Nosso sábio confrade Sr. Jobard, de Bruxelas, † nos escreve o que se segue, a propósito de nosso artigo sobre os pré-adamitas, publicado na Revista do mês passado:
“Permiti-me algumas reflexões sobre a criação do mundo, com vistas a reabilitar a Bíblia aos vossos olhos e aos dos livre-pensadores. Deus criou o mundo em seis dias, quatro mil anos antes da era cristã. Essa afirmativa os geólogos a contestam, firmados no estudo dos fósseis e dos milhares de caracteres incontestáveis de vetustez que fazem remontar a origem da Terra a milhares de milhões de anos. Entretanto, a Escritura disse a verdade e os geólogos também. E foi um simples campônio quem os pôs de acordo, ensinando que o nosso globo não é mais do que um planeta incrustativo, muito moderno, composto de materiais muito antigos.
“Após o arrebatamento do planeta desconhecido, que chegara à maturidade, ou de harmonia com o que existiu no lugar que hoje ocupamos, a alma da Terra recebeu ordem de reunir seus satélites, para formar a Terra atual, segundo as regras do progresso em tudo e por tudo. Quatro apenas desses astros concordaram com a associação que lhes era proposta. Só a Lua persistiu na sua autonomia, visto que também os globos têm o seu livre-arbítrio. Para proceder a essa fusão, a alma da Terra dirigiu aos satélites um raio magnético atrativo, que pôs em estado cataléptico todo o mobiliário vegetal, animal e hominal que eles possuíam e que trouxeram para a comunidade. A operação teve por únicas testemunhas a alma da Terra e os grandes mensageiros celestes que a ajudaram nessa grande obra, abrindo aqueles globos para lhes dar entranhas comuns. Praticada a soldadura, as águas se escoaram para os vazios que a ausência da Lua deixara, da qual se tinha o direito de esperar uma melhor apreciação de seus interesses.
“As atmosferas se confundiram e começou o despertar ou a ressurreição dos germens que estavam em catalepsia. O homem foi o último a ser tirado do estado de hipnotismo e se viu cercado da luxuriante vegetação do paraíso terrestre e dos animais que pastavam em paz ao seu derredor. Havereis de convir que tudo isto se podia fazer em seis dias, com obreiros tão poderosos como os que Deus encarregara da tarefa. O planeta Ásia trouxe a raça amarela, a de civilização mais antiga; o África a raça negra; o Europa a raça branca e o América a raça vermelha. A Lua certamente nos teria trazido a raça verde ou azul.
“Assim, certos animais, de que apenas os despojos são encontrados, nunca teriam vivido na Terra atual, mas teriam sido transportados de outros mundos desmanchados pela velhice. Os fósseis, que se encontram em climas sob os quais não teriam podido existir neste mundo, viviam sem dúvida em zonas muito diferentes nos globos onde nasceram. Tais despojos na Terra se encontram nos pólos, ao passo que viviam no equador dos globos a que pertenciam. E depois essas enormes massas, cuja possibilidade de existência não podemos conceber no ar, viviam no fundo dos mares, sob a pressão de um meio que lhes tornava fácil a locomoção. Os futuros levantamentos dos mares nos trarão outros despojos, muitos outros germens que despertarão de sua longa letargia para nos mostrar espécies desconhecidas de plantas, de animais e de autóctones, contemporâneos do dilúvio, e ficareis muito admirados ao descobrirdes, no meio do vasto oceano, novas ilhas, povoadas de plantas e animais que não podem vir de nenhuma parte, nem transportadas pelos ventos, nem pelas ondas.
“Nossa ciência, que acha errada a Bíblia, terminará por restituir-lhe sua estima, como foi forçada a fazê-lo a propósito da rotação da Terra, pois não se trata de erro da Bíblia, mas dos que não a compreendem. Eis a prova:
“Josué parou o Sol, dizendo-lhe: Sta, sol. ( † ) Ora, desde então ele está parado, pois em parte alguma encontrais que ele lhe tenha ordenado que girasse novamente; e, se desde a derrota dos Amalequitas a noite continua sucedendo ao dia, é preciso admitir que a Terra gira. Então, não é Galileu, mas os inquisidores que mereciam ser censurados por não terem tomado a Bíblia ao pé da letra.
