O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

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Luz acima — Irmão X


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Carta despretensiosa

1 Meu caro. Recebi seus apontamentos.

2 Sei que me não aceitará a resposta com o desejável entendimento. Se ainda me guarda na lembrança, não me tolera a sobrevivência.

3 Ler-me-á as palavras, longe daquele acolhimento afetivo da época em que me afundava num escafandro igual ao seu, sob o denso mar do oxigênio terrestre.

4 Receber-me-á o esforço de agora com extremo espírito crítico. Buscará saber, antes de mais nada, se empreguei os verbos acertadamente e se pontuei a missiva com a elegância necessária.

5 Provavelmente dirá que meus recursos empobreceram, que minha argumentação não convence. Vamos, contudo, às suas ponderações.

6 Afirma você que os Espíritos desencarnados, pelo noticiário que fornecem ao mundo, se movimentam num Plano absolutamente irreal. A seu ver, moramos em casas ilusórias, cuidamos de instituições que não existem, colhemos flores e frutos de mentira e pairamos, como sombras, num campo de fantasia. E acrescenta que, para ajuizar de nossa situação, toma por base o mundo em que pisa. 7 Na apreciação que lhe orienta os conceitos, a Esfera em que você ainda respira é a mais sólida de toda a estruturação universal. Coisa alguma sofre modificação ao redor de seus passos, segundo a posição especialíssima em que se coloca.

8 Se me demorasse por aí, talvez experimentasse amnésia idêntica. Basta dizer-lhe que enquanto carreguei o fardo benéfico da carne era eu perfeito desmemoriado em relação aos meus próprios defeitos. E, quanto às minhas necessidades essenciais, nunca atentei para o tempo que corria, célere, em torno de mim.

9 Quando os amigos me atiraram terra e cal ao corpo inerme, foi que meditei na transitoriedade das situações e das coisas. Reportei-me então à infância distanciada e revi nossa aldeia do Norte, perseguida pela areia invasora. Casario e arvoredo converteram-se, pouco a pouco, num montão de ruínas. Companheiros de jogos infantis desapareceram. Alguns haviam partido à procura de cidades fascinantes, outros jaziam submersos na neblina da sepultura. 10 Reajustou-se-me a memória, gradativamente, e tornei, pelos olhos da imaginação, à casa que me viu nascer. A morte brandira, ali, sua foice enorme, a torto e a direito. A doença lavrara por lá, copiando o fogo em pastagem alcantilada. Transformações não tinham conta. O padeiro falecera de uma noite para o dia, vencido por um insulto cerebral. A lavadeira que residia em frente de nós, mulher robusta e desassombrada, repentinamente passou a usar muletas, em razão da perna quebrada. Nossos vizinhos, de tempos a tempos, trajavam rigoroso luto, homenageando parentes mortos; e até o padre mais velho, que despendia semanas transmitindo-nos o catecismo, certa manhã se deixou transportar para o cemitério, quando menos esperávamos.

11 Tudo se modificava, de hora a hora, até que nos separamos a fim de rever-nos, mais tarde, na Capital da República.

Você fazia o possível por ocultar os males do estômago e eu dissimulava habilmente as perturbações do sistema endócrino.

Seu rosto não era o mesmo. Rugas surpreendentes marcavam-no todo. Seus cabelos, que conheci finos, sedosos e abundantes, estavam ralos e encanecidos. Seus olhos fitavam-me com firmeza, todavia, injetados de sangue. As mãos bem cuidadas não mostravam a despreocupação do princípio; entretanto, revelavam-se pesadas e grossas, exibindo veias salientes.

12 Certo, você notou profunda mudança em mim, mas a gentileza lhe asfixiou as observações pessimistas que procurei calar igualmente por minha vez.

E as moças que cortejáramos noutra época, enlevados na paisagem do berço? Algumas delas, no Rio, embalde tentavam recursos contra a jornada implacável da Natureza. Eram quase irreconhecíveis. Odontólogos exímios não lhes restauravam a boca que namoramos, embevecidos, nos primeiros arroubos da juventude. Surgiam na avenida, assim como nós ambos, procurando farmácias para o reumatismo iniciante.

13 A morte, meu caro, teve o condão de acordar-me as reminiscências. E considerando a amizade que sempre nos ligou, no cenário humano, rememoro, saudoso, sua própria felicidade longínqua… Não ignoro que você perdeu os pais, a esposa inesquecível e o filho mais novo que lhe era particularmente querido pelas afinidades sentimentais. Em dez anos, você mudou de residência quinze vezes, procurando alívio para o coração angustiado, irremediavelmente enfermo…

14 Seus olhos permanecem fixos no pretérito e, identificado com a sua dor de peregrino, cheio de ouro e vazio de paz, lembro-me, saudosamente, até mesmo de seu belo papagaio que nos divertia, faz quase trinta anos, gritando os nomes de políticos influentes da hora…

Desejaria confortá-lo, revivê-lo, mas… você, apesar de batido pelas desilusões e renovações incessantes, está convencido de que vive no Plano mais sólido e inamovível do Universo e acredita que eu seja um vagabundo invisível a contar anedotas destinadas à ingenuidade humana.

15 Você, homem de carne e osso, declara-se imutável e assevera que não passo de sombra a voltar do país da morte.

Como poderá um fantasma consolar um homem seguro de si, a ponto de julgar-se intangível? Decididamente, você tem toda a razão.


Irmão X

(Humberto de Campos)

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