O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

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Obreiros da Vida Eterna — André Luiz


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Prestando assistência

(Sumário)

1. Meus companheiros de missão pareciam menos interessados em seguir o caso Dimas, durante a noite, inclusive Jerônimo, reservando-se para a continuidade do esforço no dia imediato, quando nos caberia transportá-lo até ao abençoado abrigo de Fabiano.

2 Não se verificava o mesmo quanto a mim.

Desembaraçando-me dos laços físicos, noutro tempo, não conseguira efetuar observações educativas para o meu acervo de conhecimentos. 3 O choque sensorial no transe, para a minha personalidade ainda desatenta ante as questões do Espírito eterno, impedira-me a análise minuciosa do assunto. Agora, porém, a oportunidade poderia fazer mais luz em minhalma, quanto à posição dos recém-desencarnados, antes da inumação do envoltório grosseiro.

4 Expondo ao Assistente o meu propósito de aprender, recebi dele a mais ampla permissão. Poderia visitar a residência de Dimas, à vontade, lá permanecendo durante as horas que desejasse.

5 A aquiescência de Jerônimo enchia-me de prazer. Não só pela ocasião de enriquecer-me na esfera prática, mas também porque o fato, em si, era bastante expressivo. Pela primeira vez, um companheiro de trabalho, com autoridade suficiente, concordava com o meu desejo de humílimo operário. O consentimento, portanto, representava preciosa conquista. Constituía a liberdade instrutiva, com a responsabilidade de minha consciência e a confiança de meus superiores hierárquicos.

6 Deixando a Casa Transitória, em plena noite, vi-me, em breve, no ambiente doméstico onde o amigo se desfizera dos elos da matéria mais espessa.

7 Entrei. A casa enchia-se de amigos e simpatizantes, encarnados e desencarnados. Não se articulavam quaisquer serviços de defesa. Notei que havia trânsito livre pelos grupos de variadas procedências.

8 Em recuado recanto, ainda ligado às vísceras inertes pelo cordão fluídico-prateado, permanecia Dimas no regaço da genitora, ao pé de dois amigos que, cuidadosos, o assistiam.

9 A nobre matrona reconheceu-me, comovida, apresentando-me aos companheiros presentes.

Um deles, Fabriciano, acolheu-me, prestativo, interessando-se pelos informes atinentes ao desenlace. Relatei-lhe os trabalhos, pormenorizadamente. 10 Em seguida, o interlocutor passou a explicar-se:

— Sempre tive por Dimas sincera admiração, pelo proveitoso concurso que soube oferecer-nos. Integro a comissão espiritual de serviço que vem atendendo aos necessitados, por intermédio dele, nos últimos seis anos. Foi sempre assíduo nas obrigações, bom companheiro, leal irmão.

11 Surpreso com as referências, indaguei:

— Há, desse modo, comissões de colaboração permanente para os médiuns em geral?

— Não me reporto à generalidade, — redarguiu o interlocutor, — porque a mediunidade é título de serviço como qualquer outro. 12 E há pessoas que pugnam pela obtenção dos títulos, mas desestimam as obrigações que lhes correspondem. Gostariam, por certo, do intercâmbio com o nosso Plano, mas, não cogitam de finalidades e responsabilidades. Em vista disso não se estabelecem conjuntos de cooperação para os médiuns em geral, mas apenas para aqueles que estejam dispostos ao trabalho ativo. 13 Há muitos aprendizes que não ultrapassam a fronteira da tentativa, da observação. Desejariam o caminho bem aplainado, exigindo a convivência exclusiva dos Espíritos genuinamente bondosos. Experimentam a luta construtiva, através de sondagens superficiais e, à primeira dificuldade, abandonam compromissos assumidos. 14 A aquisição da fortaleza moral não prescinde das provas arriscadas e angustiosas. Entretanto, em face das exigências naturais do aprendizado, dizem-se feridos na dignidade pessoal. Não suportam a aproximação de infelizes encarnados ou desencarnados, estacionando à menor picada de dor. 15 Para semelhantes experimentadores, seria extremamente difícil a formação de equipes eficientes, representativas de nosso Plano. Não se sabe quando estão dispostos a servir. Se recebem faculdades intuitivas, pedem a incorporação; se contam com a vidência, querem a possibilidade de exteriorizar fluidos vitais para os fenômenos de materialização.

