Os
anjos segundo a Igreja. (1-2.) — Refutação. (3-11.)
— Os anjos segundo o Espiritismo. (12-15.)
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Os anjos segundo a Igreja.
1. — Todas as religiões têm tido anjos sob vários nomes, isto é, seres superiores à humanidade, intermediários entre Deus e os homens. 2 Negando toda a existência espiritual fora da vida orgânica, o materialismo naturalmente classificou os anjos entre as ficções e alegorias. 3 A crença nos anjos é parte essencial dos dogmas da Igreja, que assim os define: n
2. — Acreditamos firmemente, diz um concílio geral e ecumênico, n que só há um Deus verdadeiro, eterno e infinito, que no começo dos tempos tirou conjuntamente do nada as duas criaturas — espiritual e corpórea, angélica e mundana tendo formado depois, como elo entre as duas, a natureza humana, composta de corpo e Espírito.
2 “Tal é, segundo a fé, o plano divino na obra da criação, plano majestoso e completo como convinha à eterna sabedoria. Assim concebido, ele oferece aos nossos pensamentos o ser em todos os seus graus e condições. Na esfera mais elevada aparecem a existência e a vida puramente espirituais; na última ordem, uma e outra puramente materiais e, intermediariamente, uma união maravilhosa das duas substâncias, uma vida ao mesmo tempo comum ao Espírito inteligente e ao corpo organizado.
3 “Nossa alma é de natureza simples e indivisível, porém limitada em suas faculdades. A ideia que temos da perfeição faz-nos compreender que pode haver outros seres simples quanto ela, e superiores por suas qualidades e privilégios. A alma é grande e nobre, porém, está associada à matéria, servida por órgãos frágeis e limitada no poder e na ação. Por que não haver outras ainda mais pobres, libertas dessa escravidão, dessas peias e dotadas de uma força e atividade maiores e incomparáveis? Antes que Deus houvesse colocado o homem na Terra, para conhecê-lo, servi-lo, e amá-lo, não teria já chamado outras criaturas, a fim de compor-lhe a corte celeste e adorá-lo no auge da glória? Deus, enfim, recebe das mãos do homem os tributos de honra e homenagem deste universo: é, portanto, de admirar que receba das mãos dos anjos o incenso e as orações do homem? Se, pois, os anjos não existissem, a grande obra do Criador não patentearia o acabamento e a perfeição que lhe são peculiares; este mundo, que atesta a sua onipotência, não fora mais a obra-prima da sabedoria; nesse caso a nossa razão, posto que fraca, poderia conceber um Deus mais completo e consumado.
4 “Em cada página dos sagrados livros, do Velho como do Novo Testamentos, se fez menção dessas inteligências sublimes, já em piedosas invocações, já em referências históricas. A sua intervenção aparece manifestamente na vida dos patriarcas e dos profetas. Serve-se Deus de tal ministério, ora para transmitir a sua vontade, ora para anunciar futuros acontecimentos, e os anjos são também quase sempre órgãos de sua justiça e misericórdia. A sua presença ressalta das circunstâncias que acompanham o nascimento, a vida e a paixão do Salvador; a sua lembrança é inseparável da dos grandes homens, como dos fatos mais grandiosos da antiguidade religiosa. A crença nos anjos existe no seio mesmo do politeísmo e nas fábulas da mitologia, porque essa crença é tão universal e antiga quanto o mundo. O culto que os pagãos prestavam aos bons e maus gênios não era mais que falsa aplicação da verdade, um resto degenerado do primitivo dogma.
5 “As palavras do santo concílio de Latrão contêm fundamental distinção entre os anjos e os homens: ensinam-nos que os primeiros são puros Espíritos, enquanto que os segundos se compõem de um corpo e de uma alma, isto é, que a natureza angélica subsiste por si mesma não só sem mistura como dissociada da matéria, Por mais vaporosa e sutil que se suponha, ao passo que a nossa alma, igualmente espiritual, associa-se ao corpo de modo a formar com ele uma só pessoa, sendo tal e essencialmente o seu destino.
