O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

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O Espírito da Verdade — Autores diversos — F. C. Xavier / Waldo Vieira


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A tomada elétrica

Cap. VIII — Item 7.


1 De volta à reencarnação, em breve tempo, sou trazido ao vosso recinto de oração e fraternidade por benfeitores e amigos para que algo vos fale de minha história — amargo escarmento aos levianos do ouvido e aos imprudentes da língua.

2 Sem ornato verbal de qualquer natureza, em minha confissão dolorosa, passo diretamente ao meu caso triste, à maneira de um louco que retorna ao juízo, depois de haver naufragado na vileza de um pântano.

3 Há alguns anos, em minha derradeira romagem na Terra, era eu simples comerciário de hábitos simples.

4 Com pouco mais de trinta anos, desposei Marina, muito mais jovem que eu, e, exaltando a nossa felicidade, construímos nosso paraíso doméstico, numa casa pequena de movimentado bairro do Rio.

5 Nossa vida modesta era um cântico de ventura, entretecido de esperanças e preces; todavia, porque fosse, de ordinário, desconfiado e inquieto, amava minha esposa com doentia paixão.

6 Marina era muito moça, quase menina… Estimava as cores festivas, o cinema, a vida social, a gargalhada franca e, por guardar temperamento infantil, a curto espaço teve o nome enliçado à maledicência que fustiga a felicidade, como a sombra persegue a luz.

7 Em torno de nós, fez-se o “disse-me-disse”.

8 Se tomávamos um bonde, éramos logo objeto de olhares assustadiços, enquanto se cochichava, lembrando-se-nos o nome…

9 Se passávamos numa praça, éramos, quase sempre, seguidos de assovios discretos…

10 Começaram para mim os recados escusos, os telefonemas inesperados, as cartas anônimas e os conselhos de família, reunindo várias acusações.

— “Marina desertara dos compromissos do lar.”

— “Marina era ingrata e infiel.”

— “Marina respirava numa poça de lama.”

— “Marina tornara-se irregular.”

11 Muita vez, minha própria mãe, zelosa de nosso nome, chamava-me a brios, indicando-me providências.

12 Amigos segredavam-me anedotas irreverentes com sentido indireto.

13 Lutas enormes do sentimento ditavam-me desesperados conflitos. Acabou-se em casa a alegria espontânea.

14 Debalde, a companheira se inocentava, alertando-me o coração; entretanto, densas trevas possuíam-me o raciocínio, induzindo-me a criar assombrosos quadros em torno de faltas inexistentes.

15 Como se eu fora puro, exigia pureza em minha mulher. Qual se fosse santo, reclamava-lhe santidade. Deplorável cegueira humana!

16 Foi assim que, numa tarde inesquecível para o remorso que me vergasta, tilintou o telefone, buscando-me para aviso.

17 Três horas da tarde…

Anuncia-me alguém ao cérebro atormentado que um estranho se achava em meu aposento íntimo.

18 Desvairado, tomei de um revólver e busquei minha casa.

19 Sem barulho, penetrei nossa câmara e, de olhos embaciados no desespero, vi Marina curvada, ao lado de um homem que se curvava igualmente a dois passos de nosso leito.

20 Não tive dúvida e alvejei-os, agoniado… Vi-lhes o sangue a misturar-se, enquanto me deitavam olhares de imensa angústia, e, porque não pudesse, eu mesmo, resistir a tamanha desdita, estilhacei meu crânio, com bala certa, caindo, logo após, para acordar no túmulo, agarrado a meu corpo, mazelento e fedentinoso, que servia de engorda a vermes famintos.

21 Em vão, busquei desvencilhar-me do arcabouço de lama, a emparedar-me na sombra. Gargalhadas irônicas de Espíritos infelizes cercavam-me a prisão.

22 Descrever minha pena é tarefa impossível no vocabulário dos homens, porque o verbo dos homens não tem bastante força para pintar o inferno que brame dentro da alma.

23 Por muito tempo, amarguei meu cálice de aflição e pavor, até que mãos amigas me afastaram, por fim, do cárcere de lodo.

24 Vim, então, a saber que Marina, sem culpa, fora sacrificada em minhas mãos de louco.

25 Esposa abnegada e inocente que era, simplesmente pedira a um companheiro da vizinhança consertasse, em nosso quarto humilde, a tomada elétrica desajustada, a fim de passar a roupa que me era precisa para o dia seguinte.

26 Transido de vergonha e enojado de mim, antes de suplicar perdão às minhas pobres vítimas, implorei, humilhado, a prova que me espera…

27 E é assim que, falando às almas descuidadas que cultivam na Terra o vício da calúnia, venho dizer a todas, na condição de um réu, que para me curar da própria insensatez roguei ao Pai Celeste e me foi concedida a bênção de meio século de doença e martírio, luta e flagelação na dor de um corpo cego.


Júlio


Texto extraído da 1ª edição desse livro.

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