O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

Índice | Página inicial | Continuar

Contos e apólogos — Irmão X


39


Infortúnio materno

1 Em pleno hospital da Espiritualidade, pobre criatura estendeu-nos o olhar suplicante e rogou:

— O senhor consegue escrever para a Terra?

— Quando mo permitem, — repliquei entre pesaroso e assombrado.

2 Quem era aquela mulher que me interpelava desse modo?

A fisionomia escaveirada exibia recordações da morte. A face inundada de pranto tinha esgares de angústia e as mãos esqueléticas e entrefechadas davam a ideia de garras em forma de conchas.

3 Dante não conseguiria trazer do Inferno imagem mais desolada de sofrimento e terror.

— Escreva, escreva! — Repetia chorando.

— Mas escrever a quem?

— Às mulheres… — clamou a infeliz. — Rogue-lhes não fujam da maternidade nobre e digna… peço não façam do casamento uma estação de egoísmo e ociosidade…

Os soluços a lhe rebentarem do peito induziam-nos a doloroso constrangimento.

4 E a infeliz contou em lágrimas:

— Estive na Terra, durante quase meio século… Tomei corpo entre os homens, após entender-me com um amigo dileto que seguiu, antes de mim, no rumo da arena carnal, onde me recebeu nos braços de esposo devotado e fiel. Com assentimento dos instrutores, cuja bondade nos obtivera o retorno à escola física, comprometemo-nos a recolher oito filhinhos, oito corações de nosso próprio passado espiritual, que por nossa culpa direta e indireta jaziam nas furnas da crueldade e da indisciplina… Cabia-nos acolhê-los carinhosamente, renovando-lhes o espírito, ao hálito de nosso amor… Suportar-lhes-íamos as falhas renascentes, corrigindo-as pouco a pouco, ao preço de nossos exemplos de bondade e renúncia… Nós mesmos solicitáramos semelhante serviço… Para alcançar mais altos níveis de evolução, suplicamos a prova reparadora… Saberíamos morrer gradativamente no sacrifício pessoal, para que os associados de nossos erros diante da Lei Divina recuperassem a noção da dignidade.

5 A triste narradora fez longa pausa que não ousamos interromper e continuou:

— Entretanto, casando-me com Cláudio, o amigo a que me reportei, fui mãe de um filhinho, cujo nascimento não pude evitar…

6 Paulo, o nosso primogênito, era uma pérola tenra em nossas mãos… Despertava em meu ser comoções que o verbo humano não consegue reproduzir… Ainda assim, acovardada perante a luta, por mais me advertisse o esposo abençoado, transmitindo avisos e apelos da Vida Superior, detestei a maternidade, asilando-me no prazer… 7 Cláudio era compelido a gastar largas somas para satisfazer-me nos caprichos da moda… Mas a frivolidade social não era o meu crime… Nas reuniões mundanas mais aparentemente vazias pode a alma aprender muito quando resolve servir ao bem… 8 Cristalizada, contudo, na preguiça, qual flor inútil a viver no luxo dourado, por doze vezes pratiquei o aborto confesso… Surda aos ditames da consciência que me ordenava o apostolado maternal, expulsei de mim os antigos laços que em outro tempo se acumpliciavam comigo na delinquência, assassinando as horas de trabalho que o Senhor me havia facultado no campo feminino… 9 E, após vinte anos de teimosia delituosa, ante o auxílio constante que me era conferido pelo Amparo Celestial, nossos Benfeitores permitiram, para minha edificação, fosse eu entregue aos resultados de minha própria escolha… 10 Enlaçada magneticamente àqueles que a Divina Bondade me restituiria por filhos ao coração e aos quais recusei guarida em minha ternura, fui obrigada a tolerar-lhes o assalto invisível, de vez que, seis deles, extremamente revoltados contra a minha ingratidão, converteram-se em perseguidores de minha felicidade doméstica… 11 Fatigado de minhas exigências, meu esposo refugiou-se no vício, terminando a existência num suicídio espetacular… Meu filho, ainda jovem, sob a pressão dos perseguidores ocultos que formei para a nossa casa, caiu nas sombras da alienação mental, desencarnando em tormento indescritível num desastre da via pública, e eu… pobre de mim, abordando a madureza, conheci a dolorosa tumoração das próprias entranhas… 12 A veste carnal, como que horrorizada de minha presença, expulsou-me para os domínios da morte, onde me arrastei largo tempo, com todos os meus débitos terrivelmente agravados, sob a flagelação e o achincalhe daqueles a quem podia ter renovado com o bálsamo de meu leite e com a bênção de minha dor…

13 A desditosa enferma enxugou as lágrimas com que nos acordava para violenta emoção e terminou:

— Fale de minha experiência às nossas irmãs casadas e robustas que dispõem de saúde para o doce e santo sacrifício de mãe! Ajude-as a pensar… Que não transformem o matrimônio na estufa de flores inebriantes e improdutivas, cujo perfume envenenado lhes abreviará o passo na direção das trevas… Escreva!… Diga-lhes algo do martírio que espera, além da morte, quantos quiseram ludibriar a vida e matar as horas.

14 A mísera doente, sustentada por braços amigos, foi conduzida a vasta câmara de repouso e, impressionados com tamanho infortúnio, tentamos cumprir-lhe o desejo e transmitir-lhe a palavra; contudo, apesar do respeito que consagramos à mulher de nosso tempo, cremos que o nosso êxito seria mais seguro se caminhássemos para um cemitério e assoprássemos a mensagem para dentro de cada túmulo.


Irmão X

(Humberto de Campos)

Texto extraído da 1ª edição desse livro.

Abrir