16 Escutei as observações sensatas do novo amigo e, registando-lhe a nobreza dalma, passei a considerações íntimas em torno da tarefa que nos levara até ali.


2. Porque se formara expedição destinada a socorro de servidor que dispunha de amigos de tamanha competência moral? 2 Fabriciano demonstrava conhecimentos elevados e condição superior. O obsequioso amigo, porém, evidenciando extrema acuidade perceptiva, antes que eu fizesse qualquer pergunta inoportuna, acrescentou:

3 — Não obstante nossa amizade ao médium, não nos foi possível acompanhar-lhe o transe. Temos delegação de trabalho, mas, no assunto, entrou em jogo a autoridade de superiores nossos, que resolveram proporcionar-lhe repouso, o que não nos seria possível prodigalizar-lhe, caso viesse diretamente para a nossa companhia.

4 A palestra conduzia-se a interessantes ângulos do problema da morte. Seduzido pelas considerações, interroguei sobre o que já sabia, mais ou menos, a fim de poder penetrar particularidades mais significantes:

5 — Nem todas as desencarnações de pessoas dignas contam com o amparo de grupos socorristas?

— Nem todas, — confirmou o interlocutor, acentuando, — todos os fenômenos do decesso contam com o amparo da caridade afeta às organizações de assistência indiscriminada; no entanto, a missão especialista não pode ser concedida a quem não se distinguiu no esforço perseverante do bem.

6 — Todavia, — objetei, curioso, tangendo a corda que mais me interessava no assunto, — não há casos de criaturas, essencialmente bondosas, que se libertam dos laços físicos — mais ou menos entrosados em comissões de serviço espiritual de natureza superior — sem que haja missões salvacionistas, previamente designadas para socorrê-las?

7 Após breve pausa, acrescentei para fazer-me mais claro:

— Vamos que Dimas estivesse em ligação recente com a sua comissão de trabalho e desencarnasse sem o cuidado dum grupo socorrista: seria deixado à mercê das circunstâncias?

8 Riu-se Fabriciano, com franqueza, e retrucou: — Isso poderia acontecer. Temos precedentes. De maneira geral, ocorrem semelhantes casos com os trabalhadores aflitos por conseguir de qualquer modo a desencarnação, alegando necessidades de repouso. Muitas vezes, no fundo, são criaturas bondosas, mas menos lógicas e pouco inteligentes. 9 Na semana finda, por exemplo, observamos um caso dessa natureza. Respeitável senhora, jovem ainda, pelas disposições sadias que demonstrou no campo da benemerência social, foi ligada a dedicada corrente de serviço, organizada por amigos nossos. Verificando-se, contudo, pequenas rusgas entre ela e o esposo, e tendo conhecimento da imortalidade da vida, além do sepulcro, desejou a pobre criatura ardentemente morrer. Tolas leviandades do marido bastaram para que maldissesse o mundo e a Humanidade. Não soube quebrar a concha do personalismo inferior e colocar-se a caminho da vida maior. Pela cólera, pela intemperança mental, criou a ideia fixa de libertar-se do corpo de qualquer maneira, embora sem utilizar o suicídio direto. 10 Conhecia os amigos espirituais a que se havia unido, mas, longe de assimilar-lhes ajuizadamente os conselhos, repelia-lhes as advertências fraternas para aceitar tão somente as palavras de consolação que lhe eram agradáveis, dentre as admoestações salutares que lhe endereçavam. E tanto pediu a morte, insistindo por ela, entre a mágoa e a irritação persistentes, que veio a desencarnar em manifestação de icterícia complicada com simples surto gripal. 11 Tratava-se de verdadeiro suicídio inconsciente, mas a senhora, no fundo, era extraordinariamente caridosa e ingênua. Não se recebeu qualquer autorização para conceder-lhe descanso e muito menos auxílio especial. Os benfeitores de nossa Esfera, apesar de eficiente intercessão em benefício da infeliz, somente puderam afastá-la das vísceras cadavéricas, há dois dias, em condições impressionantes e tristes. 12 Não havendo qualquer determinação de assistência particularizada, por parte das autoridades superiores, e porque não seria aconselhável entregá-la ao sabor da própria sorte, em face das virtudes potenciais de que era portadora, o diretor da comissão de serviço, a que se filiara a imprevidente amiga, recolheu-a, por espírito de compaixão, em plena luta, e ela se foi, de roldão, a trabalhar por aí, ativamente, em condições muito mais sérias e complicadas.

