O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

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Sexo e destino — André Luiz — F. C. Xavier / Waldo Vieira — 2ª Parte


Capítulo 6

(Sumário)

1. Valendo-nos da condução, seguíamos igualmente para o hospital, em objetivo de serviço.

2 Enquanto o automóvel chispava, a senhora Nogueira fitava Nemésio ao volante, apreciando-lhe a sisudez aparente e o porte desempenado. Inquietava-se consigo mesma, de vez que refletia naquilo em que não queria pensar. 3 À vista daquele tipo galhardo, indagava-se por que razão Marina preferira o filho ao pai, se o genitor, cavalheiro dinheiroso e simpático, era, em tudo, a pessoa capaz de assegurar-lhe independência e posição.

4 De quando em quando, envolvia-lhe o perfil numa olhadela mais comprida e concluía, de si para consigo, que a juventude não tinha lógica.

5 Mais alguns minutos e penetramos no estabelecimento, onde o par foi recepcionado pelo facultativo com quem Dona Márcia se comunicara, momentos antes.

6 O médico, gentil, notificou ter avisado Cláudio quanto à possibilidade da surpresa, mas Dona Márcia desconversou, para não dar ao pai de Gilberto a impressão de que se dispusera a vir até ali pela primeira vez. 7 Referiu-se à temperatura, comentou particularidades do ambiente, qual se repetisse observações corriqueiras. E o clínico, longe de perceber-se a servir de instrumento, respondia-lhe às perguntas calculadas, atendendo-lhe, involuntariamente, aos fins em pauta.

8 Foi assim que, ao transpor a entrada do aposento indicado, Nemésio guardava a convicção de acompanhar um símbolo vivo de ternura materna.


2. Cláudio, abatido, acolheu, a seu turno, os recém-chegados, entre sóbrio e atento. 2 A princípio, o desconforto íntimo… Depois, a conformação. Sofria demais para escolher discutir e aprendera o suficiente, naqueles dias de angústia, para inclinar-se a reclamações. 3 Aliás, ao facear com Nemésio, endereçou-lhe o olhar do homem atribulado que roga a outro homem comiseração e socorro. Recebeu-lhe o amplexo franco, depois das apresentações promovidas pela mulher, e imaginou-se na condição de um aluno em exame.

4 Torres, que ele conhecia tão bem, conquanto a distância, figurou-se-lhe diferente. Sabia-o ostentando-lhe a filha em noitadas vadias e vezes diversas sopitara o ímpeto de esmurrá-lo, ao retirar-se humilhado de recintos alegres para não aguentar desacatos; entretanto, agora lhe contemplava o rosto, imbuído de sentimentos novos. Identificava-se num teste de compreensão e de tolerância. 5 Num átimo, associou os ensinamentos espíritas-cristãos que lhe metamorfoseavam o íntimo com Marita em decúbito, fixou Nemésio e Márcia, e deduziu que não lhe competia julgar aquele homem que lhe explorava a família. Mecanicamente recordou Jesus e a lição da primeira pedra… ( † ) Estabeleceu confronto rápido e catalogou-se em nível inferior. Torres entretinha-se com uma jovem que lhe dava liberdade, e filha de outro homem. Ele, porém, não vacilara em abusar da própria filha, depois de encantoá-la na sombra, através de embuste soez. Com que direito assumiria, ante a própria vítima tombada, o papel de censor?

6 Indubitavelmente, — concluía em reflexões instantâneas, — amigos espirituais traziam-lhe o negociante detestado, experimentando-lhe a renovação. E a ele próprio, também, — considerou, humilde, — cabia o dever de sopesar as próprias reações, categorizar-se tal qual era, no fundo da consciência.