6 “Enquanto perdura tão íntima ligação de alma e corpo, as duas substâncias têm vida comum e se exercem recíproca influência; daí o não poder a alma libertar-se completamente das imperfeições de tal condição: as ideias chegam-lhe pelos sentidos na comparação dos objetos externos e sempre debaixo de imagens mais ou menos aparentes. Eis por que a alma não pode contemplar-se a si mesma, nem conceber Deus e os anjos sem atribuir-lhes forma visível e palpável. O mesmo se dá quanto aos anjos, sue para se manifestarem aos santos e profetas hão de revestir formas tangíveis e palpáveis. Essas formas no entanto não passavam de corpos aéreos que faziam mover-se e identificar-se com eles, ou de atributos simbólicos de acordo com a missão a seu cargo.
7 “Seu ser e movimentos não são localizados nem circunscritos a limitado e fixo ponto do Espaço. Desligados integralmente do corpo, não ocupam qualquer espaço no vácuo; mas assim como a nossa alma existe integral no corpo e em cada uma de suas partes, assim também os anjos estão, e quase que simultaneamente, em todos os pontos e partes do mundo. Mais rápidos que o pensamento, podem agir em toda parte num dado momento, operando por si mesmos sem outros obstáculos, senão os da vontade do Criador e os da liberdade humana.
8 “Enquanto somos condenados a ver lenta e limitadamente as coisas externas; enquanto as verdades sobrenaturais se nos afiguram enigmas num espelho, na frase de S. Paulo, eles, os anjos, veem sem esforço o que lhes importa saber, e estão sempre em relação imediata com o objeto de seus pensamentos. Os seus conhecimentos são resultantes não da indução e do raciocínio, mas dessa intuição clara e profunda que abrange de uma só vez o gênero e as espécies deles derivadas, os princípios e as consequências que deles decorrem.
“A distância das épocas, a diferença de lugares, como a multiplicidade de objetos, confusão alguma podem produzir em seus espíritos.
9 “Infinita, a essência divina é incompreensível; tem mistérios e profundezas que se não podem penetrar; mas em lhes serem defesos os desígnios particulares da Providência, ela lhos desvenda quando em certas circunstâncias são encarregados de os anunciarem aos homens.
10 “As comunicações de Deus com os anjos e destes entre si, não se fazem como entre nós por meio de sons articulados e de sinais sensíveis. As puras inteligências não têm necessidade nem de olhos para ver, nem de ouvidos para ouvir; tampouco possuem órgão vocal para manifestar seus pensamentos. Este instrumento usual de nossas relações é-lhes desnecessário, pois comunicam seus sentimentos de modo só a eles peculiar, isto é, todo espiritual. Basta-lhes querer para se compreenderem.
11 “Unicamente Deus conhece o número dos anjos. Este número não é, sem dúvida, infinito, nem pudera sê-lo; porém, segundo os autores sagrados e os santos doutores, é assaz considerável, verdadeiramente prodigioso. Se pudermos proporcionar o número de habitantes de uma cidade à sua grandeza e extensão, e sendo a Terra apenas um átomo comparada ao firmamento e às imensas regiões do Espaço, força é concluir que o número dos habitantes do ar e do céu é muito superior ao dos homens.
12 “E se a majestade dos reis se ostenta pelo brilhantismo e número dos vassalos, dos oficiais e dos súditos, que haverá de mais próprio a dar-nos ideia da majestade do Rei dos reis do que essa multidão inumerável de anjos que povoam céus e Terra, mar e abismos, à dignidade dos que permanecem continuamente prostrados ou de pé ante seu trono?
13 “Os padres da Igreja e os teólogos ensinam geralmente que os anjos se dividem em três grandes hierarquias ou principados, e cada hierarquia em três companhias ou coros.
14 “Os da primeira e mais alta hierarquia designam-se conformemente às funções que exercem no Céu: — Os Serafins são assim designados por serem como que abrasados perante Deus pelos ardores da caridade; outros, os Querubins, por isso que refletem luminosamente a divina sabedoria; e finalmente Tronos os que proclamam a grandeza do Criador, cujo brilho fazem resplandecer.
