O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

Índice |  Princípio  | Continuar

Sexo e destino — André Luiz — F. C. Xavier / Waldo Vieira — 2ª Parte


Capítulo 7

(Sumário)

1. Duas semanas precisamente sobre o desastre em Copacabana e Marita amanheceu preparada à desencarnação.

2 Moreira inspirava piedade. Aqueles dias abençoados de ensinamento e dor lhe haviam alterado a vida íntima. Percebendo que a menina entrara nos derradeiros lances da decadência orgânica, chorava, consternado.

3 Marita desligava-se, a pouco e pouco, de toda a relação com o mundo corpóreo. Nem mesmo o calor daquele amigo generoso que a sustentava, qual se lhe ofertasse um pulmão suplementar, a interessava mais…

4 Conquanto imóvel, sentia-se agora lúcida, profundamente lúcida. Os olhos quedavam quase apagados; no entanto, o apoio magnético incessante lhe descerrava a luz da visão espiritual.

5 Nos últimos dois dias, atingira avançada renovação. Assinalava com absoluta clareza as palestras frequentes que Cláudio mantinha com médicos e enfermeiros, gravava as preces e os comentários de Agostinho e Salomão, na hora do passe.

6 De começo, ao experimentar que as mãos paternas lhe asseavam o corpo, desesperava, clamando de si para consigo que não se conformava com tanta humilhação… 7 Lançava pensamentos de revolta contra o destino que a jungia daquele modo a um homem que odiava; entretanto, à força de perceber-lhe a ternura reverente, expungindo-lhe as excreções que se lhe agarravam à epiderme ferida, acabou plantando no coração um sentimento novo. 8 Enterneceu-se, transfigurou-se. Ouvia-o falar em Deus e, às vezes, identificava-lhe os dedos a lhe roçarem a fronte, ao mesmo tempo que entremeava afagos e orações… 9 Num dos minutos comovedores em que ela cismava, sem atinar com os motivos daquela transformação, Félix aproximou-se… Acariciou-lhe paternalmente os cabelos em desalinho e disse, na convicção de quem centralizava todas as energias, a fim de sugerir-lhe, com êxito, a atitude aconselhável:

— Filha, perdoa, perdoa!…

10 Ela registou, emocionada, a voz desconhecida e recordou a mãezinha que a deixara no berço.

Sim, — concluía, — somente o amor materno voltaria do túmulo para inclinar-lhe o coração incendiado à fonte da indulgência…

11 Perdoar, — monologou, — que outra coisa lhe competia fazer diante da morte? Sim, devia partir olvidando mágoas e afrontas… Reconhecia-se na armadura dos ossos, à feição de pinto no ovo. Tênue pancada ou breve movimento conseguiria despejá-la e deveria sair, conquanto não soubesse para onde… Por que não seguir, apagando as labaredas que lhe requeimavam os sentimentos?!…

12 Meditou naquelas mãos que a despiam, enxugando-lhe a pele molhada para vesti-la outra vez, com o carinho apenas visto nas mães quando tocam, de manso, os filhinhos doentes, e concluiu que lhe cabia desculpar, esquecer…

