O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão.
Doutrina espírita - 1ª parte.

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Revista espírita — Ano II — Outubro de 1859.

(Idioma francês)

Os milagres.

(Sumário)


1. — Sob o título de Um Milagre, o Sr. Mathieu, antigo farmacêutico do Exército, acaba de publicar uma relação de vários fatos de escrita direta, dos quais foi testemunha. Considerando que tais fatos se produziram em circunstâncias mais ou menos idênticas aos que relatamos em nosso número do mês de agosto [Pneumatografia ou escrita direta], e não apresentando nenhuma característica especial, julgamos por bem não descrevê-los. Contudo, nós os mencionamos unicamente para mostrar que os fenômenos espíritas não são privilégio exclusivo de ninguém, e aproveitar a ocasião para cumprimentar o Sr. Mathieu pelo zelo com que os propaga. Várias outras pequenas brochuras e artigos do mesmo autor, em diversos jornais, disso são a prova. O Sr. Mathieu é um homem de ciência que, como tantos outros e como nós próprios, passou pela fileira da incredulidade. Viu-se, porém, obrigado a ceder ante a evidência, porquanto, contra os fatos é necessário depor as armas. Permitimo-nos apenas criticar o título dado à sua última publicação, não por uma questão de jogo de palavras, mas porque acreditamos que o assunto tenha uma certa importância e merece um exame sério.

Em sua acepção primitiva e por sua etimologia, a palavra milagre significa coisa extraordinária, coisa admirável de ver, mas essa palavra, como tantas outras, afastou-se do sentido originário e, conforme a Academia, hoje se diz de um ato do poder divino, contrário às leis comuns da Natureza. Tal é, com efeito, a sua acepção usual, e não é senão por comparação e por metáfora que se aplica às coisas vulgares que nos surpreendem e cuja causa é desconhecida.

Terá o fenômeno relatado pelo Sr. Mathieu o caráter de um milagre, no verdadeiro sentido da palavra? Certamente que não. Como já dissemos, o milagre é uma derrogação das leis da Natureza. Não entra de modo algum em nossa cogitação examinar se Deus julgou útil, em determinadas circunstâncias, derrogar as leis por ele mesmo estabelecidas; nosso fim é unicamente demonstrar que o fenômeno da escrita direta, por mais extraordinário que seja, não derroga absolutamente essas leis, nem possui nenhum caráter miraculoso. O milagre não se explica; a escrita direta, ao contrário, explica-se da maneira mais racional, como vimos em nosso artigo sobre esse assunto. Não se trata, pois, de um milagre, mas de um simples fenômeno que tem sua razão de ser nas leis gerais. O milagre tem ainda um outro caráter: o de ser insólito e isolado. Ora, desde que um fato se reproduz, por assim dizer à vontade e por diversas pessoas, já não pode haver um milagre.

Aos olhos dos ignorantes, a Ciência faz milagres todos os dias. Eis por que outrora aqueles que sabiam mais que o vulgo passavam por feiticeiros; e como se acreditava que toda ciência viesse do diabo, eles eram queimados. Hoje, que estamos muito mais civilizados, contentamo-nos em enviá-los aos hospícios. Depois que deixamos os inventores morrer de fome, erigimos-lhes estátuas e os proclamamos benfeitores da Humanidade. Mas deixemos essas tristes páginas de nossa história e voltemos ao assunto. Se um homem, que se ache realmente morto, for chamado à vida por intervenção divina, haverá verdadeiro milagre, por ser esse um fato contrário às leis da Natureza. Mas, se em tal homem houver apenas aparências de morte, se lhe restar uma vitalidade latente e a Ciência, ou uma ação magnética, conseguir reanimá-lo, para as pessoas esclarecidas ter-se-á dado um simples fenômeno natural, mas, para o vulgo ignorante, o fato passará por miraculoso e o autor será apedrejado ou venerado, conforme o caráter das pessoas. Lance um físico, do meio de certas campinas, um papagaio elétrico e faça que o raio caia sobre uma árvore e certamente esse novo Prometeu será tido por armado de diabólico poder; e seja dito de passagem, Prometeu parece ter-se antecipado singularmente a Franklin.