15 “Os anjos da segunda hierarquia recebem nomes consentâneos com as operações que se lhes atribui no governo geral do Universo, e são: — as Dominações, que determinam aos anjos de classes inferiores suas missões e deveres; as Virtudes, que promovem os prodígios reclamados pelos grandes interesses da Igreja e do gênero humano; e as Potências, que protegem por sua força e vigilância as leis que regem o mundo físico e moral.
16 “Os da terceira hierarquia têm por missão a direção das sociedades e das pessoas, e são: — os Principados, encarregados de reinos, províncias e dioceses; os Arcanjos, que transmitem as mensagens de alta importância, e os Anjos de guarda, que acompanham as criaturas a fim de velarem pela sua segurança e santificação.”
3. — O princípio geral resultante dessa doutrina é que os anjos são seres puramente espirituais, anteriores e superiores à Humanidade, criaturas privilegiadas e votadas à felicidade suprema e eterna desde a sua formação, dotadas, por sua própria natureza, de todas as virtudes e conhecimentos, nada tendo feito, aliás, para adquiri-los. 2 Estão, por assim dizer, no primeiro plano da Criação, contrastando com o último onde a vida é puramente material; e, entre os dois, medianamente existe a Humanidade, isto é, as almas, seres inferiores aos anjos e ligados a corpos materiais.
3 De tal sistema decorrem várias dificuldades capitais: Em primeiro lugar, que vida é essa puramente material? Será a da matéria bruta? Mas a matéria bruta é inanimada e não tem vida por si mesma. Acaso referir-se-á aos animais e às plantas? 4 Neste suposto seria uma quarta ordem na Criação, pois não se pode negar que no animal inteligente algo há de mais que numa planta, e nesta, que numa simples pedra. 5 Quanto à alma humana, que estabelece a transição, essa fica diretamente unida a um corpo, matéria bruta, aliás; porque sem alma o corpo tem tanta vida como qualquer bloco de terra.
6 Evidentemente, esta divisão é obscura e não se compadece com a observação; assemelha-se à teoria dos quatro elementos, anulada pelos progressos da Ciência. 7 Admitamos, entretanto, estes três termos: — a criatura espiritual, a humana e a corpórea, pois que tal é, dizem, o plano divino, majestoso e completo como convém à Eterna Sabedoria. 8 Notemos antes de tudo que não há ligação alguma necessária entre esses três termos, e que são três criações distintas e formadas sucessivamente, ao passo que em a Natureza tudo se encadeia, mostrando-nos uma lei de unidade admirável, cujos elementos, não passando de transformações entre si, têm, contudo, seus laços de união. 9 Mas essa teoria, incompleta embora, é, até certo ponto, verdadeira, quanto à existência dos três termos: faltam-lhe os pontos de contato desses termos, como é fácil demonstrar.
4. — Diz a Igreja que esses três pontos culminantes da Criação são necessários à harmonia do conjunto. Desde que lhe falte um só que seja, a obra incompleta não mais se compadece com a Sabedoria Eterna. 2 Entretanto, um dos dogmas fundamentais diz que a Terra, os animais, as plantas, o sol e as estrelas e até a luz foram criados do nada, há seis mil anos. 3 Antes dessa época não havia, portanto, criatura humana, nem corpórea — o que importa dizer que no decurso da eternidade a obra divina jazia imperfeita. 4 É artigo de fé capital a criação do Universo, há seis mil anos, tanto que há pouco ainda era a Ciência anatematizada por destruir a cronologia bíblica, provando maior ancianidade da Terra e de seus habitantes.
5 Apesar disso, o concílio de Latrão, concílio ecumênico que faz lei em matéria ortodoxa, diz: “Acreditamos firmemente num Deus único e verdadeiro, eterno e infinito, que no começo dos tempos tirou conjuntamente do nada as duas criaturas — espiritual e corpórea.” 6 Por começo dos tempos só podemos inferir a eternidade transcorrida, visto ser o tempo infinito como o Espaço, sem começo nem fim. 7 Esta expressão, começo dos tempos, é antes uma figura que implica a ideia de uma anterioridade ilimitada. 8 O concílio de Latrão acredita, pois, firmemente, que as criaturas espirituais como as corpóreas foram simultaneamente formadas e tiradas em conjunto do nada, numa época indeterminada, no passado. 9 A que fica reduzido, assim, o texto bíblico que data a Criação de seis mil dos nossos anos? E, ainda que se admita seja tal o começo do Universo visível, esse não é seguramente o começo dos tempos. Em qual crer: — no concílio ou na Bíblia?