“Também se negava a existência do licorne bíblico, † e acabam de ser mortos dois nas montanhas do Tibete. Negava-se a aparição do espectro de Saul e, graças a Deus, estais a ponto de convencer os negadores. Lembremo-nos sempre desta advertência das Escrituras: Noli esse incredulus sicut eguus et mulus, guibus non est intellectus. ( † ) [Não queirais ser como o cavalo e o mulo, que não têm entendimento.] ( † )
“Saudações cordiais e respeitosas ao autor da Etnografia do Mundo Espírita.
Jobard.
A teoria da formação da Terra pela incrustação de vários corpos planetários já foi dada por certos Espíritos em diversas épocas, através de médiuns estranhos entre si. Não nos fazemos adeptos dessa doutrina, que confessamos não ter sido ainda suficientemente estudada para sobre ela nos pronunciarmos, mas reconhecemos que merece um exame sério. As reflexões que ela nos sugere não passam de hipóteses, até que dados mais positivos venham confirmá-las ou desmenti-las. Enquanto esperamos, é uma baliza que pode abrir caminhos a grandes descobertas e guiar nas buscas. Talvez os cientistas um dia encontrem, nessa teoria, a solução de mais de um problema.
Mas – dirão certos críticos – não tendes confiança nos Espíritos, já que duvidais de suas afirmações? Como inteligências desprendidas da matéria podem remover todas as dúvidas da Ciência e projetar luz onde reina a obscuridade?
Isto é uma questão muito grave, que se liga à própria base do Espiritismo, e que não poderíamos resolver neste momento sem repetir o que já temos dito a respeito. Assim, aditaremos apenas algumas palavras, a fim de justificar nossas reservas. Para começar, responderemos que nos tornaríamos sábios com muita facilidade se cuidássemos tão somente de interrogar os Espíritos para conhecer tudo quanto ignoramos. Querendo Deus que adquiríssemos a ciência pelo trabalho, por isso mesmo não encarregou os Espíritos de no-la trazer pronta e acabada, favorecendo a nossa preguiça. Em segundo lugar a Humanidade, como os indivíduos, tem a sua infância, sua adolescência, sua juventude e sua virilidade. Os Espíritos, encarregados por Deus de instruir os homens, devem, pois, proporcionar-lhes ensinos para o desenvolvimento da inteligência; não dirão tudo a todos, aguardando, antes de semear, que a terra esteja pronta para receber a semente que a fará frutificar. Eis por que certas verdades que nos são ensinadas hoje não o foram aos nossos pais, que também interrogavam os Espíritos; eis por que as verdades, para as quais ainda não estamos maduros, só serão ensinadas aos que vierem depois de nós. Nosso equívoco está em nos julgarmos chegados ao cume da escada, quando apenas nos achamos na metade do caminho.
Digamos, de passagem, que os Espíritos têm duas maneiras de instruir os homens. Tanto podem fazê-lo comunicando-se diretamente, o que tem ocorrido em todos os tempos, como o provam todas as histórias sagradas e profanas, quanto se encarnando entre eles, para o desempenho das missões de progresso. Tais são esses homens de bem e de gênio, que aparecem de tempos em tempos, como fachos para a Humanidade, fazendo-a avançar alguns passos. Vede o que acontece, quando esses mesmos homens vêm antes do tempo propício para as ideias que devem espalhar: são desconhecidos em vida, mas seus ensinos não ficam perdidos. Depositados nos arquivos do mundo, como um grão precioso posto de reserva, um belo dia levanta da poeira, no momento em que pode frutificar.
Desde então, compreende-se que, se o tempo requerido para disseminar certas ideias não houver ainda chegado, será em vão que interrogaremos os Espíritos. Eles só podem dizer o que lhes é permitido. Mas também há outra razão, que compreendem perfeitamente todos os que têm alguma experiência do mundo espírita.