A escrita direta é um dos fenômenos que demonstram da maneira mais patente a ação das inteligências ocultas; mas pelo fato de ser produzido por seres ocultos não é mais miraculoso do que todos os outros fenômenos devidos a agentes invisíveis, porque esses seres ocultos que povoam o espaço são uma das potências da Natureza, cuja ação é incessante sobre o mundo material, tanto quanto sobre o mundo moral. Esclarecendo-nos sobre esse poder, o Espiritismo dá-nos a chave de uma porção de coisas inexplicáveis por outros meios. Como o magnetismo, ele revela uma lei, se não desconhecida, pelo menos mal compreendida; melhor dizendo, conheciam-se os efeitos, uma vez que se produziam em todos os tempos, mas não se conhecia a lei, e foi justamente a ignorância dessa lei que gerou a superstição. Conhecida a lei, cessa o maravilhoso e os fenômenos entram na ordem das coisas naturais. Eis por que os espíritas não fazem milagres quando fazem girar uma mesa ou os mortos escreverem, da mesma forma que não o faz o médico, ao reviver um moribundo, ou o físico, ao fazer cair o raio.

Essa a razão por que repelimos com todas as nossas forças a qualificação empregada pelo Sr. Mathieu, embora estejamos persuadidos de que ele não quis dar nenhum sentido místico a essa palavra; além disso, as pessoas que não descem ao fundo das coisas — e estas são em maior número — poderiam enganar-se e crer que os adeptos do Espiritismo se atribuem um poder sobrenatural. Aquele que pretendesse, auxiliado por essa ciência, operar milagres, ou seria um ignorante do assunto ou um verdadeiro pateta. É inútil dar armas aos que riem de tudo, mesmo daquilo que não conhecem, pois isso seria entregar-se voluntariamente ao ridículo.

Os fenômenos espíritas, assim como os fenômenos magnéticos, antes que se lhes conhecesse a causa, foram tidos à conta de prodígios. Ora, como os cépticos, os Espíritos fortes, isto é, aqueles que julgam deter o privilégio exclusivo da razão e do bom-senso, não acreditam que uma coisa seja possível pelo fato de não a compreenderem; eis por que todos os fatos reputados prodigiosos são objeto de zombaria; e como a religião contém um grande número de fatos desse gênero, nela não acreditam. Daí à incredulidade absoluta não existe senão um passo.

Explicando a maioria desses fatos, o Espiritismo dá-lhes uma razão de ser. Vem, portanto, em auxílio da religião, demonstrando a possibilidade de certos fatos que, por não terem mais o caráter miraculoso, nem por isso são menos extraordinários, e Deus não é menor nem menos poderoso por não haver derrogado suas leis.

De quantas pilhérias não foram objeto as levitações de São Cupertino? Ora, a suspensão etérea dos corpos pesados é um fato demonstrado e explicado pelo Espiritismo; nós mesmos fomos testemunha ocular e o Sr. Home, assim como outras pessoas do nosso conhecimento, repetiram várias vezes o fenômeno produzido por São Cupertino; portanto, esse fenômeno entra na ordem das coisas naturais. No número dos fatos desse gênero devem-se colocar em primeira linha as aparições, por serem as mais frequentes. A aparição de Salette, †  que divide o próprio clero, para nós nada tem de insólita. Certamente não podemos afirmar que o fato ocorreu, porque dele não temos a prova material; mas para nós ele é possível, desde que milhares de fatos análogos recentes nos são conhecidos; cremos neles não apenas porque sua realidade é constatada por nós, mas, sobretudo, porque conhecemos perfeitamente a maneira pela qual se produzem. Reportem-se à teoria que demos das aparições e verão que esse fenômeno se torna tão simples e tão plausível quanto uma porção de fenômenos físicos, que somente são considerados prodigiosos porque nos falta possuir a sua chave.