5. — O concílio formula, além disso, uma estranha proposição: “Nossa alma, diz, igualmente espiritual, é associada ao corpo de maneira a não formar com ele mais que uma pessoa, e tal é, essencialmente, o seu destino.” 2 Ora, se o destino essencial da alma é estar unida ao corpo, esta união constitui o estado normal, o desígnio, o fim, por isso que é o seu destino. 3 Entretanto, a alma é imortal e o corpo não; a união daquela com este só se realiza uma vez, segundo a Igreja, e ainda que durasse um século, nada seria em relação à eternidade. 4 E sendo apenas de algumas horas para muitos, que utilidade teria para a alma união tão efêmera? Mas, que se prolongue essa união tanto quanto se pode prolongar uma existência terrena e, ainda assim, poder-se-á afirmar que o seu destino é estar essencialmente integrada? 5 Não, essa união mais não é na realidade do que um incidente, um ponto na vida da alma, nunca o seu estado essencial.
6 Se o destino essencial da alma é estar ligada ao corpo humano; se por sua natureza e segundo o fim providencial da Criação, essa união é necessária às manifestações das suas faculdades, forçoso é concluir que, sem corpo, a alma humana é um ser incompleto; 7 ora, para que a alma preencha os seus desígnios, deixando um corpo preciso se faz que tome um outro — o que nos conduz à pluralidade forçada das existências, ou, por outra, à reencarnação, à perpetuidade. 8 É verdadeiramente estranhável que um concílio, havido por uma das luzes da Igreja, tenha a tal ponto identificado os seres espiritual e material, de modo a não subsistirem por si mesmos, pois que a condição essencial da sua criação é estarem unidos.
6. — O quadro hierárquico dos anjos nos mostra que várias ordens têm, nas suas atribuições, o governo do mundo físico e da Humanidade, para cujo fim foram criados. 2 Mas, segundo a Gênese, o mundo físico e a Humanidade não existem senão há seis mil anos; e o que faziam, pois, tais anjos, anteriormente a essa era, durante a eternidade, quando não existia o objetivo das suas ocupações? 3 E teriam eles sido criados de toda a eternidade? Assim deve ser, uma vez que servem à glorificação do Todo-Poderoso. Mas, criando-os numa época qualquer determinada, Deus ficaria até então, isto é, durante uma eternidade, sem adoradores.
7. — Diz ainda o concílio: “Enquanto dura esta união tão íntima da alma com o corpo.” Há, por conseguinte, um momento em que a união se desfaz? Esta proposição contradita a que sustenta a essencialidade dessa união.
2 E diz mais o concílio: As ideias lhes chegam pelos sentidos, na comparação dos objetos exteriores. Eis aí uma doutrina filosófica em parte verdadeira, que não em sentido absoluto. 3 Receber as ideias pelos sentidos é, segundo o eminente teólogo, uma condição inerente à natureza humana: mas ele esquece as ideias inatas, as faculdades por vezes tão transcendentes, a intuição das coisas que a criança traz do berço, não devidas a quaisquer ensinos. 4 Por meio de quais sentidos, jovens pastores, naturais calculistas, admiração dos sábios, adquirem ideias necessárias à resolução quase instantânea dos mais complicados problemas? Outro tanto pode dizer-se de músicos, pintores e filólogos precoces.
5 “Os conhecimentos dos anjos não resultam da indução e do raciocínio”; tem-nos porque são anjos, sem necessidade de aprendê-los, pois tais foram por Deus criados: quanto à alma, essa deve aprender. 6 Mas se a alma só recebe as ideias por meio dos órgãos corporais, que ideias pode ter a alma de uma criança morta ao fim de alguns dias, se admitirmos com a Igreja que essa alma não renasce?