13 A elucidação atingira-me, fundo.

Informara-me sobre o que desejava. A lei divina, de fato, perfeita em seus fundamentos, é igualmente harmoniosa em suas aplicações.

14 Fabriciano, estampando belo sorriso, aduziu:

— Não frutifica a paz legítima sem a semeadura necessária. Alguém, para gozar o descanso, precisa, antes de tudo, merecê-lo. As almas inquietas entregam-se facilmente ao desespero, gerando causas de sofrimento cruel.


3. Logo após, contemplando o recém-desencarnado, como a indicar que deveríamos centralizar todo o interesse da hora no bem-estar dele, considerou, acariciando-lhe a fronte:

2 — Nosso amigo repousa agora, terminada a tormenta das provas incessantes. Está enfraquecido, o pobrezinho. A sensibilidade, posta a serviço da obrigação bem cumprida, castigou-lhe a alma, até ao fim; todavia, plantou a fé, a serenidade, o otimismo e a alegria em milhares de corações, estabelecendo sólidas causas de felicidade futura. 3 Por enquanto, permanecerá na posição de ave frágil, incapaz de voar longe do ninho.

— Felizmente, — aventou a genitora, satisfeita, — vem melhorando de modo visível. Os resíduos que o ligam ao cadáver estão quase extintos.

4 Relanceou o olhar pelos ângulos da modesta residência e acrescentou:

— Se fosse possível receber maior cooperação dos amigos encarnados, ser-lhe-ia muito mais fácil o restabelecimento integral. No entanto, cada vez que os parentes se debruçam, em pranto, sobre os despojos, é chamado ao cadáver, com prejuízo para a restauração mais rápida.

5 — Lamentavelmente, porém, — tornou Fabriciano, — nossos irmãos encarnados não possuem a chave de reais conhecimentos para organizar ação adequada a esta hora.

— Em vista disso, — revidou a genitora, conformada, — insisto para que Dimas durma, embora o sono, que poderia ser calmo e doce, esteja povoado de pesadelos.

6 Diante da surpresa que me absorvia, o companheiro apressou-se a esclarecer-me:

— As imagens contidas nas evocações das palestras incidem sobre a mente do desencarnado, mantido em repouso depois de rápido mergulho na contemplação dos fatos alusivos à existência finda. Não somente as imagens. Por vezes, nossos amigos presentes, fecundos nas conversações sem proveito, exumem, com tamanho calor, a lembrança de certos fatos, que trazem até aqui alguns dos protagonistas já desencarnados.

7 As afirmações ouvidas incitaram-me a curiosidade. Fabriciano, entretanto, desejando prodigalizar-me experiência direta, aconselhou:

— Espere alguns minutos na sala contígua, onde os despojos recebem a visitação.

Obedeci.

8 O velório apresentava o aspecto usual. Flores perfumadas, semblantes sisudos e conversações discretas.

Ao pé do cadáver, propriamente considerado, os amigos sustentavam reserva e circunspecção. A poucos passos, todavia, davam-se asas ao anedotário vibrante, em torno do amigo em trânsito para o “outro mundo”. Pequenas e grandes ocorrências da vida do “morto” eram lembradas com graça e vivacidade.

