O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

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Voltei — Irmão Jacob


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Ensinamento inesperado

(Sumário)

1. Pessoa alguma escapará aos imperativos do próprio melhoramento. A criatura ignorante poderá refugiar-se na intemperança dos sentidos físicos, acreditando ser a morte o fim de toda a luta, e o homem instruído folheará páginas preciosas, imaginando-se exonerado da obrigação de ser útil ao próximo, no devotamento fraternal. Entretanto, para todos aqueles que se demoraram longe da ação edificante e renovadora, a vida espiritual reabre as portas do esforço pessoal imprescindível.

2 Os Espíritos preguiçosos atrasarão sua marcha, detendo-se na revolta, na inércia ou na rebeldia e serão aproveitados na obra regeneradora ou evolutiva à maneira dos corrosivos que servem às tarefas de limpeza, utilizados por mãos hábeis; todavia, os filhos do arrependimento e da boa vontade encontrarão mil meios de agir e servir, no extenso campo do bem.

3 Assembleias veneráveis de benfeitores congregar-se-ão nos altos cimos em favor de milhões de seres, mas Espírito algum se sentará num trono que não edificou, nem brilhará com alheia lâmpada.

4 Apelos e consolos do campo mais nobre não devem ser interpretados exclusivamente como simples reconforto da proteção afetiva, mas, acima de tudo, por valiosas ferramentas de serviço redentor. Este é um ensinamento que estou aprendendo à custa de muito esforço e que os amigos esclarecidos da Terra possivelmente evitarão, valendo-se das oportunidades de elevação e aprimoramento que o mundo lhes oferece.


EXPERIMENTAÇÃO


2. Certo companheiro de aprendizado convidou-me a experimentar praticamente as lições da escola iluminativa em que nos reajustávamos.

2 Iríamos ao Rio, onde recebêramos valiosas bênçãos da fé. Procuraríamos alguns dos casos de doutrinação e socorro junto aos quais funcionáramos, e aplicaríamos então os princípios recebidos.

3 O orientador a quem expusemos o projeto aprovou-o com evidente satisfação, mas considerou que deveríamos seguir em companhia de alguém mais apto que nós, de modo a não perdermos a semeadura. Indagou sobre as particularidades do empreendimento e, depois de ouvir o colega, n quanto ao que intentava efetuar, comentei o meu objetivo.

4 Lutara durante muito tempo com perigoso obsessor de um alcoólatra inveterado. Não conseguira demovê-lo, renová-lo. Gostaria de observar o caso “in loco” e com as preocupações a que me compelisse, extrairia certa amostra do serviço maior que me aguardava.

5 O diretor ouviu pacientemente e não apresentou qualquer embargo, recomendando-nos, em seguida, à custódia do Irmão Ornelas, veterano em trabalhos da espécie que pretendíamos atacar.

Em breve, achávamo-nos na cidade, à noitinha.

6 O companheiro que nos seguia de perto explicou que inúmeros irmãos de outros Círculos, impossibilitados, por longos decênios, de retomar o corpo terreno, se dedicam a tarefas obscuras e sacrificiais, entre as almas endurecidas ou sofredoras, a fim de conquistarem, pela abnegação e pelo heroísmo silencioso, a irradiação luminosa que lhes falta. 7 Vastos anos despendem no esforço de renúncia, adquirindo humildade no trato de almas rebeldes e ásperas, quais semeadores buscando a dádiva da flor e do fruto ao contato do chão bruto. 8 Em geral, são homens e mulheres que se desmandaram na autoridade e no dinheiro, na inteligência ou na beleza, assumindo graves compromissos morais, que se consagram, depois do sepulcro, por extenso prazo, ao gênero de atividade que íamos tentar, em benditas peregrinações de auxílio aos semelhantes, ostentando aflitiva posição de servos apagados e anônimos para melhor atingirem os fins a que se propõem.


