O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

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Coração e vida — Maria Dolores


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Cantiga da Reencarnação

  1 Um homem agonizava, mas embora

  Não pudesse expressar palavra alguma,

  Na sombra interior que o desarvora,

  Pede em silêncio ao corpo:

  — “Ampara-me, por Deus!

  Eu não quero morrer, ajuda, corpo amigo,

  Não te quero deixar, preciso estar contigo,

  Sem ti temo cair em abismos fatais…”


  2 Era o apelo de instantes derradeiros

  Naquele portador de moléstia obscura,

  Que ainda não chegara aos cinquenta janeiros

  E que tudo indicava

  Estar descendo à morte prematura.


  3 De consciência lúcida, lembrava

  Em contrição sincera,

  As forças que gastara, inutilmente,

  As noites dos excessos de aguardente

  E os abusos sem conta que fizera…


  4 E, ante a morte a surgir, sempre mais perto,

  Continua a rogar ao corpo enfraquecido:

  — “Corpo que Deus me deu, não me deixes caído,

  Quero mais tempo, a fim de preparar-me

  Para aceitar sem medo e sem alarme,

  A ideia de perder-te e entrar em rumo incerto”.


  5 Entretanto,

  De espírito cansado

  A desfazer-se em pranto,

  Nas vascas da agonia,

  Ouviu a voz do corpo fatigado,

  Que, por fim, lhe dizia:


  6 “Escuta, meu amigo

  Eu sou teu servo e sei que és meu senhor,

  Sempre te obedeci com desvelado amor,

  Deus me criou para a missão

  De atender-te em completa servidão.

  Nunca me viste a desobedecer

  As ordens que me deste

  Fossem justas ou não,

  Porquanto o meu dever

  É o de servir-te sem reclamação.

  Mas indaga de ti quanta vez me impuseste

  Noitadas de prazer, ruinosas ou vazias,

  Depredando-me as próprias energias

  Que Deus me concedeu, em teu favor…

  Embora eu te avisasse

  Com a minha própria dor

  Que o remorso produz tristeza e enfermidade,

  Adquiriste, displicente,

  Cargas de sombra sobre a própria mente,

  Culpas e culpas sem necessidade…

  Repito: sou teu servo e, em nada te condeno,

  Mas demonstrando entendimento estreito,

  Gastaste-me as reservas sem proveito,

  Consumindo-me as forças,

  A pedaços de abuso e a doses de veneno…

  Dei-te tudo o que eu tinha,

  Nada me resta agora,

  Senão me recolher à derradeira hora,

  Em que eu deva tornar, com segura presteza,

  À recomposição da natureza!…”


  7 O homem ouviu o corpo em despedida

  Mas não tinha defesa

  Contra os próprios desmandos, ante a vida…

  No silêncio de mágoa indefinida,

  Voltou-se para Deus em oração,

  Pediu misericórdia, amparo e proteção,

  E, ante o corpo que se lhe enrijecia,

  Chorou o companheiro que perdia…


  8 Longo tempo passou, em clima de amargura,

  No entanto, ao se afundar em crises de loucura,

  Fez-se-lhe a prece continuada,

  Nos sofrimentos em que avança

  Um clarão de esperança…

  Tinha nódoas de culpa, em lágrimas sofria

  Mas o Céu lhe apontava a luz de novo dia…

  No íntimo, o Senhor o exortava somente

  A regressar ao mundo e tentar novamente

  Extinguir em si mesmo os males que trazia…


  9 O Espírito em falência, exânime, inseguro

  Pensou nas novas bênçãos do futuro,

  Viu a reparação por justiça e dever,

  E agradecendo aos Céus

  Gritou feliz, livre mas preso ao chão:

  — “Glória a Deus pela bênção de sofrer,

  Glória à reencarnação que obterei um dia,

  A fim de achar na dor a essência da alegria,

  O dom de trabalhar e a graça de nascer!”


Maria Dolores


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