9 Acerquei-me de roda compacta, em que se falava a respeito dele.

Certo rapaz dirigiu-se a cavalheiro muito idoso, perguntando:

— Coronel, recebeu a conta?

— Por enquanto, não, — respondeu o velhote interpelado, preparando fumo de rolo para cigarro à moda antiga, — mas não me preocupo pela demora. Dimas foi sempre bom camarada e os filhos não olvidarão o compromisso paterno. Questão de tempo…

10 Interessado em ressaltar as qualidades distintas do “falecido” e revelando suas boas disposições de historiador municipal, prosseguiu:

— Dimas era um homem interessante e excepcional. Sempre lhe invejei a serenidade. Em matéria de prudência, raras pessoas conheci semelhantes a ele. É verdade que nunca me dei a estudos espiritistas, mas confesso que, ao lhe observar a maneira de proceder, sempre desejei conhecer a doutrina que lhe formava o caráter.

Até aí, tudo muito bem. Embora a invocação dos débitos do “morto”, o credor apenas pronunciava palavras de estímulo e paz.

11 Todavia, no estado atual da educação humana é muito difícil alimentar, por mais de cinco minutos, conversação digna e cristalina, numa assembleia superior a três criaturas encarnadas.

O comentarista modificou o diapasão de voz, olhou na direção do cadáver e observou, em tom confidencial:

— Poucos homens foram de boca segura como este. Conheci Dimas, faz muitos anos, e estou certo de que foi testemunha ocular de pavoroso crime, que nunca se desvendou para os juízes da Terra.

12 Após ligeira pausa, acendeu o cigarro e perguntou, reaguçando a curiosidade dos ouvintes:

— Nunca souberam?

Os presentes mostraram silenciosa negativa.

— Vai para trinta anos, — continuou o narrador, — Dimas residia ao lado de nobre família, que guardava consigo valiosos patrimônios da coletividade, relativamente à orientação pública. Desse agrupamento doméstico, superiormente conceituado na apreciação geral, emanavam ordens e benefícios da mais elevada expressão para o bem-estar de todos. 13 Como não ignoram, há três decênios a vida no interior ainda conservava expressiva herança do Brasil imperial. A economia centralizada mantinha a “casa grande” simbólica, onde se traçavam roteiros para o serviço popular. Situado na vizinhança de residência feudal como essa, nosso amigo levava existência humilde de trabalhador, organizando o futuro de homem de bem.

14 O cavalheiro, insciente dos problemas do espírito, enunciou nomes, relacionou datas e lembrou brejeiramente certos pormenores, prosseguindo com maliciosa jocosidade:

— Certa noite, pela madrugada, conhecido chefe político saía do palacete residencial pelos fundos, acompanhado de uma senhora que aparentava excessiva despreocupação consigo mesma, ao despedir-se com intempestiva manifestação de afeto. 15 Terminado o estranho adeus e, vendo-se sozinho, o “Dom Juan” deu alguns passos para a retirada, espiou, cauteloso, em torno, e ia continuar a marcha, quando reparou que alguém lhe observara a intimidade com a esposa de respeitável amigo. Era modestíssimo operário, que talvez estivesse ali por força de circunstâncias inapreciáveis. O político alcançou-o, dum salto. Homem de compleição robusta e paixões violentas, aproximou-se do espectador inesperado e interpelou-o, brutalmente, ao que o mísero respondeu, humilde:

— Doutor, — não estou espreitando, juro-lhe!

— Pois morrerá, de qualquer modo, — adiantou o atlético agressor, em voz sumida de cólera.

16 Agarrou-o pelo paletó e acentuou, de dentes cerrados:

— Vermes que perturbam, devem morrer.

