O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

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Pontos e contos — Irmão X


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A besta do rei

1 À frente da assembleia fraternal que examinava a posição difícil dos médiuns com graves responsabilidades, o velhinho amigo estampou singulares característicos fisionômicos e narrou:

— Sem qualquer propósito de plagiar o nosso prestimoso Esopo, já ouvi contar a história de uma besta de carga, que pode ilustrar os nossos comentários de modo significativo.

2 Certo rei da Mesopotâmia necessitava transportar enorme tesouro de uma cidade para outra, a benefício dos próprios súditos. Vastíssima zona do Reino precisava renovar os sistemas de trabalho e melhorar os processos evolutivos; entretanto, para esse fim, não dispensava recursos substanciais. Vocês sabem que, na Terra, toda prosperidade requisita apoio físico, tanto quanto a luz de uma candeia reclama combustível. 3 Ora, naquele tempo, os homens não dispunham das facilidades de transporte. Os filósofos ensinavam a verdade e os poetas já sublimavam a poesia; contudo, a inteligência do mundo estava muito longe da locomotiva e do avião… 4 O soberano, assim, atado às injunções da época, determinou fosse procurada uma besta elogiável para o serviço. Depois de várias pesquisas, surgiu o animal nas condições desejadas. 5 O muar escolhido podia conservar as manhas inerentes à espécie, mas devia ser calmo, zurrar apenas em horas de perigo e corcovear o menos possível.

6 A jornada seria laboriosa.
Dias e noites de marcha forçada, com intensivo aproveitamento das horas. Aprazada a partida, a besta, em sua ingenuidade de serviçal, prazerosamente recebeu arreamento brilhante.

7 Deixou o palácio, sob aclamações festivas.
Precedida de carruagens e batedores e seguida de infantes armados, era ladeada de fidalgos e escrivães, guardas e mordomos, artesãos e ourives, lanceiros e escudeiros, congregados em rumoroso séquito para acompanhá-la.

8 A expedição, realmente, era das mais proveitosas.
Os benefícios seriam incalculáveis.

9 Isso, porém, não exonerava a besta do cansaço natural. As caixas repletas de metal precioso que sustentava, se provocavam geral admiração, eram para ela peso incômodo e incessante.

10 Em razão disso, a viagem que começou alegremente transformou-se, pouco a pouco, em peregrinação dolorosa.

11 Enquanto outros muares podiam comer os legumes frescos de que vinham carregados para alimento da expedição, a besta honrada e desditosa gemia sob a carga de ouro maciço.

12 O soberano, se era compreendido por grande parte dos súditos, possuía também vassalos infiéis que por incapacidade de entendimento lhe solapavam a autoridade. Por essa razão, o animal sofredor era objeto de invectivas e achincalhes por parte dos adversários do Rei.

13 Suarenta e exausta, a infeliz namorava o espelho do Eufrates, sequiosa de uns goles de água pura; todavia, era obrigada a ver, com absoluta impossibilidade de satisfazer à sede que a torturava, seus irmãos de rebanho a se refestelarem rio a dentro.

14 De quando em quando, tangida pelas necessidades naturais, dirigia-se às margens do caminho, para lamber alguma gota de água barrenta ou tosar algum broto de capim verde; no entanto, não conseguia grande coisa. A comissão encarregada do tesouro chibatava-a para que tornasse ao meio-fio. Azeméis desapiedados feriam-na com aguilhões, toda vez que tentava cheirar outro animal, de modo a sentir-se menos sozinha, porque, no fundo, era uma besta como as outras.

15 Nas aldeias por onde passava, cheia de feridas e desapontamentos, súditos reconhecidos traziam-lhe forragem especial e preciosa que a infortunada não conseguia tragar, saudosa da natureza livre. Senhoras leais ao soberano enfeitavam-na com adornos simbólicos. Cavalheiros respeitáveis, amigos incondicionais do monarca, exaltavam as virtudes do solípede, pronunciando extensos discursos, junto de suas orelhas trêmulas.

16 O animal, guindado a situação de tal brilho, era, porém, descendente de sua espécie e não podia trair as leis evolutivas, não obstante o favor real.

17 Por semelhante motivo, amarguravam-lhe, não só as considerações e honrarias indébitas, como também as disputas sem-fim, que se levantavam, cada dia, em torno de suas patas inseguras.

18 Se varava as portas de alguma cidade, sua passagem causava distúrbios.

19 Cortesãos generosos intervinham, discutidores. Exigiam alguns que a besta tomasse a direção norte, outros solicitavam a direção sul. Matronas entusiastas pediam graças especiais para o animal e reclamavam modificações. Populares exaltados abeiravam-se das caixas preciosas, buscando contemplar, à força, as barras de ouro puro. 20 Vítima da curiosidade e do atrevimento, a besta era compelida a tolerar pontapés e golpes incessantes. Se procurava refúgio, ao lado dos artesãos, faminta de socorro, os ourives protestavam, acreditando que o muar desejava fugir. Se tentava acolhimento junto dos ourives, para defender-se de alguma sorte, os artesãos provocavam reação rumorosa, fustigando-a a pontaços.

21 De quilômetro a quilômetro, o serviço tornava-se mais asfixiante… De vilarejo a vilarejo, a perturbação aumentava sempre.

22 A besta não conseguia aliviar-se. Devia transportar o tesouro e não podia comer, repousar ou banhar-se.

23 O narrador, inteligente e bondoso, sorriu, fez longa pausa e concluiu:

— O serviço foi realizado. Finda a jornada de sacrifício, a besta foi desarreada. 24 A riqueza beneficiou a todos. Houve alegria geral no espírito coletivo. Mais possibilidades de trabalho, mais ânimo entre o povo. 25 A besta, contudo, não era o mesmo animal do início. Trazia o corpo coberto de chagas sanguinolentas. Não sabia trotear quanto os outros muares. 26 A forragem rica ou o capim verde não mais a interessavam. Ignorava o caminho da estrebaria. Afligia-se e assustava-se, tanto na cavalariça, como na pastagem refrescante. Orneava a esmo ou corria de um lado para outro, sem que ninguém a entendesse. 27 Aos servidores do rei, felizes com as novas possibilidades, pouco importava o destino de tão extravagante animal. Alguns companheiros da expedição, mais “caridosos” e práticos, julgaram que o muar houvesse enlouquecido e resolveram, como solução única, enviá-lo ao matadouro.

28 Antes, porém, o soberano, que era piedoso e justo, mandou buscá-lo para as cocheiras de sua casa, não se sabe como, e ninguém mais o viu.

29 A essa altura da narrativa, o velhinho fez uma pausa, e, endereçando a nós outros o seu olhar percuciente e límpido, perguntou:

— Vocês não acham o médium de responsabilidade, em nossos dias, muito semelhante à besta do rei?

30 Sorrimos todos, entreolhando-nos surpresos, mas a curiosa interrogação ficou no ar…


Irmão X

(Humberto de Campos)

Texto extraído da 1ª edição desse livro.

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