ANTE UM ESPÍRITO PERSEGUIDOR


3. O alcoólatra, cuja situação me levara a diversos serviços de preces e doutrinações nos últimos tempos de minha experiência no corpo, achava-se num bar suburbano a encharcar-se. Ao lado dele, o temível perseguidor dava expansão a impulsos menos dignos. Cada copo cheio era nova taça de venenoso fluido que ele aspirava com estranha volúpia.

2 Aproximamo-nos sem perda de tempo.

Antes de qualquer entendimento, Ornelas advertiu-me que fora dos laços físicos o socorro aos Espíritos transviados exige outros recursos além das armas verbais. Achávamo-nos ali, esclareceu prestimoso, sem o elemento controlador da mediunidade. 3 Quando o instrumento encarnado jaz nas trevas da ignorância, a entidade em desequilíbrio absorve-lhe o aparelho completamente, raiando pela possessão absoluta e, então, verificamos nos Círculos terrestres a exata reprodução da alma desorientada e desguarnecida de razão, oferecendo extensas mostras de loucura. 4 A maioria dos médiuns, porém, ainda mesmo quando sonâmbulos puros, de algum modo controlam os comunicantes irrequietos ou infelizes, exercendo determinada censura sobre as palavras rudes ou inconvenientes que desejam pronunciar. 5 Estaria naquele instante com um obsessor, frente a frente. Deveria preparar-me para demonstrar-lhe os melhores sentimentos do meu coração, porque da parte dele me daria a conhecer as notas mais íntimas da própria consciência.

6 Abeiramo-nos da dupla lamentável.

O verdugo fitava um copo vizinho, ao jeito do magnetizador interessado na presa. Era uma triste figura de vampiro que provocaria gestos de pavor nas pessoas em derredor, se lhe pudessem fixar a máscara diabólica.

7 Voltando-se para nós e sentindo-nos a observação calma, ao que me pareceu concentrou-se para melhor resistir-nos, sorriu escarninho e, detendo-se de modo especial sobre mim, gargalhou franco.

8 A princípio, molestei-me. Experimentei mal-estar intraduzível.

O Espírito endurecido a envolver-se em sombria nebulosa arremessava contra mim forças envolventes e perturbantes.

9 Ornelas sacudiu-me os ombros vigorosamente e disse:

— Vejo-lhe a inexperiência. Não tema. Centralize a vontade e reaja com todas as energias de que dispõe. Prepare-se para ouvir e falar com serenidade. Suas condições psíquicas virão à superfície do rosto e do verbo. Não se deixe abater. Ajudá-lo-ei.

10 A advertência calou-me consoladoramente no íntimo, embora, na realidade, não conseguisse sofrear o receio, em face da agressividade do perseguidor, que se unia a mim n com expressões provocadoras.


DIÁLOGO SURPREENDENTE


4. Diante do temível algoz e sob a sua zona de influência sem o concurso de um médium, qual se verificava nas doutrinações de outro tempo, tive o impulso de adiar a experiência. Não seria melhor que eu me fortalecesse mais?

2 Ornelas, no entanto, com o olhar severo, impediu-me o recuo e, pousando a destra sobre minha fronte, aconselhou-me a prosseguir, prometendo inspirar-me nas observações convenientes.

3 Mantive-me seguro e fixei destemerosamente o obsessor. Percebendo-me a decisão, o infeliz recolheu os punhos cerrados com que me afrontava, colérico.

Entrementes, a colaboração magnética de Ornelas me alimentava, causando-me grande reconforto.

4 Foi assim o meu primeiro diálogo, após a morte, com um Espírito desviado do bem:

— Meu irmão, — disse-lhe emocionado, — não se resolve a libertar nosso amigo doente, já de si mesmo tão miserável?

— E você, nem mesmo depois de “morto” desiste de me apoquentar? — Revidou o obsessor, raivoso.

— Sim, não desisto porque quero ser seu amigo e desejo trazer-lhe o Espírito para a luz.