— Não me mate, doutor! Não me mate! Rogou o infeliz, — tenho mulher e filhos! Saberei respeitá-lo!…

Não valeu à vítima dobrar-se de joelhos, na súplica, porque o homem terrível, cego de fúria, tomou a arma e desfechou-lhe certeiro tiro no coração, afastando-se precípite.

17 Dimas, tendo observado os fatos a curta distância, gritou, fazendo-se ouvir pelo assassino, que o reconheceu pelas exclamações, e correu no sentido de amparar o ferido, mas, em verdade, a vítima nem chegou a gemer. Avançando para o assassinado, quando outras pessoas, em roupas brancas, acorriam igualmente à pressa, por verificar o ocor- rido, manteve-se a cavaleiro de qualquer atitude suspeitosa; no entanto, chamado a esclarecimento pelas autoridades, ele, que tudo sabia, nada revelou. 18 Protegeu o morto nos funerais, dispensou-lhe extremos cuidados, extensivos à família, portou-se como cristão fiel, esquivando-se, contudo, ao fornecimento de quaisquer indícios para que o criminoso fosse capturado, alegando desconhecer qualquer minúcia dos fatos que deram motivo ao acontecimento. E o caso policial foi encerrado, na suposição de latrocínio. A única testemunha, que era ele, considerava preferível o silêncio ao escândalo que traria enormes dissidências domésticas e sociais.

19 O narrador fixava os despojos e acentuava:

— Boca segura! Não conheci homem mais discreto…

Certo ouvinte indagou, brejeiro:

— Mas, coronel, como veio a saber das particularidades, se Dimas não chegou a denunciar?

20 O interpelado fez um gesto de franca satisfação e acrescentou:

— Vantagem da boa amizade com os sacerdotes. Meu velho amigo, o padre F…, que Deus guarde, contou-me o fato, sumamente impressionado. Ouviu o assassino, em confissão, antes da morte dele e obteve todos os pormenores da obscura ocorrência. 21 O homicida, cuidadoso na exposição das faltas, não se esqueceu de nomear Dimas ao vigário, como exclusiva testemunha do pecado mortal cometido. O padre, contudo, excelente amigo, cheio de experiência do mundo, não trouxe o caso a público. As pessoas envolvidas no drama deixaram descendência distinta e seria crueldade rememorar acontecimento tão triste.

22 O narrador estampou curiosa expressão no rosto e rematou, apagando o cigarro:

— Tudo passa… Morreram a vítima, a adúltera, o assassino, o confessor e, agora, a testemunha. Certo, haverá lugar, fora deste mundo, para fazer-se a justiça.

23 Nesse momento, horrível figura, seguida de outras, não menos monstruosas, surgiu de inesperado. Acercando-se do leviano comentador, ouviu-lhe, ainda, as últimas palavras, sacudiu-o e gritou:

— Sou eu o assassino! Que quer você de mim? Porque me chama? É juiz?!

O narrador não enxergara o que eu via, mas seu corpo foi atingido por involuntário estremeção, que arrancou abafado riso dos presentes.

24 Logo após, o homicida desencarnado, atraído talvez pelo cheiro forte das flores reunidas na eça improvisada, teve a perfeita noção do velório. Abalou-se, precipitado, pondo-se na contemplação do morto.

Reconheceu-o, estampou um gesto de profunda surpresa, ajoelhou-se e gritou:

— Dimas, Dimas, pois também tu vens para a verdade?! Onde estás, bom amigo, que me velaste a falta com o véu da caridade sem limites? Socorre-me! Estou desesperado! Onde encontrarei minha vítima para suplicar o perdão de que necessito? Ajuda-me, ainda! Tem compaixão! Deves saber o que ignoro! Socorre-me, socorre-me!…

25 Ao lado do infeliz, em rogativa, diversas entidades sofredoras permaneciam extáticas.

Mas Fabriciano surgiu inesperadamente e ordenou aos invasores afastamento imediato.

Limpa a câmara, o novo amigo dirigiu-se a mim, observando:

— Garanto que este grupo entrou nesta casa por invocação direta.