13 Compadeceu-se, então, diante do pai irrefletido. Perdoar-lhe, sim!… Pensou nisso, com o júbilo de quem achara uma bênção… Ele agora a respeitava, limpava-a, orava… Viveria na Terra, talvez carregando amargas penas, enquanto que ela viajaria para regiões que ignorava, apegando-se, porém, à confiança naquela voz que lhe impelia o espírito atribulado à calmaria do perdão… 14 Rememorou-lhe o pranto da noite em que lhe declarara a paixão despropositada e tocou-se de entendimento. Pobre pai aquele que nunca desfrutava refúgio no próprio lar!… 15 Teria um cérebro normal um homem assim, varado em casa, diariamente, qual se fosse um cão infeliz?! Quem poderia saber se ele se aproximara dela na condição de um enfermo buscando lenitivo que não sabia qualificar, na turvação dos próprios sentidos? 16 Provavelmente havia recebido, na pensão de Crescina, o assalto de um louco e não a injúria de um homem!… Por que não justificar o pai que se dementara?!… 17 Reconstituiu-lhe, na memória, os gestos de brandura e de amor, nos brincos da infância. Cláudio lhe fora o único amigo… Se chorava em pequenina, recolhia-se-lhe ao colo, buscando o regaço de mãe que não tivera. 18 Demorou-se a revê-lo nas telas da imaginação, transportando-a nos braços para que se distraísse, admirando os bichos do jardim zoológico… Degustava, de novo, mentalmente, os sorvetes que ele lhe adquiria, prazeroso, nas tardes de verão… Recordava, recordava… Não, não!… — Bradava-lhe a consciência, — o pai não era perverso, era bom… 19 Como recusar-lhe compaixão se Dona Márcia o abandonava, se Marina lhe evitava a presença? Decerto, sofrera muito, antes de conturbar-se… Como não exculpar a loucura de uma noite, num benfeitor de vinte anos? Por que não morrer, abençoando semelhante dedicação? De que modo condená-lo, se ele, Cláudio, prosseguia ali, paciente e abnegado, tolerando-a?! 20 Recordou a mãe adotiva, imaginou-se à frente da irmã e aspirou em espírito, à reconciliação com elas… Quem afirmaria que Dona Márcia e Marina também não estivessem sob desequilíbrios ocultos? Quem diria com certeza que não fossem doentes? 21 Naquele instante em que se harmonizava com Cláudio, queria igualmente conciliar-se com ambas. Estavam perdoadas por todas as incompreensões e, no íntimo, pedia-lhes perdão por todos os dissabores que, involuntariamente, lhes tivesse causado!… 22 No desfile das reminiscências, Gilberto não faltou. A figura do rapaz surdiu-lhe na cabeça, envolvida das doces vibrações do sonho que lhe constituíra a luz da vida!… Não conseguiria odiar a quem amava tanto!… Gilberto teria encontrado razões para afastar-se dela e também, naquelas reflexões graves e extremas, lhe aparecia, na ternura, revestido com a beleza de um companheiro amado e limpo!…

23 Ao enunciar esses pensamentos, Marita sentiu-se mais leve, quase feliz!…

Intentou movimentar-se, gritar ao pai que ela o considerava um homem de bem, que não detinha motivo algum para acusá-lo, que os sucessos na moradia de Crescina tinham sido apenas um lamentável engano, que ela realmente morreria, rogando-lhe, no entanto, viver e continuar a ser bom!… 24 Contudo, só ao pensar no próprio soerguimento, teve a impressão de que se algemava a uma estátua. Nenhuma reação favorável nos membros hirtos, nenhuma voz na garganta que lhe parecia de pedra; todavia, tão grande e tão heroico se lhe externou o esforço da alma renovada, que bagas de pranto lhe rolaram dos olhos semimortos.

25 Desde esse minuto solene de pacificação, começou a distinguir, vagamente, vozes e formas do Plano espiritual, entre alegre e amedrontada, qual se estivesse acordando num clarão traspassado de bruma…

26 Fitando-lhe o semblante orvalhado de lágrimas, Nogueira, reanimado, chamou o médico.

Aquilo não seria indício de reação, de melhora?

27 O facultativo, porém, meneou a cabeça, circunspecto, e pediu mais tempo de observação, a fim de pronunciar-se, concluindo, no entanto, de si para consigo que a menina se achava em condição pré-agônica, transtornada, delirante…


2. Clareado o dia que antecedeu a noite da desencarnação, o clínico prestimoso convidou Cláudio a entendimento e comunicou-lhe, por fim, que a moça não mais viveria muitas horas. Para a Ciência, tudo terminava… Que ele, pai afetuoso e crente, orasse segundo a fé que alimentava no coração, buscando forças…

2 Nogueira baixou os olhos e agradeceu, humilde.

Telefonou para Agostinho e Salomão, participando-lhes o aviso.

Os amigos vieram à noitinha.

3 Rogou orassem por ele, queria ser digno da fé que aceitara. Pela primeira vez, pediu um passe em favor de si mesmo. Baixou os olhos e espalmou as mãos para recebê-lo, imitando o gesto de uma criança infeliz, suplicando uma esmola.

4 O velho farmacêutico e o negociante consolaram-no. Não seria justo reter a menina padecente num corpo qual aquele, deprimido e irrecuperável; no entanto, ao se despedirem, achavam-se ambos engasgados de emoção.

