Há cerca de quarenta anos aconteceu a seguinte aventura ao Marquês de Londonderry, mais tarde Lorde Castlereagh. Certo dia foi visitar um gentil-homem que privava da amizade de um de seus amigos, o qual residia num desses velhos castelos do norte da Irlanda, que os romancistas elegem para palco das aparições do outro mundo. O aspecto do apartamento do marquês estava em perfeita harmonia com o edifício. Com efeito, os vigamentos de madeira ricamente esculpidos e enegrecidos pelo tempo, o enorme arco da chaminé, semelhante à entrada de um túmulo, a tapeçaria pesada e repleta de pó que mascarava as estreitas janelas e circundava o leito, tudo era susceptível de dar uma feição melancólica aos pensamentos.
Lorde Londonderry examinou o seu dormitório e travou conhecimento com os antigos senhores do castelo que, retratados de pé nos quadros da parede, pareciam esperar a sua saudação. Depois de ter despedido o criado de quarto, foi deitar-se. Mal acabara de apagar a vela percebeu um raio de luz a iluminar o cortinado superior de seu leito. Convencido de que não havia fogo na grelha, que as cortinas estavam fechadas e que alguns minutos antes o quarto estava mergulhado na mais completa escuridão, supôs que um intruso ali houvesse penetrado. Voltando-se rapidamente para o lado de onde vinha a luz e, com grande espanto, viu a figura de uma bela criança, completamente nimbada de luz.
Convencido da integridade de suas faculdades, mas desconfiando de uma mistificação de um dos numerosos hóspedes do castelo, Lorde Londonderry avançou para a aparição, que se retirou de sua frente. À medida que se aproximava ela recuava, até que, chegando finalmente sob o sombrio arco da imensa chaminé, precipitou-se chão adentro e desapareceu.
Lorde Londonderry não dormiu naquela noite.
Resolveu não fazer nenhuma alusão ao que lhe tinha acontecido, até que tivesse examinado atentamente o semblante de todas as pessoas da casa. Durante o café, em vão procurou surpreender alguns sorrisos disfarçados, olhares de conivência e piscar de olhos, que geralmente denunciam os autores dessas conspirações domésticas.
A conversação seguiu o seu curso ordinário; estava animada e nada revelava uma mistificação. Por fim o marquês não pôde resistir ao desejo de contar o que tinha visto. O senhor do castelo observou que o relato de Lorde Londonderry devia parecer muito estranho aos que há muito tempo não visitavam o castelo e desconheciam as lendas da família. Então, voltando-se para Lorde Londonderry, disse: “Vistes a criança brilhante; alegrai-vos, pois é o presságio de uma grande fortuna. Mas eu teria preferido que não se tratasse dessa aparição.”
Em outra ocasião Lorde Castlereagh viu a criança brilhante na Câmara dos Comuns. No dia de seu suicídio ele teve uma aparição semelhante. n Sabe-se que este Lorde, um dos principais membros do Ministério Harrowby e o mais obstinado perseguidor de Napoleão durante o seu revés, seccionou a própria carótida no dia 22 de agosto de 1823, morrendo instantaneamente.
Dizem que a surpreendente fortuna de Bernadotte lhe havia sido predita por uma necromante famosa, que também anunciara a de Napoleão I e desfrutava da confiança da Imperatriz Josefina.
Bernadotte estava convencido de que uma espécie de divindade tutelar se ligava a ele para o proteger. Talvez as tradições maravilhosas que cercaram o seu leito não fossem estranhas a esse pensamento, que jamais o abandonava. Com efeito, em sua família narrava-se uma antiga crônica segundo a qual uma fada, esposa de um de seus antepassados, havia predito que um rei ilustraria a sua posteridade.