— Mas não lhe vejo luz alguma. Como quer você dar o que não tem?…

5 A alegação chocou-me e por pouco não fugi ao entendimento; contudo, a mão vigorosa de Ornelas me amparava e respondi:

— Trabalharei sinceramente no bem até que a Vontade do Senhor me ilumine a alma.

6 O perverso interlocutor riu-se, desrespeitoso, e prosseguiu:

— Por que insiste? Não adiantará nada…

— Fora da caridade não há salvação, — retruquei, confiante. — Não julga ser nosso dever auxiliar o companheiro de mente enfermiça, ainda ligado ao corpo terrestre? Não lhe conhece a família respeitável e sofredora?

— Ora, Jacob, — falou-me, contundente, — você se refere à caridade com tanta segurança…

— Como não? Que será de nós sem a prática do bem?

— Ao que me consta, — exclamou sarcasticamente, — você na Terra dava grande preferência ao dinheiro, estimava profundamente a própria fortuna…

7 Nas minhas reações de “homem velho” quis dizer-lhe que era mais justo amar o próprio dinheiro que os bens alheios; todavia, a expressão fisionômica de Ornelas me susteve a frase de autodefesa e, ao invés de proferi-la, acentuei com serenidade:

— Recebi as vantagens materiais hauridas no esforço digno, tal como o mordomo que detém consigo, transitoriamente, as dádivas do Senhor. O que o Todo-Poderoso me confiou já restituí, de consciência feliz, aos seus sábios desígnios.

8 O verdugo fez um esgar de ódio e voltou a comentar:

— Não lhe reconheço autoridade para conselhos. Você foi sempre um homem áspero, indisciplinado, voluntarioso. Muita vez, acabava de apontar-nos o bom caminho para seguir estrada contrária. Agora quer ser apóstolo…

9 Marcou um gesto ridículo, a fim de torturar-me e continuou:

— Frequentemente, após deixar os aparelhos mediúnicos através dos quais trocávamos ideias, eu lhe seguia os passos, discreto, e notava que você não agia de conformidade com os próprios ensinos.

10 Semelhantes frases, ditas à queima-roupa, desconcertavam-me.

Ruborizei-me, envergonhado; todavia, Ornelas garantiu-me a firmeza de ânimo.

— Sim, — concordei —, reconheço as minhas fraquezas. Entretanto, sincero é o meu desejo de renovação e melhoria. 11 Não nos santificamos de uma vez e, se todos os pecadores se negarem ao trabalho do bem, sob a alegação de se sentirem maus e ingratos, como poderíamos aguardar vida melhor para o mundo? Se os Espíritos comprometidos com a Lei não se resolverem a colaborar no resgate dos próprios débitos, por se reconhecerem endividados, jamais atingiremos a necessária liquidação das contas humanas. 12 Compreendo que não sou um padrão vivo dos conhecimentos evangélicos, confiados à minhalma pela Compaixão Divina. No entanto, creia que não repousarei enquanto não afinar minhas atividades com os ideais redentores que abracei.

13 O interlocutor não se alegrou com a argumentação. A lealdade de minhas declarações esfriava-lhe a cólera. Escutou, amuado, e assim que o intervalo surgiu espontâneo, considerou menos irônico:

— Seu caso, então, será o do médico que deverá restaurar primeiramente a si mesmo…

— Não nego semelhante necessidade, — acrescentei, sincero, — tudo farei pelo meu próprio restabelecimento espiritual. 14 No serviço bem sentido e aplicado encontramos a corrigenda de nossos erros e a redenção do passado, por mais deplorável e delituoso. Acredite que o doente menos egoísta providenciará remédio e recurso para si e para os outros. Persistindo em sua atitude você prejudicará a si mesmo…

15 O desditoso, em crise de desespero, lembrou-me acremente certas falhas da experiência humana, em voz alta. Mas, auxiliado por Ornelas, eu ia encontrando meios de responder sem irritação, construtivamente.