7 Naquela prova de segundos, volveu o olhar para a esposa e não mais encontrou em Dona Márcia a inimiga cordial de tantos anos. Aquele semblante embonecado por excessiva maquilagem, na presença das concepções novas que passara a nutrir, mascarava um coração insatisfeito, cujos desastres haviam sido provocados por ele mesmo. 8 Exterminara-lhe os sonhos, logo após o casamento. Recordou-se de como se enfadara, desapiedado, da esposa, então menina cândida e espontânea, tão só por vê-la disforme, na gravidez de que Marina sobreviera, e de como transferira, na direção de Aracélia, os instintos de homem selvagem. 9 Desde o choque em que se vira coagida a criar duas filhas, em vez de uma, a personalidade real de Márcia desaparecera. Desequilibrara-se. E ele, ao invés de regenerar-se, recuperando-a, jamais regressara da caça de aventuras. 10 Como exigir contas da mulher, se devia acusar-se? Nada lhe impedia fugir do autoexame, abraçando conversas triviais; entretanto, inferiu que não conseguiria ausentar-se da própria alma. Mais justo esquadrinhar-se, suportar-se… 11 Percebeu que Nemésio e Márcia, expectantes, lhe estranhavam a atitude e, muito mais para não incomodá-los que por subtrair-se a qualquer crítica, dirigiu o olhar para a filha desfigurada, que somente as energias de Moreira conjugadas com a alimentação artificial retinham no corpo físico, e falou para o genitor de Gilberto, com inflexão de profundo sofrimento:

— Veja o senhor… Nossa filha está muito mal…


3. Os recém-chegados fitaram, atônitos, aquele cadáver que ainda respirava…

2 Sentiu-se Dona Márcia esmagada de assombro, mesclado de piedade, mas reprimiu-se.

3 Torres, por sua vez, apertou os dedos contra as palmas das mãos, num gesto peculiar de nervosismo. A moça descarnada devolvia-lhe a imagem de Beatriz. Recuou, automaticamente, procurando o pai de Marina a fim de exprimir-lhe amizade, mas deparou com Cláudio, de lenço ao rosto, tentando, debalde, sofrear o pranto que lhe escorria do queixo hirsuto.

4 A senhora Nogueira fez as honras.

Conquanto abalada, não somente ao consignar a decadência da pupila, mas igualmente ao testificar a inesperada sensibilização do marido, controlou-se o bastante para falar com desembaraço.

5 Doseou as verdades que ouvira do médico, respeitando o pesar do esposo, recapitulou a versão do acidente que ela mesma engenhara, para satisfazer aos amigos, e rogou desculpas pelo traumatismo com que Cláudio se apresentava. 6 Confessava-se também machucada, — observou, polidamente; — contudo, ao ver o marido subjugado pelo desgosto, não tivera outro recurso senão reabilitar a resistência própria, a fim de que não escasseasse comando à situação.

7 O esposo, em lágrimas copiosas, compreendeu que ela mentia para impressionar e que enfileirava frases bem-postas, no intuito de dar a entender que não arredava pé do hospital; no entanto, não lhe rebateu as afirmativas.

8 Limitava-se a chorar em silêncio. Em lugar da indignação a que se rendia, em outros tempos, quando a via fingir, penalizava-se agora. Imaginava-se na posição do viajor que houvesse espalhado farpas em todo o caminho, por onde seria fatalmente impelido a regressar…

9 Confirmando-lhe as impressões, Dona Márcia levantou-se e, contendo a repugnância que o cheiro desagradável do leito lhe causava, ajeitou os travesseiros da filha inanimada, derramou algumas palavras de carinho e, verificando que Nemésio se mantinha constrangido no ambiente que as exalações do processo renal tresandava, conclamou ao regresso.

10 Não seria lícito reter o senhor Torres por mais tempo, alegou. Quanto a ela, que Cláudio a esperasse. Voltaria mais tarde.

Despedidas e protestos de solidariedade surgiram à tona.

11 O irmão Félix, presente, seguira o encontro em todas as minúcias e ponderou que se eu volvera ao estabelecimento, em objeto de serviço, pela mesma razão me aconselhava o retorno ao lar de Nemésio, a fim de socorrer Marina, cujo problema obsessivo se agravava. 12 Conviria, porém, — acrescentou, — acompanhar ambos os visitantes, de maneira a estudar-lhes as reações, com fins de auxílio.

Aboletei-me no carro para a volta.


4. Torres, dominando-se, escolheu caminho mais longo, em marcha lenta.

2 A tortura de Nogueira suscitava-lhe falsas impressões. Cotejando-se com ele, qualificava-se por homem de rija têmpera que, dias antes, assistira à morte da própria companheira, sem quebrar-se, ao passo que o genitor de Marina se derretia ao pé de uma filha adotiva, cuja situação, naquela hora, pedia a tranquilidade do necrotério.

