O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

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Lázaro redivivo — Irmão X


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Por amor a Deus

1 Diz antigo rifão que “mortalha não tem bolso”. A filosofia popular quer dizer que para os mortos terminaram todos os interesses. A maioria dos homens observa na morte o ponto final da vida. Nessa conceituação do transe derradeiro do corpo físico, os sentimentos mais belos que exornam a personalidade desaparecem com o cadáver, no banquete dos vermes.

2 Comumente, as criaturas temem a grande transformação. No leito dos moribundos, verifica-se o duelo cruel, em que a morte é sempre o adversário vitorioso. Não prevalecem aí os regulamentos alusivos à idade dos contendores, não prepondera o parecer dos médicos, nem o ritual dos sacerdotes. 3 O inimigo invisível triunfa sempre, deixando às testemunhas amedrontadas os despojos do vencido, com passagem direta para o forno crematório ou para as estações subterrâneas, onde os ossos do morto repousarão, de acordo com as possibilidades financeiras da família. Há túmulos gloriosos, como os cenotáfios ilustres; e multiplicam-se, em toda parte, as sepulturas humildes, através das quais os filhos dos homens adubam incessantemente o solo, enriquecendo-o de húmus fecundante.

4 A alma do morto, porém, segue a sua trajetória. Impossível extinguir nela os sentimentos, as disposições interiores, as características, os afetos, que se espiritualizarão, vagarosamente, com o tempo e com o auxílio do Divino Poder. E porque as afinidades psíquicas são fatais como as leis biológicas, os desencarnados frequentemente gastam anos a desatar os laços que os prendem ao mundo, quando é preciso, de fato, desfaze-los, consoante os imperativos da evolução espiritual.

5 Muitos deles, dos que já atravessaram a corrente do Estige, desejariam a libertação imediata de todas as influências terrestres. Entretanto, a alma é a sede viva do sentimento e de modo algum poderiam trair o coração. Constrangidos a seguir os vivos pela amorosa atração que lhes vibra no ser, demoram algum tempo entre as sombras que se estendem do fundo vale da incerteza ao monte luminoso da decisão.

6 Existiu um jovem irlandês, de nome Cornélius Magrath, ( † ) que morreu aos vinte e dois anos, com a estatura de mais de dois metros e meio. Tendo despertado muito interesse da Ciência pelo seu caso de gigantismo, pediu aos amigos e pagou para que seu corpo fosse atirado ao mar, quando a morte lhe arrebatasse a vida. Todavia, mau grado ao seu desejo, a medicina da Inglaterra adquiriu-lhe o esqueleto, que foi conservado atenciosamente na Associação dos Cirurgiões de Londres, com objetivo de estudo.

7 Ocorre o mesmo com alguns mortos da Terra, que suplicam e pagam para que sua alma seja atirada ao oceano do esquecimento, de modo a se subtraírem à curiosidade dos vivos; mas a redenção exige o contrário e o Espírito semiliberto permanece, por tempo indeterminado, na vizinhança dos homens, atendendo, muitas vezes, a imposições estranhas à sua própria vontade.

8 No quadro de obrigações dessa natureza, temos um companheiro que recebeu a incumbência de demorar alguns anos entre as associações terrenas, para suportar as dolorosas trepanações dos que fazem a cirurgia dos estilos, com objetivo de esclarecimento geral. Sofria bastante, na submissão a esse processo de auxiliar a Ciência, porque nem todos os cirurgiões o examinavam com a precisa assepsia espiritual, mas obedecia, satisfeito, consciente de cooperar na solução de grandes problemas do destino e da morte. 9 No desenvolvimento de seus misteres, todavia, foi assaltado pelo incoercível desejo de revelar-se aos amigos de outro tempo, encasulados na carne, e, para tanto, começou a escrever-lhes páginas sentidas de carinho e saudade, vazando-as com o sentimento de seu coração. 10 Seus companheiros antigos, porém, não lhe compreenderam as novas disposições. Uniram-se aos intransigentes cirurgiões da literatura e exigiram que o desencarnado viesse atendê-los, tal qual vivera no mundo, cheio das enfermidades e idiossincrasias oriundas dos vários agentes físicos que lhe determinavam a organização psíquica defeituosa. 11 Sensível e afetuoso, ele lhes entregou os pensamentos mais nobres, porém os amigos reclamaram-lhe as vísceras mais grosseiras; trouxe-lhes as ideias novas que lhe banhavam o íntimo, entretanto, requisitaram-lhe as velhas fórmulas que, noutra época, lhe encarceravam o ser; dedicou-lhes a expressão mais alta de sua vida espiritual, mas pediram-lhe a revelação da vida mais baixa, com a apresentação das próprias glândulas doentes que a terra guardou para felicidade dele.

12 Algo preocupado, procurou o esclarecimento dos orientadores do serviço. Expôs o seu caso, comentou suas mágoas e apresentou suas razões.

13 Um deles, porém, o que chefiava o trabalho geral, pelo tesouro de amor e sabedoria que ajuntou no curso dos séculos, respondeu com serenidade:

— Cale em seu coração, meu filho, as angústias do homem antigo. Volte ao seu campo de ação e satisfaça a própria consciência. Todo particularismo é cárcere. Lembre-se de que as dádivas do Pai são comuns a todos nós, que as ideias não têm nome e de que o Espírito é universal.

14 Nem mais uma palavra. O companheiro sorriu, trocou o manto roto, calçou duas sandálias novas, voltou ao serviço e, como aconteceu ao jovem irlandês que prosseguiu exibindo os ossos, por interesse da Ciência, ele continuou a espalhar as sementes das ideias, por amor a Deus.


Irmão X

(Humberto de Campos)

Texto extraído da 1ª edição desse livro.

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