Quanto à pessoa que se apresentou a Salette, é outra questão; sua identidade de modo algum está demonstrada. Constatamos apenas que ocorreu uma aparição; o resto não é da nossa competência. Nosso objetivo também não é examinar se Deus pode derrogar as suas leis ao fazer milagres, no verdadeiro sentido da palavra; trata-se de uma questão de teologia que não entra em nossas cogitações. Que cada um, portanto, guarde as suas convicções a esse respeito, pois o Espiritismo não tem por que se ocupar com isso; apenas dizemos que os fatos produzidos pelo Espiritismo nos revelam leis novas e nos dão a chave de uma multidão de coisas que pareciam sobrenaturais. Se alguns deles, que passavam por miraculosos, encontraram uma explicação lógica e uma razão de ser no Espiritismo, é mais um motivo para não nos apressarmos em negar aquilo que não compreendemos.

Certas pessoas nos criticam por expormos teorias espíritas que elas consideram prematuras. Esquecem que os fatos do Espiritismo são contestados por muitos precisamente porque parecem sair da lei comum e porque não se explicam. Dai-lhes uma base racional e a dúvida cessará. Dizei a alguém, pura e simplesmente, que expedireis um telegrama de Paris  †  à América, recebendo a resposta em poucos minutos, e esse alguém rirá na vossa cara. Explicai o mecanismo do processo e ele acreditará, mesmo sem ver a operação. Neste século em que não se poupam as palavras, a explicação é, pois, um poderoso motivo de convicção; assim, vemos todos os dias pessoas que não testemunharam nenhum fato, que não viram uma mesa girar, nem um médium escrever, e que se acham tão convencidas quanto nós, unicamente porque leram e compreenderam. Se não devêssemos acreditar senão naquilo que temos sob os olhos, nossas convicções se reduziriam a bem pouca coisa.


2. OBSERVAÇÕES A PROPÓSITO DA PALAVRA MILAGRE.

[Revista Espírita de novembro de 1859.]

O Sr. Mathieu, que citamos em nosso artigo do mês de outubro, a respeito dos milagres, dirige-nos a reclamação seguinte, que nos apressamos em atender:


“Senhor,

“Se não tenho a vantagem de estar de acordo convosco sobre todos os pontos, pelo menos estou naquilo que tivestes ocasião de dizer de mim no último número de vosso jornal. Assim, aprecio sobremaneira vossa observação relativamente à palavra milagre. Se dela me servi em meu opúsculo, tive o cuidado de dizer ao mesmo tempo (pág. 4): “Convencido de que a palavra milagre exprime um fato produzido fora das leis conhecidas da Natureza; um fato que escapa a toda explicação humana, a toda interpretação científica.” Supunha assim indicar suficientemente que não atribuía a essa palavra senão um valor relativo e convencional; parece que me enganei, pois vos destes ao trabalho de me censurar.

“Em todo o caso, conto com a vossa imparcialidade, senhor, para que estas breves linhas, que tenho a honra de vos dirigir, encontrem lugar em vosso próximo número. Não me sinto ofendido; que vossos leitores saibam que eu não quis atribuir à palavra em questão o sentido que lhe censurais. Houve inabilidade de minha parte, ou mal-entendido da vossa, quiçá um pouco de uma e de outra.

“Recebei, etc.

Mathieu.”


Como dissemos em nosso artigo, estávamos perfeitamente convencidos do sentido em que o Sr. Mathieu havia empregado a palavra milagre; assim, nossa crítica não visava absolutamente à sua opinião, mas ao emprego da palavra, mesmo na sua acepção mais racional. Há tantas pessoas que veem apenas a superfície das coisas, sem se darem ao trabalho de aprofundá-las — o que não as impede de julgar como se as conhecessem — que um tal título, dado a um fato espírita, poderia ser tomado ao pé da letra, de boa-fé por uns, com malevolência pelo maior número. Nossa observação a respeito é tanto mais fundada quando nos lembramos de ter lido em alguma parte, num jornal cujo nome nos escapa, um artigo onde aqueles que gozam da faculdade de provocar os fenômenos espíritas eram classificados, a título de zombaria, como fazedores de milagres, e isto a propósito de um adepto muito zeloso, que ele próprio estava convencido de os produzir. É o caso de lembrar que nada é mais perigoso do que um amigo imprudente. Nossos adversários são muito impetuosos em nos levar ao ridículo, sem que lhes tenhamos oferecido pretexto.


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