3 De vez em vez, deitava olhares furtivos para Dona Márcia, supondo compreendê-la melhor. A mãezinha daquela que pretendia desposar, perfeitamente comparável à filha em beleza e inteligência, não seria feliz junto daquele cavalheiro chorão.

4 O comerciante esperto retomara as características próprias. A pouco e pouco olvidou a menina acidentada e o bancário arrasado que classificava por maricão e passou a exaltar o encantamento do dia em curso, qual se aspirasse a despertar Dona Márcia para a convicção de que se achava no auto, sob o patrocínio de um companheiro compreensivo e vigoroso, capaz de assegurar-lhe a euforia. 5 Indagou se ela frequentava os passeios cariocas mais estimáveis. Referiu-se aos almoços suculentos das Paineiras, aos piqueniques da Pedra do Conde, aos banhos em Copacabana, à vista inigualável no Pico da Tijuca nos dias ensolarados, onde o binóculo parecia trazer a restinga de Marambaia para dentro dos olhos…

6 Dona Márcia conhecia todos os sítios mencionados, quanto a palma das mãos; contudo, fez-se de ingênua. Sabia, de experiência própria, que os homens da casta de Nemésio preferem as mulheres frágeis e acanhadas, que se voltem para eles com a bisonhice das criaturas necessitadas de proteção. Declarou nada conhecer dos pontos guanabarinos mais frequentados, além do Pão de Açúcar, que visitara numa excursão, aliás muito rápida, junto das filhas ainda pequeninas. 7 Afetando-se novata, em matéria de experiências romanescas, informou que se casara muito nova e que, desde então, a existência lhe fora um suplício entre escovões e panelas, com a obrigação de tolerar um marido resmelengo, segundo ele próprio, Nemésio, pudera verificar. Que lhe avaliasse o martírio de mulher acorrentada a um matrimônio infeliz pela mostra de Cláudio choramingas, a recebê-los sem uma palavra de cordialidade e de apreço.

8 Torres gostou das definições. Riu-se. Falou em psicoses. Reportou-se a neurologistas distintos.

Dona Márcia debuxou um sorriso malicioso, fitou-o demoradamente, e disse que era muito tarde para tratamentos, que havia muito tempo vivia separada do esposo, embora continuassem sob o mesmo teto.

Acostumara-se a sofrer, declarava suspirando.

9 Nemésio entendeu a insistência daqueles olhares e experimentou recôndita satisfação ao averiguar-se requestado.

A presença da futura sogra não lhe desagradava. Não fosse Marina, — pensou, — e não hesitaria atraí-la a convívio mais íntimo. A manhã toda, na companhia daquela mulher que reputava formosa e inteligente, constituíra-lhe um tônico. Esquecera-se, distraíra-se. Mesmo assim, não julgou conveniente precipitar-se. Puxou o relógio e, verificando que faltavam apenas cinco minutos para meio-dia, convidou-a para o almoço. Conhecia excelente restaurante no Catete.

10 A senhora Nogueira aceitou. E a refeição transcorreu alegre.

Esforçava-se a convidada em pressentir as escolhas do anfitrião, de modo a compartir-lhe os pratos prediletos. Sóbria, acomodou-se à água mineral e, no cardápio, comeu pouco. Em compensação, pensou muito e falou o possível, no intuito de cativar o companheiro. 11 Em dado momento, refletiu nos riscos a que Marina se expunha e, abemolando a voz, provocou a deixa. Prevendo a despedida próxima, asseverou não desejar o encerramento daquele encontro feliz sem agradecer-lhe o devotamento à filha. Além disso, rogava-lhe permissão para assinalar que a moça era demasiado jovem, que temia pela inexperiência dela…

12 Torres, lisonjeado, reiterou a confiança na escolhida, não sem um gesto significativo para a interlocutora, como a dizer-lhe que, embora lhe aguardasse a filha, no lar, não queria que a sogra lhe olvidasse a dedicação de amigo certo. 13 A esposa de Cláudio apanhou a sugestão no ar e asseverou, de modo galante, que, na qualidade de mãe abnegada, anelava para a filha a felicidade que o mundo não lhe pudera conceder.

