1. — Era um homem rico, instruído, poeta de espírito, possuidor de caráter são, obsequioso e ameno, de perfeita honradez. Falsas especulações comprometeram-lhe a fortuna, e, não lhe sendo possível repará-la em razão da idade avançada, cedeu ao desânimo, enforcando-se em dezembro de 1864, no seu quarto de dormir. 2 Não era materialista nem ateu, mas um homem de gênio um tanto superficial, ligando pouca importância ao problema da vida de além-túmulo. Conhecendo-o intimamente, evocamo-lo, quatro meses após o suicídio, inspirados pela simpatia que lhe dedicávamos.
2. — Evocação.
— Choro a Terra na qual tive decepções, porém menores do que as experimentadas aqui. Eu, que sonhava maravilhas, estou abaixo da realidade do meu ideal. 2 O mundo dos Espíritos é bastante promíscuo, e para torná-lo suportável fora mister uma boa triagem. Custa-me a crer. Que esboço de costumes espíritas se poderia fazer aqui! O próprio Balzac, estando no seu elemento, não faria tal esboço senão de modo rústico. Não o lobriguei, porém… 3 Onde estarão esses grandes Espíritos que tão energicamente profligaram os vícios da Humanidade! Deviam eles, como eu, habitar por aqui antes de se alçarem a regiões mais elevadas. Apraz-me observar este curioso pandemônio, e assim fico por aqui.
4 Apesar de o Espírito nos declarar que se acha numa sociedade assaz promíscua e, por conseguinte, de Espíritos inferiores, surpreendeu-nos a sua linguagem, dado o gênero de morte, ao qual, aliás, não faz qualquer referência. A não ser isso, tudo mais refletiu seu caráter. Tal circunstância deixava-nos em dúvida sobre a identidade.
1. Tende a bondade de nos dizer como morrestes… — R. Como morri? Pela morte por mim escolhida, a que mais me agradou, sendo para notar que meditei muito tempo nessa escolha com o intuito de me desembaraçar da vida. 2 Apesar disso, confesso que não ganhei grande coisa: — libertei-me dos cuidados materiais, porém, para encontrá-los mais graves e penosos na condição de Espírito, da qual nem sequer prevejo o termo.
2. (Ao guia do médium). Foi bem o Espírito do Sr. Félicien que respondeu? Esta linguagem, quase despreocupada, torna-se suspeita em se tratando de um suicida… — R. Sim. Entretanto, por um sentimento justificável na sua posição, ele não queria revelar ao médium o seu gênero de morte. Foi por isso que dissimulou a frase, acabando no entanto por confessá-lo diante da pergunta direta que lhe fizestes, e não sem angústias. 2 O suicídio fá-lo sofrer muito, e por isso desvia, o mais possível, tudo o que lhe recorde o seu fim funesto.
3. (Ao Espírito). A vossa desencarnação tanto mais nos comoveu, quanto lhe prevíamos as tristes consequências, além da estima e intimidade das nossas relações. Pessoalmente, não me esqueci do quanto éreis obsequioso e bom para comigo. Seria feliz se pudesse testemunhar-vos a minha gratidão, fazendo algo de útil para vós. — R. Entretanto, eu não podia furtar-me de outro modo aos embaraços da minha posição material. 2 Agora, só tenho necessidade de preces; orai, principalmente, para que me veja livre desses hórridos companheiros que aqui estão junto de mim, obsidiando-me com gritos, sorrisos e infernais motejos. Eles chamam-me covarde, e com razão, porque é covardia renunciar à vida. 3 É a quarta vez que sucumbo a essa provação, não obstante a formal promessa de não falir… Fatalidade!… 4 Ah! Orai… Que suplício o meu! Quanto sou infeliz! Orando, fazeis por mim mais que por vós pude fazer quando na Terra; 5 mas a prova, ante a qual fracassei tantas vezes, aí está retratada, indelével, diante de mim! É preciso tentá-la novamente, em dado tempo… Terei forças? Ah! recomeçar a vida tantas vezes; lutar por tanto tempo para sucumbir aos acontecimentos, é desesperador, mesmo aqui! Eis por que tenho carência de força. 6 Dizem que podemos obtê-la pela prece… Orai por mim, que eu quero orar também.