Não basta ser Espírito para possuir a ciência universal; do contrário, a morte nos tornaria quase iguais a Deus. Aliás, o simples bom senso recusa-se a admitir que o Espírito de um selvagem, de um ignorante ou de um malvado, desde que desprendido da matéria, esteja no nível do sábio ou do homem de bem. Isto não seria racional. Há, pois, Espíritos adiantados, e outros mais ou menos atrasados, que devem vencer diversas etapas e passar por numerosas peneiras, antes de se despojarem de todas as suas imperfeições. Disso resulta que no mundo dos Espíritos são encontradas todas as variedades morais e intelectuais existentes entre os homens e outras mais. Ora, prova a experiência que os maus se comunicam tão bem quanto os bons. Os que são francamente maus são facilmente reconhecíveis; mas há também, entre eles, semisábios, falsos sábios, presunçosos, sistemáticos e até hipócritas. Estes são os mais perigosos, porque afetam uma aparência de gravidade, de sabedoria e de ciência, em favor da qual enunciam, em meio a algumas verdades e boas máximas, as coisas mais absurdas. E, para melhor enganar, não receiam adornar-se com os mais respeitáveis nomes. Separar o verdadeiro do falso, descobrir o embuste escondido numa exibição de palavras bonitas, desmascarar os impostores, eis, sem contradita, uma das maiores dificuldades da ciência espírita. Para superá-la, faz-se necessária uma longa experiência, conhecer todas as astúcias de que são capazes os Espíritos de baixa classe, ter muita prudência, ver as coisas com o mais imperturbável sangue-frio e, sobretudo, guardar-se contra o entusiasmo que cega. Com o hábito e um pouco de tato chega-se facilmente a desmascará-los, mesmo sob a ênfase da mais pretensiosa linguagem. Mas, infeliz do médium que se julga infalível, que se ilude com as comunicações que recebe: O Espírito que o domina pode fasciná-lo a ponto de fazê-lo achar sublime aquilo que, muitas vezes, é apenas absurdo e salta aos olhos de todos, menos aos seus.
Voltemos ao assunto. A teoria da formação da Terra pela incrustação não é a única que tem sido dada pelos Espíritos. Em qual acreditar? Isto prova que; fora da moral, que não admite duas interpretações, não se deve aceitar as teorias científicas dos Espíritos senão com as maiores reservas, porque, uma vez mais, eles não estão encarregados de nos trazer a ciência acabada; estão longe de tudo saber, sobretudo no que diz respeito ao princípio das coisas; enfim, é preciso desconfiar das ideias sistemáticas que alguns deles procuram fazer prevalecer, às quais não têm escrúpulo de atribuir uma origem divina. Se examinarmos essas comunicações com sangue-frio, sem prevenção; se pesarmos maduramente todas as palavras, descobriremos facilmente os traços de uma origem suspeita, incompatível com o caráter do Espírito que se supõe falar. São, por vezes, heresias científicas tão patentes que seria preciso ser cego ou muito ignorante para não as perceber. Ora, como admitir possa um Espírito superior cometer semelhantes absurdos? De outras vezes são expressões triviais, formas ridículas, pueris, e mil outros sinais que traem a inferioridade, para quem quer que não esteja fascinado. Que homem de bom-senso acreditaria que uma doutrina contrária aos mais positivos dados da ciência pudesse emanar de um Espírito sábio, ainda que trouxesse o nome de Arago? Como crer na bondade de um Espírito que dá conselhos contrários à caridade e à benevolência, ainda que sejam assinados por um apóstolo da beneficência? Dizemos mais: Há profanação em misturar nomes venerados a comunicações com evidentes traços de inferioridade. Quanto mais elevados os nomes, tanto mais devem ser acolhidos com circunspeção e mais se deve temer ser joguete de uma mistificação. Em suma, o grande critério do ensino dado pelos Espíritos é a lógica. Deus nos deu a capacidade de julgar e a razão para delas nos servirmos; os bons Espíritos no-las recomendam, nisto nos dando uma prova de superioridade. Os outros se guardam: querem ser acreditados sob palavra, pois sabem muito bem que no exame têm tudo a perder.
Como se vê, temos muitos motivos para não aceitar levianamente todas as teorias dadas pelos Espíritos. Quando surge uma, limitamo-nos ao papel de observador; fazemos abstração de sua origem espírita, sem nos deixar fascinar pelo brilho de nomes pomposos; examinamo-la como se emanasse de um simples mortal e vemos se é racional, se dá conta de tudo, se resolve todas as dificuldades. Foi assim que procedemos com a doutrina da reencarnação, que não tínhamos adotado, embora vinda dos Espíritos, senão após haver reconhecido que ela só, e só ela, podia resolver aquilo que nenhuma filosofia jamais havia resolvido, e isso abstração feita das provas materiais que diariamente são dadas, a nós e a muitos outros. Pouco nos importam, pois, os contraditores, ainda que sejam Espíritos. Desde que ela é lógica, conforme à justiça de Deus; que não possam substituí-la por nada de mais satisfatório, não nos inquietamos mais do que os que afirmam que a Terra não gira em torno do Sol – porquanto há Espíritos que se julgam sábios – ou que pretendem que o homem veio completamente formado de um outro mundo, transportado nas costas de um elefante alado.
