Em minha opinião, tais verdades constituem a base fundamental da religião e, longe de enfraquecer-se, fortificam-se com as revelações espíritas. Permito-me, também, externar uma queixa contra os ministros do culto, que, enceguecidos pela demoniofobia, recusam o esclarecimento e condenam sem exame. Se os cristãos abrissem os ouvidos às revelações dos Espíritos, tudo quanto no ensino religioso perturba nossos corações ou revolta a nossa razão desvanecer-se-ia de repente. Sem se modificar em sua essência, a religião ampliaria o círculo de seus dogmas, e os lampejos da verdade nova consolariam e iluminariam as almas. Se é certo, como diz o Padre Ventura, que as doutrinas filosóficas ou religiosas acabam invencivelmente por se traduzirem nos atos ordinários da vida, é bem evidente que uma nação iniciada no Espiritismo tornar-se-ia a mais admirável e a mais feliz das nações.
Dir-se-á que uma sociedade verdadeiramente cristã seria perfeitamente feliz. Concordo. Mas o ensino religioso tanto se faz pelo temor quanto pelo amor; e os homens, dominados por suas paixões, querendo a qualquer preço se libertar dos dogmas que os ameaçam, serão sempre tão numerosos que o grupo dos cristãos perseverantes constituirá sempre uma fraca minoria. Os cristãos são numerosos, mas os verdadeiros cristãos são raros.
Não acontece assim com o ensino espírita. Embora sua moral se confunda com a do Cristianismo e, como este, pronuncie palavras cominatórias, há tão rico tesouro de consolações; é, ao mesmo tempo, tão lógico e tão prático; lança uma luz tão intensa sobre o nosso destino; afasta tão bem as, trevas que perturbam a razão e as perplexidades que atormentam os corações, que, na verdade, parece impossível a um espírita sincero negligenciar um só dia trabalhar pelo seu progresso e, assim, não contribuir para restabelecer a harmonia perturbada pelo transbordamento das paixões egoístas e cúpidas.
Pode-se, pois, afirmar que, propagando as verdades que temos a felicidade de conhecer, trabalhamos pela Humanidade e nossa obra será abençoada por Deus. Para que um povo seja feliz, é necessário que o número dos que querem o bem, que praticam a lei da caridade, supere o dos que querem o mal e só praticam o egoísmo. Creio em minha alma e estou consciente de que o Espiritismo, apoiado no Cristianismo, é chamado a operar esta revolução.
Imbuído de tais sentimentos e querendo, na medida de minhas forças, contribuir para a felicidade de meus semelhantes, ao mesmo tempo em que busco tornar-me melhor, peço, Sr. Presidente, para fazer parte de vossa Sociedade.
Aceitai, etc.
De Grand-Boulogne, doutor em Medicina,
Antigo Vice-Cônsul da França.
Observação. – Esta carta dispensa comentários e cada
um apreciará o elevado alcance dos princípios nela formulados, de uma
maneira ao mesmo tempo tão profunda, tão simples e tão clara. São esses
os princípios do verdadeiro Espiritismo, que certos homens ousam ridicularizar,
pois reclamam o privilégio da razão e do bom-senso, por não saberem
se têm uma alma e não fazerem diferença entre o seu e o futuro de uma
máquina. Acrescentaremos apenas uma observação: Bem compreendido,
o Espiritismo é a salvaguarda das ideias verdadeiramente religiosas
que se extinguem; contribuindo para a melhoria das criaturas, provocará,
pela força das coisas, o melhoramento das massas, e não está longe o
tempo em que os homens haverão de compreender que nesta doutrina encontrarão
o mais fecundo elemento da ordem, do bem-estar e da prosperidade dos
povos; e isto por uma razão muito simples: é que ela destrói o materialismo,
que desenvolve e alimenta o egoísmo, fonte perpétua de lutas sociais,
e lhe dá uma razão de ser. Uma sociedade cujos membros fossem guiados
pelo amor do próximo, que inscrevesse a caridade no frontispício de
todos os seus códigos, seria feliz e em breve veria apagarem-se os ódios
e as discórdias. O Espiritismo pode realizar este prodígio e o fará,
apesar dos que ainda o agridem, porquanto passarão os agressores, mas
o Espiritismo permanecerá. [v. Carta
de uma católico sobre o Espiritismo, pelo Dr. Grand.]