26 Narrei-lhe, impressionado, o que vira.

Ouviu-me calmamente e ponderou:

— A observação, feita por nós mesmos, é sempre mais valiosa. Dimas, não obstante dedicado à causa do bem e compelido a grande esforço de cooperação na obra coletiva, descuidou-se de incentivar a prática metódica da oração em família, no santuário doméstico. Por isso tem defesas pessoais, mas a residência conserva-se à mercê da visitação de qualquer classe.

27 A elucidação era significativa. Comecei a compreender a razão do sentimentalismo prejudicial da família inconformada. Desejando, porém, fixar o aprendizado da noite sobre assunto atinente à desencarnação, perguntei:

— Nosso amigo recém-liberto terá ouvido a súplica do irmão desventurado?

— Geme sob terrível pesadelo, nos braços maternos, — explicou Fabriciano, solícito, — ao recordar o fato relatado. 28 Desde alguns minutos acompanhamos a agitação dele, reparando que recebia choques desagradáveis, através do cordão final.

— Ouvindo e vendo os quadros invocados? Insisti, perguntando.

— Não chegou a ver, nem a ouvir, integralmente, em face da perturbação espontânea, mas vislumbrou, sentiu, oprimiu-se e torturou-se, prejudicando a reconquista de si mesmo. As forças mentais estão revestidas de maravilhoso poder.

29 Indicando os grupos que continuavam conversando, acentuou, sem aspereza:

— Nossos amigos da Esfera carnal são ainda muito ignorantes para o trato com a morte. Ao invés de trazerem pensamentos amigos e reconfortadores, preces de auxílio e vibrações fraternais, atiram aos recém-desencarnados as pedras e os espinhos que deixaram nas estradas percorridas. É por isso que, por enquanto, os mortos que entregam despojos aos solitários necrotérios da indigência são muito mais felizes.

30 Ainda não havia terminado, de todo, as considerações, quando a esposa de Dimas, num acesso de pranto, levantou-se do leito em que repousava e adiantou-se para o cadáver, repetindo-lhe o nome, comovedoramente:

— Dimas! Dimas! Como ficarei?! Estaremos separados, então, para sempre?…

31 Como Fabriciano se dirigisse apressado para o quarto humilde em que permanecia o desencarnado, acompanhei-o. A genitora do médium fazia esforços para contê-lo, mas debalde. Pelo fio prateado, estabelecera-se vigoroso contato entre ele e a companheira, porque Dimas se ergueu, cambaleante, apesar do carinho materno. 32 Estava lívido, semilouco. Avançou para a sala mortuária, rogando paz, mas antes que pudesse aproximar-se muito dos despojos, Fabriciano aplicou energias de prostração na esposa imprudente, que foi novamente conduzida ao leito, agora sem sentidos, enquanto Dimas voltava ao regaço maternal, menos aflito.

33 O amigo esclareceu-me, sereno:

— Há situações em que o drástico deve ser medida inicial. Nosso irmão muito fez pela harmonia dos outros, durante a existência, e merece libertação pacífica. Sinto-me, pois, no dever de garanti-lo para que se desembarace dos últimos resíduos que ainda o inclinam à matéria densa.

34 Outros amigos e afeiçoados do médium chegaram ao ambiente doméstico, interessados em ajudá-lo e, como a noite ia muito alta, despedi-me dos companheiros, pondo-me de regresso ao acolhedor asilo de Fabiano.

35 No outro dia, ao me avistar, disse-me o Assistente Jerônimo, após a saudação inicial:

— Espero, André, que o velório lhe tenha trazido úteis e instrutivos ensinamentos.

36 Sim, o estimado Assistente falava com muita propriedade e razão. Eu aprendera muito, durante a noite. Aprendera que as câmaras mortuárias não devem ser pontos de referência à vida social, mas recintos consagrados à oração e ao silêncio.


André Luiz


Texto extraído da 1ª edição desse livro.

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