Menos ainda concordamos com o ponto de vista da formação e, sobretudo, do povoamento da Terra. Eis por que dissemos, no início, que para nós a questão não estava suficientemente elucidada. Encarada do ponto de vista exclusivamente científico, dizemos apenas que, à primeira vista, a teoria da incrustação não nos parecia desprovida de fundamento e, sem nos pronunciarmos pró nem contra, dizemos haver nela matéria para exame. Com efeito, se estudarmos os caracteres fisiológicos das diferentes raças humanas, não é possível atribuir-lhes uma origem comum, porque a raça negra não é um abastardamento da raça branca. Ora, adotando a letra do texto bíblico, que faz todos os homens procederem da família de Noé, dois e mil e quatrocentos anos antes da era cristã, seria preciso admitir não apenas que em alguns séculos esta única família tivesse povoado a Ásia, a Europa e a África, mas que se houvesse transformado em negros. Sabemos perfeitamente a influência que o clima e os hábitos podem exercer sobre a economia [o organismo]. Um sol ardente avermelha a epiderme e escurece a pele, mas em parte alguma se viu, mesmo sob o mais intenso ardor tropical, famílias brancas procriarem negros, sem cruzamento de raças. Para nós, portanto, é evidente que as raças primitivas da Terra provêm de origens diferentes. Qual o princípio? Eis a questão e, até provas concretas, não é permitido a respeito fazer senão conjecturas. Aos sábios, pois, compete ver as que melhor concordam com os fatos constatados pela Ciência.
Sem examinar como foi possível a junção e a soldagem de vários corpos planetários para formar o nosso globo atual, devemos reconhecer que o fato não é impossível e, desde então, estaria explicada a presença simultânea de raças heterogêneas, tão diferentes em costumes e em línguas, de que cada globo teria trazido os germens ou os embriões; e, quem sabe? talvez indivíduos completamente formados. Nesta hipótese a raça branca proviria de um mundo mais adiantado do que o que teria trazido a raça negra. Em todo o caso, a junção não se teria operado sem um cataclismo geral, o que só teria deixado subsistir alguns indivíduos. Assim, conforme essa teoria, nosso globo seria, ao mesmo tempo, muito antigo por suas partes constituintes, e muito novo por sua aglomeração. Como se vê, tal sistema em nada contradiz os períodos geológicos que, assim, remontariam a uma época indeterminada e anterior à junção. Seja como for, e seja o que disser o Sr. Jobard, se as coisas se passaram assim parece difícil que um tal acontecimento se tenha realizado e, sobretudo, que o equilíbrio de semelhante caos tenha podido estabelecer-se em seis dias de vinte e quatro horas. Os movimentos da matéria inerte estão submetidos a leis eternas, que não podem ser derrogadas senão por milagres.
Resta-nos explicar o que se deve entender por alma da Terra, porquanto não pode entrar na cabeça de ninguém atribuir uma vontade à matéria. Os Espíritos sempre disseram que alguns entre eles têm atribuições especiais. Agentes e ministros de Deus, dirigem, conforme o seu grau de elevação, os fatos de ordem física, bem como os de ordem moral. Assim como alguns velam pelos indivíduos, dos quais se constituem gênios familiares ou protetores, outros tomam sob seu patrocínio reuniões de indivíduos, grupos, cidades, povos e até mundos. Por alma da Terra deve-se, pois, entender-se o Espírito, chamado por sua missão a dirigi-la e a fazê-la progredir, tendo sob suas ordens inumeráveis legiões de Espíritos encarregados de velar pela realização de seus desígnios. O Espírito diretor de um mundo deve ser, necessariamente, de uma ordem superior, e tanto mais elevado quanto mais adiantado for aquele mundo.
Se insistimos sobre vários pontos que poderiam parecer estranhos ao assunto, foi precisamente por se tratar de uma questão científica eminentemente controvertida. Importa que seja bem constatado, pelos que julgam as coisas sem as conhecer, que o Espiritismo está longe de tomar por artigo de fé tudo quanto vem do mundo invisível; assim, como pretendem, ele não se apoia numa crença cega, mas na razão. Se todos os seus partidários não guardarem a mesma circunspeção, a culpa não será da ciência, mas dos que não se dão ao trabalho de aprofundá-lo. Ora, não seria mais lógico julgar o exagero de alguns, do que condenar a religião pela opinião dos fanáticos.
[1] N. do T.: Vide A Gênese, de Allan Kardec, capítulo VIII: Teoria da incrustação.