5 Cláudio, mais desolado que nunca, às nove horas solicitou licença para trancar-se. Queria estar só com a filha, dizer-lhe adeus. Ninguém recusou aquele favor suplicado com humildade.


3. Isolado à frente dela, Nogueira demorou-se a meditar… Recompunha o pretérito na memória, imaginando as estradas percorridas por ruínas das quais se via afastado para sempre. 2 Entretanto, ao fixar a agonizante, pelo amor purificado que lhe passara a dedicar, simbolizava, na existência junto dela, o futuro de que se via distante. Entre o passado que lhe inspirava repugnância e o porvir na comunhão espiritual com a filha querida, sentia-se esmagado, sozinho…

3 Enternecia-nos as recônditas fibras da alma contemplar aquele homem vergado ao peso do suplício moral, fugindo a recordações para entrar em prece… Os gritos inarticulados do peito jugulado de angústia ao apelarem para Deus, no silêncio do quarto, assemelhavam-se a cânticos de dor que as lágrimas sufocavam!…

4 Às onze, o irmão Félix e outros amigos, incluídos Neves e Percília, estavam conosco.

Em todos os semblantes, a expectativa discreta, com exceção de Moreira, que se agitava em pranto.

5 O instrutor levantou-o num gesto de brandura, comunicando-lhe que a tarefa terminara. Que não se deveria vitalizar, por mais tempo, aqueles pulmões que a morte começava a enregelar. O triste amigo obedeceu, em choro convulso.

6 Em seguida, impondo as mãos naquela cabeça despenteada, Félix transmitiu-lhe subitâneo calor.

Marita senhoreou inopinada agilidade mental.

Supunha-se reviver, renascer. Escutava os ruídos em derredor, com extrema acuidade auditiva…

7 O benfeitor abeirou-se de Cláudio e segredou-lhe algo. Certo, sugeria-lhe conversar, despedir-se.

8 Ignorando-se tocado pelo mentor espiritual, vimo-lo revestido de estranha coragem. Nogueira ergueu-se, avançou dois passos e ajoelhou-se ao pé da agonizante… Pousou a cabeça rente ao corpo imóvel, mas a intensa emotividade traiu-lhe as energias. O pranto abalava-lhe os membros, ao jeito de tempestade sacudindo os galhos de um tronco prestes a cair.

9 Marita percebia-lhe o arfar do tórax, na escala ascendente dos soluços, e desejou acariciá-lo; contudo, os braços se lhe afiguraram parafusados à cama.

10 Amparado nas forças magnéticas de Félix, que passou a apoiá-lo inteiramente, Cláudio cobrou ânimo, recolheu o exemplar de “O Evangelho segundo o Espiritismo”, que deixara na cadeira próxima, e falou com voz trêmula:

11 — Filha do meu coração, se você me escuta, atenda a seu pai, por piedade!… Perdoe-me!… Não sei se você sabe que estou transformado… 12 Conheci Jesus, minha filha, e sei hoje que Deus é misericórdia, que ninguém morre, ninguém… Sei que a justiça está em nós mesmos, que sofremos pelos males que praticamos, mas Deus não nos recusa o resgate!… 13 Compreendo o mal que fiz a você, sou um criminoso, mais nada… Pense, minha filha, no remorso que carregarei pelo resto da vida!… Você sabe que vou agora caminhar sem ninguém, aguentando a solidão que mereço… 14 Onde você estiver, compadeça-se de seu pai!… Confie em Jesus e nos bons Espíritos!… Eles sabem que você não se suicidou, sabem que sou um assassino… 15 Ah! minha filha, pense nesta palavra assim tão triste!… Assassino! Auxilie-me a lavar esta mancha da consciência! Rogue por mim aos enviados do Cristo, para que eu tenha a força de fazer o que devo fazer!…

16 Cláudio fez ligeira pausa, ao ver que o rosto da filha se cobria de lágrimas e, ansiando reconhecê-la devolvida à própria consciência para que lhe assinalasse a renovação, guardou a íntima certeza de que ela o escutava, em plena lucidez, bendizendo-lhe os votos de melhoria. Aflito e expectante, na convicção de que estava sendo ouvido e entendido, continuou:

17 — Apesar de tudo, filha querida, não fique triste com minha súplica!… Sou um réu, mas tenho esperança! Veja a revelação de Jesus que eu achei!…

18 Em seguida, com as mãos trementes, num gesto de piedosa confiança, colocou-lhe o livro na destra inerme.

A filha desperta registou a presença do volume sobre os dedos inteiriçados e respondeu com o pranto mais vivo, mais copioso.