16 Terminado o longo e desagradável diálogo em que me vi inesperadamente envolvido, aplicamos passes de socorro ao irmão encarnado, que se mantinha em aflitivas condições de enfermidade e embriaguez. 17 Após enorme relutância, o terrível perseguidor consentiu em que eu orasse, colocando-lhe a cabeça entre as minhas mãos. Supliquei ao Senhor fervorosamente que nos amparasse, a ele e a mim, para que ambos pudéssemos melhorar o coração e subir no conhecimento e na prática do bem.

18 Finda minha primeira observação pessoal de serviço, o obsessor fitou-me de maneira diferente. Pareceu-me não tanto agressivo. Revelava-se disposto a entender-me a disposição fraterna. Porque eu esperasse maior soerguimento, habituado ao imediatismo da luta terrestre, Ornelas despertou-me, exclamando:

— Não aguarde um reajustamento apressado. 19 Se a semente exige tempo, com o frio e o calor, a chuva e o Sol, para germinar e produzir, por que motivo reclamar a realização de espiritualidade superior, de minuto para outro, no ser eterno? 20 Plantemos e trabalhemos. Os resultados da boa iniciativa pertencem a Deus. Sobra-nos, meu caro, o prazer de servir. Tornaremos à questão na primeira oportunidade.

Admirado com a paciência do companheiro, segui-o sem hesitar.


APONTAMENTO SALUTAR


5. Quando o colega que nos seguia atendeu à tarefa a que se reservara, Ornelas percebeu a tristeza que me acometera de súbito. Efetivamente, graves reflexões acudiam-me ao pensamento.

2 Afinal, quem doutrinara no caso? Seria eu o portador de socorro ao Espírito infeliz ou fora o Espírito sofredor quem me beneficiara com a verdade?

Sombrio véu de preocupações descera sobre mim.

Como prosseguir? Não ignorava que um grupo de cooperadores decididos e fiéis me esperavam o concurso.

3 O companheiro mais experiente, compreendendo quanto se passava dentro de mim, aproximou-se enquanto regressávamos ao domicilio, em plena noite, e falou com cativante inflexão de bondade:

— Jacob, em toda parte seremos defrontados pela própria consciência. 4 Se louvamos nossos amigos pelo incentivo e pelo júbilo que nos proporcionam, agradeçamos aos nossos adversários gratuitos a ousadia com que nos demonstram as nossas necessidades. 5 Os que nos amam destacam-nos as qualidades excelentes do serviço já feito, na individualidade imperecível, e aqueles que nos desestimam indicam, com franqueza rude, as imperfeições que ainda conservamos conosco. 6 Os afeiçoados e simpatizantes silenciam a respeito das sombras que nos rodeiam, mas os contendores e desafetos as desvendam em nosso proveito, quando encontramos suficiente serenidade para buscar os interesses do Senhor e não os nossos. 7 Na sua capacidade de tolerar as observações amargas reside a base da própria iluminação. 8 O progresso é obra de esforço mútuo. O irmão perturbado beneficiou-se extensamente com o seu concurso valioso e, gradativamente, fixará nele mesmo a esmola recebida. Porém, não é razoável que você venha a perder sua parte. 9 Guarde o ensinamento, medite-o e conserve-lhe o valor. É provável que você agora se sinta afrontado e ferido; todavia, os dias correrão sobre os dias e concluirá, mais tarde, que não lhe falo sem razão sólida.

10 O conselho refrigerou-me a alma dilacerada. Pela primeira vez, compreendi que assim como chega um momento em que os juízes do mundo são julgados pelas obras que realizaram, surge também o minuto em que os doutrinadores da Terra são doutrinados pelos serviços que deixaram de fazer.


Irmão Jacob


[1] [No original impresso: “ouvir-me o colega”].

[2] [“que se unia a mim” no sentido de “que se aproximava de mim”.]



Texto extraído da 1ª edição desse livro.

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