7 Este caso particular de suicídio, posto que realizado em circunstâncias vulgares, apresenta uma feição especial. Ele mostra-nos um Espírito que sucumbiu muitas vezes à provação, que se renova a cada existência e que renovará até que ele tenha forças para resistir. 8 Assim se confirma o fato de não haver proveito no sofrimento, sempre que deixamos de atingir o fim da encarnação, sendo preciso recomeçá-la até que saiamos vitoriosos da campanha.
3. — Ao Espírito do Sr. Félicien. — Ouvi, eu vo-lo peço, ouvi e meditai sobre as minhas palavras. 2 O que denominais fatalidade é apenas a vossa fraqueza, pois se a fatalidade existisse o homem deixaria de ser responsável pelos seus atos. 3 O homem é sempre livre, e nessa liberdade está o seu maior e mais belo privilégio; Deus não quis fazer dele um autômato obediente e cego. 4 Se essa liberdade o torna falível, também o torna perfectível, e tão somente pela perfeição poderá atingir a suprema felicidade.
5 O orgulho somente pode levar o homem a atribuir ao destino as suas infelicidades terrenas, quando a verdade é que tais infelicidades promanam da sua própria incúria. 6 Tendes disso um exemplo bem patente na vossa última encarnação, pois tínheis tudo que se fazia preciso à felicidade humana, na Terra: espírito, talento, fortuna, merecida consideração; nada de vícios ruinosos, mas, ao contrário, apreciáveis qualidades… Como, no entanto, ficou tão comprometida a vossa posição? 7 Unicamente pela vossa imprevidência. Haveis de convir que, agindo com mais prudência, contentando-vos com o muito que já vos coubera, antes que procurando aumentá-lo sem necessidade, a ruína não sobreviria. 8 Não havia nisso nenhuma fatalidade, uma vez que podíeis ter evitado tal acontecimento.
9 A vossa provação consistia num encadeamento de circunstâncias que vos deveriam dar, não a necessidade, mas a tentação do suicídio; 10 desgraçadamente, apesar do vosso talento e instrução, não soubestes dominar essas circunstâncias e sofreis agora as consequências da vossa fraqueza. 11 Essa prova, tal como pressentis com razão, deve renovar-se ainda; na vossa próxima encarnação tereis de enfrentar acontecimentos que vos sugerirão a ideia do suicídio, e sempre assim acontecerá até que de todo tenhais triunfado.
12 Longe de acusar a sorte, que é a vossa própria obra, admirai a bondade de Deus, que, em vez de condenar irremissivelmente pela primeira falta, oferece sempre os meios de repará-la. 13 Assim, sofrereis, não eternamente, mas por tanto tempo quanto reincidirdes no erro. 14 De vós depende, no estado espiritual, tornar a resolução bastante enérgica de manifestar a Deus um sincero arrependimento, solicitando instantemente o apoio dos bons Espíritos. Voltareis então à Terra, blindado na resistência a todas as tentações. 15 Uma vez alcançada essa vitória, caminhareis na via da felicidade com mais rapidez, visto que sob outros aspectos o vosso progresso é já considerável. 16 Como vedes, há ainda um passo a franquear, para o qual vos auxiliaremos com as nossas preces. Estas só serão improfícuas se nos não secundardes com os vossos esforços.
17 R. Oh! obrigado! Oh! obrigado por tão boas exortações. Delas tenho tanto maior necessidade, quanto sou mais infeliz do que demonstrava. Vou aproveitá-las, garanto, no preparo da próxima encarnação, durante a qual farei todo o possível por não sucumbir. Já me custa suportar o meio ignóbil do meu exílio.
Félicien.