8. — Aqui reponta uma questão vital, qual a de saber-se, se a alma pode adquirir conhecimentos após a morte do corpo. 2 Se uma vez liberta do corpo não pode adquirir novos conhecimentos, a alma da criança, do selvagem, do imbecil, do idiota ou do ignorante permanecerá tal qual era no momento da morte, condenada à nulidade por todo o sempre.
3 Mas se, ao contrário, ela adquire novos conhecimentos depois da vida atual, então, é que pode progredir. 4 Sem progresso ulterior para a alma, chega-se a conclusões absurdas, tanto quanto admitindo-o se conclui pela negação de todos os dogmas fundados sobre o estacionamento, a sorte irrevogável, as penas eternas, etc. 5 Progredindo a alma, qual o limite do progresso? Não há razão para não atingir por ele ao grau dos anjos, ou puros Espíritos. 6 Ora, com tal possibilidade não se justificaria a criação de seres especiais e privilegiados, isentos de qualquer labor, gozando incondicionalmente de eterna felicidade, ao passo que outros seres menos favorecidos só obtêm essa felicidade a troco de longos, de cruéis sofrimentos e rudes provas. 7 Sem dúvida que Deus poderia ter assim determinado, mas, admitindo-lhe o infinito de perfeição sem a qual não fora Deus, força é admitir que coisa alguma criaria inutilmente, desmentindo a sua justiça e bondade soberanas.
9. — E se a majestade dos reis ostenta o seu brilhantismo pelo número dos vassalos, oficiais e súditos, que haverá de mais próprio a dar-nos ideia da majestade do Rei dos reis do que essa inumerável multidão de anjos que povoam céu e terra, mar e abismos, a dignidade dos que permanecem continuamente prostrados ou de pé ante seu trono.”
2 E não será rebaixar a Divindade confrontá-la como fausto dos soberanos da Terra? Essa ideia, inculcada no espírito das massas ignorantes, falseia a opinião de sua verdadeira grandeza; 3 sempre Deus reduzido às mesquinhas proporções da Humanidade! Atribuir-lhe, como necessidade, milhões de adoradores, perenemente genuflexos, é emprestar-lhe vaidade e fraqueza próprias dos orgulhosos déspotas do Oriente! 4 E que é que engrandece os soberanos verdadeiramente grandes? É o número e brilho dos cortesãos? não; é a bondade, é a justiça, é o título merecido de pais do seu povo. 5 Perguntareis se haverá algo de mais próprio a dar-nos a ideia da grandeza e majestade de Deus do que a multidão de anjos que lhe compõem a corte… Mas, certamente que há, e essa coisa melhor é apresentar-se Deus às suas criaturas soberanamente bom, justo e misericordioso, que não colérico, invejoso, vingativo, exterminador e parcial, criando para sua própria glória esses seres privilegiados, cumulados de todos os dons e nascidos para a felicidade eterna, enquanto a outros impõe condições penosas na aquisição de bens, punindo erros momentâneos com eternos suplícios…
10. — A respeito da união da alma com o corpo, o Espiritismo professa uma doutrina infinitamente mais espiritualista, para não dizer menos materialista, tendo ao demais a seu favor a conformidade com a observação e o destino da alma. 2 Ele ensina-nos que a alma é independente do corpo, não passando este de temporário invólucro: a espiritualidade é-lhe a essência, e a sua vida normal é a vida espiritual. 3 O corpo é apenas instrumento da alma para exercício das suas faculdades nas relações com o mundo material; separada desse corpo, goza dessas faculdades mais livre e altamente.
11. — A união da alma com o corpo, em ser necessária aos seus primeiros progressos, só se opera no período que poderemos classificar como da sua infância e adolescência; atingido, porém, que seja, um certo grau de perfeição e desmaterialização, essa união é prescindível, o progresso faz-se na sua vida de Espírito. 2 Demais, por numerosas que sejam as existências corpóreas, elas são limitadas à existência do corpo, e a sua soma total não compreende, em todos os casos, senão uma parte imperceptível da vida espiritual, que é ilimitada.