14 Entre ambos, o contrato afetivo não apresentava qualquer dúvida, apesar de todos os itens do acordo se evidenciarem por entrelinhas e alusões, suspiros e reticências.


5. Quando o genitor de Gilberto disse adeus, no Flamengo, retomou o volante admitindo-se visitado mentalmente pela imagem da senhora Nogueira. 2 Fugindo-lhe à influência, opunha-lhe a figura da filha. À face disso, entrou em casa, decidido a encontrar-se com Marina, de pronto.

3 Recolhido ao quarto particular, tomou o pijama, calçou os chinelos silenciosos e, absorto, andou, de manso, na direção do compartimento, em que pretendia surpreendê-la, comunicar-lhe impressões e, sobretudo, dissipar os pensamentos intrometidos que Dona Márcia lhe suscitara.

4 Empalmou, de leve, a maçaneta e abriu a porta, sem ruído; no entanto, fez força para não cair, garroteado de assombro. Gilberto e a moça beijavam-se em amplexo apaixonado, efusivo. De costas para a entrada, o filho não lhe assinalou a presença; todavia, Marina, a situar-se de frente, cruzou o olhar com o dele, viu-lhe o rosto crispar-se, esverdinhado, e desmaiou.

5 A cena foi rápida.

Retirou-se Nemésio, à maneira de um cão espancado, arrastando-se em terrível asfixia. Dificilmente, ganhou o quarto e precipitou-se no leito, a sentir-se arrasado de sofrimento.

6 Ponderações contraditórias vararam-lhe o crânio. Como deslindar o enigma doloroso? Teria Gilberto abusado da menina enfraquecida ou dividia-se a jovem pelos dois? Intentou erguer-se, mas, como se houvesse recebido uma pedrada por dentro do coração, doía-lhe o peito, suava frio, sufocava-se.

7 Decorrido um quarto de hora, Gilberto, insciente do vulcão de lágrimas que o pai se empenhava a esconder, veio participar-lhe que Marina piorara, depois de ligeiro delíquio. Voltara da síncope, francamente possessa. Gritava, chorava, mordia-se, feria a si mesma…

8 Nemésio, porém, pousou nele os olhos magoados e pediu-lhe comandar as medidas necessárias. Chamasse o médico, telefonasse para o Flamengo e insistisse com a genitora para vir, e explicou, não sem esforço, que ele também tornara da rua, incompreensivelmente abatido…

9 Aplicando-me a socorrer Marina, reconheci a obsessão instalada. Os vampirizadores que Moreira trouxera, coadjuvados por outros, haviam dominado, de todo, a jovem desprevenida. O choque experimentado esbarrondara-lhe as últimas resistências. Marina, sob o jugo dos malfeitores desencarnados, jazia hipnotizada, vencida…

10 Em breve tempo, Dona Márcia, em pessoa, renteava com a filha, que a recebeu, dementada, irreconhecível.

O médico optou pela hospitalização imediata, que Nemésio declarou patrocinar com a impassibilidade de quem cumpre um dever. 11 Dona Márcia, por desencargo de consciência, entendeu-se com Cláudio pelo fio, suavizando a notícia. Inteirava-o de que a filha se extenuara em trabalho excessivo, arrojara-se a grande fadiga mental e o facultativo indicava ligeira estação curativa, numa clínica de repouso. Ela, com a responsabilidade de mãe, não opunha qualquer embargo; entretanto, não lhe seria lícito deixar de ouvi-lo, aguardava-lhe a opinião.

12 Nogueira não contraditou e Dona Márcia deu-se pressa em confiar Marina a estabelecimento psiquiátrico de nomeada, cujos portais a menina transpôs, inspirando cuidado e compaixão.

13 Regressando à bela vivenda, depois de dois dias, encontramos Gilberto atarantado e infeliz; contudo, mais dedicado à moça que antes. 14 Nemésio, porém, ruminava a antiga concepção do amor como sendo chinelo no pé e, apenas decorridas quarenta e oito horas sobre o acontecimento, já permutava confidências com a senhora Nogueira, em torno dos fatos novos, e ambos, na maior intimidade, já haviam encontrado motivos para desculpar aquilo a que chamavam “loucuras da mocidade”, cultivando consolações um no outro.


André Luiz


Texto extraído da 1ª edição desse livro.

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