Eis um fato que demonstra o quanto o maravilhoso havia conservado o seu império sobre o Espírito do Rei da Suécia. Ele queria resolver à espada as dificuldades que a Noruega lhe opunha e enviar seu filho Oscar à frente de um Exército para aniquilar os rebeldes. O Conselho de Estado fez viva oposição a esse projeto. Certo dia em que Bernadotte acabava de travar uma animada discussão sobre o assunto, montou a cavalo e afastou-se da capital à disparada. Depois de longo percurso chegou às bordas de uma sombria floresta. De repente apresentou-se aos seus olhos uma velha mulher, vestida de maneira extravagante e com os cabelos em desalinho: — “Que quereis?” — perguntou bruscamente o rei. A feiticeira respondeu sem se desconcertar: — “Se Oscar combater nessa guerra que premeditas, não dará os primeiros golpes, mas os receberá.”
Impressionado por essa aparição e por essas palavras, Bernadotte voltou ao palácio. No dia seguinte, denotando ainda no rosto os sinais de uma longa vigília cheia de agitação, apresentou-se ao Conselho: “Mudei de opinião; negociaremos a paz, desde que em condições honrosas.”
Em sua Vie
de M. de Rancé, fundador de La Trappe, conta Chateaubriand
que um dia esse homem célebre, passeando na avenida do castelo de Veretz,
julgou ver um grande incêndio que consumia as dependências destinadas
às aves domésticas. Correu rápido para lá: o fogo diminuía à medida
que ele se aproximava. A certa distância o braseiro transformou-se num
lago de fogo, no meio do qual se erguia a meio corpo uma mulher devorada
pelas chamas.
Tomado de pavor, retomou correndo o caminho de casa. Ao chegar, as forças lhe faltaram, atirando-se semimorto na cama. Não foi senão depois de longo tempo que contou a visão, cuja mera lembrança o fazia empalidecer.
Esses mistérios pertencem à loucura? O Sr. Brière de Boismont parece atribuí-los a uma ordem de coisas mais elevada, e concordo com a sua opinião. Isso não desagrada ao meu amigo Dr. Lélut: prefiro acreditar no gênio familiar de Sócrates e nas vozes de Joana d’Arc a crer na demência do filósofo e da virgem de Domrémy.
Há fenômenos que ultrapassam a inteligência e que desconcertam as ideias recebidas, mas diante de cuja evidência é preciso que a lógica humana se incline humildemente. Nada é brutal, e sobretudo irrecusável, como um fato. Tal é a nossa opinião e, principalmente, a do Sr. Guizot:
“Qual a grande questão, a questão suprema que hoje preocupa os espíritos? É a questão levantada entre os que reconhecem e os que não reconhecem uma ordem sobrenatural, verdadeira e soberana, embora impenetrável à razão humana; é a questão levantada para chamar as coisas pelo seu nome, entre o supernaturalismo e o racionalismo. De um lado os incrédulos, os panteístas, os cépticos de toda sorte, os puros racionalistas; do outro, os cristãos.
“Com vistas à nossa salvação presente e futura, é necessário que a fé, o respeito e a submissão à ordem sobrenatural penetrem no mundo e na alma humana, nos grandes espíritos como nos espíritos simples, nas regiões mais elevadas como nas mais humildes. A influência real, verdadeiramente eficaz e regeneradora das crenças religiosas tem essa condição. Fora daí são superficiais e muito perto de tornar-se vãs.” (Guizot).
Não, a morte jamais haverá de separar para sempre, mesmo neste mundo, os eleitos que Deus recebeu em seu seio e os exilados que ficaram neste vale de lágrimas, in hac lacrymarum valle, para empregar as palavras melancólicas da Salve Rainha. Há horas misteriosas e benditas em que os mortos bem-amados se debruçam sobre aqueles que os pranteiam, murmurando-lhes aos ouvidos palavras de consolação e de esperança. O Sr. Guizot, esse Espírito severo e metódico, tem razão de professar: “Fora daí as crenças religiosas são superficiais e muito perto de tornar-se vãs.”
Sam.
(Extraído da Patrie, de 5 de junho de 1859.)
[1]
[v.
Lorde Castlereagh.]
[2] [v.
Bernadotte.]
[3] Forbes Winslow — Anatomy of suicide, 1 vol. in-8º, p. 242. London, 1840.