12. — Que haja seres dotados de todas as qualidades atribuídas aos anjos, não restam dúvidas. 2 A revelação espírita neste ponto confirma a crença de todos os povos, fazendo-nos conhecer ao mesmo tempo a origem e natureza de tais seres.
3 As almas ou Espíritos são criados simples e ignorantes, isto é, sem conhecimentos nem consciência do bem e do mal, porém, aptos para adquirir o que lhes falta. 4 O trabalho é o meio de aquisição, e o fim — que é a perfeição — é para todos o mesmo. 5 Conseguem-no mais ou menos prontamente em virtude do livre arbítrio e na razão direta dos seus esforços; 6 todos têm os mesmos degraus a franquear, o mesmo trabalho a concluir; 7 Deus não aquinhoa melhor a uns do que a outros, porquanto é justo, e, visto serem todos seus filhos, não tem predileções. 8 Ele lhes diz: “Eis a lei que deve constituir a vossa norma de conduta; ela só pode levar-vos ao fim; tudo que lhe for conforme é o bem; tudo que lhe for contrário é o mal. Tendes inteira liberdade de observar ou infringir essa lei, e assim sereis os árbitros da vossa própria sorte.” 9 Conseguintemente, Deus não criou o mal; todas as suas leis são para o bem; 10 e foi o homem que criou esse mal, divorciando-se dessas leis; se ele as observasse escrupulosamente, jamais se desviaria do bom caminho.
13. — Entretanto, a alma, qual criança, é inexperiente nas primeiras
fases da existência, e daí o ser falível. 2
Não lhe dá Deus essa experiência, mas dá-lhe meios de adquiri-la; 3
assim, um passo em falso na senda do mal é um atraso para a alma, que,
sofrendo-lhe as consequências, aprende à sua custa o que importa evitar.
4
Deste modo, pouco a pouco, se desenvolve, aperfeiçoa e adianta na hierarquia
espiritual até ao estado de puro Espírito ou anjo. 5
Os anjos são, pois, as almas dos homens chegados ao grau de perfeição
que a criatura comporta, fruindo em sua plenitude a prometida felicidade.
6
Antes, porém, de atingir o grau supremo, gozam de felicidade relativa
ao seu adiantamento, felicidade que consiste, não na ociosidade, mas
nas funções que a Deus apraz confiar-lhes, e por cujo desempenho se
sentem ditosas, tendo ainda nele um meio de progresso. (Vede 1ª Parte,
capítulo III: O Céu.)
14. — A Humanidade não se limita à Terra; habita inúmeros mundos que no Espaço circulam; já habitou os desaparecidos, e habitará os que se formarem. 2 Tendo-a criado de toda a eternidade, Deus jamais cessa de criá-la. 3 Muito antes que a Terra existisse e por mais remota que a suponhamos, outros mundos havia, nos quais Espíritos encarnados percorreram as mesmas fases que ora percorrem os de mais recente formação, atingindo seu fim antes mesmo que houvéramos saído das mãos do Criador. 4 De toda a eternidade tem havido, pois, puros Espíritos ou anjos; mas, como a sua existência humana se passou num infinito passado, eis que os supomos como se tivessem sido sempre anjos de todos os tempos.
15. — Realiza-se assim a grande lei de unidade da Criação; Deus nunca esteve inativo e sempre teve puros Espíritos, experimentados e esclarecidos, para transmissão de suas ordens e direção do Universo, desde o governo dos mundos até os mais ínfimos detalhes. 2 Tampouco teve Deus necessidade de criar seres privilegiados, isentos de obrigações; todos, antigos e novos, adquiriram suas posições na luta e por mérito próprio; todos, enfim, são filhos de suas obras. E, desse modo, completa-se com igualdade a soberana justiça do Criador.
[1] Extraímos este resumo da pastoral de Monsenhor Gousset, cardeal-arcebispo de Reims, para a quaresma de 1864. Por ele podemos, pois, considerar os anjos, assim como os demônios, cujo resumo tiramos da mesma origem e citamos no capítulo seguinte, como última expressão do dogma da Igreja neste sentido.
[2] Concílio de Latrão. †