19 Nogueira, encorajado por aquela manifestação de inteligência, levantou a voz e rogou-lhe escutasse o que tinha a dizer…

20 Declarando saber-se diante de amigos espirituais, que lhe testemunhariam a sinceridade, e certo de que empenhava a própria alma nas afirmações que se dispunha a formular, abriu-se à filha. Confessou ali, diante dela, todas as faltas de que se acusava; 21 relatou-lhe o drama de Aracélia; asseverou que sinceramente ignorava fosse ela filha dele, o que apenas viera a saber por informação de Márcia, porquanto, leviano e inconsequente qual fora, na mocidade, admitia, erroneamente, que Aracélia desempenhara o papel de companheira para vários homens; 22 participou-lhe que a esposa o chamara à realidade, na noite horrível em casa de Crescina; descreveu como se abatera, atormentado pelo arrependimento desde que a vira prostrada, implorava-lhe perdão por havê-la induzido ao suicídio.… 23 Comunicou-lhe haver lido e aprendido muito sobre reencarnação, desde o primeiro dia de hospital, e asseverou-se persuadido de que ambos se achavam ligados, através de múltiplas existências; disse que a paixão alimentada por ele teria sido fruto da invigilância e da crueldade que ainda trazia no coração… 24 Acrescentava, porém, ali, ante os padecimentos dela que lhe constituíam sentença de dor inapelável, que prometia regenerar-se, por mais áspero o reajuste… 25 Finda a longa exposição, que Marita assinalou, compungidamente, frase por frase, Nogueira retirou o livro da mão pequenina e descarnada, rematando em choro convulsivo:

26 — Tenho orado e tenho recebido a misericórdia de Deus para mim, malfeitor… Mas se a Bondade Infinita me pode favorecer ainda com nova esmola, abençoe-me, filha querida, dê-me um sinal de benevolência, antes de partir… Se você está ouvindo o réu que sou, acompanhe-me neste desejo… Ore também!… Rogue a Deus forças… Mova um dedo, um dedo só para que eu saiba que você perdoou a seu pai!… Não me deixe na incerteza, agora que vou recomeçar o destino, entregue às consequências de minhas próprias faltas!…

27 Registando os soluços paternos, que lhe revolviam a alma, a jovem associou-se-lhe aos votos. Desejou ansiosamente, veementemente, satisfazer-lhe o pedido…

28 Perdão!… Perdão!… A palavra ressoava-lhe no espírito, à maneira de cântico que descesse do céu, ecoando nas paredes em torno!… Perdão!… Aquelas seis letras, enfileiradas em forma de sons pareceram-lhe música da eternidade, que estivesse sendo executada no firmamento, em trompas de estrelas, cujos brandos acentos lhe aliviavam o coração!…

29 A pobre menina concentrou todas as energias num pensamento de confiança e de gratidão a Deus e rogou, mentalmente: — “Perdão, Senhor!… Perdão para meu pai, perdão para mim!… Perdão para todos os que erraram!… Perdão para todos os que caíram!…”

30 Aguçaram-se-lhe as percepções e sentiu-se como que banhada de alegria inefável… Contemplou Cláudio, distintamente agora, fitou Moreira em lágrimas e, alongando a atenção mais serenamente em derredor do leito, viu-nos a todos. 31 Félix, em silêncio, endereçou-lhe eflúvios magnéticos a determinada área cerebral, e Cláudio, atônito, viu a destra inerme levantar-se… 32 Agoniado e reconhecido, tomou avidamente aqueles pequenos dedos frios e quis dizer “obrigado, meu Deus!”, tentando, debalde, movimentar a garganta que os soluços embargavam; contudo, em lugar da palavra dele, foi a voz de Félix que se ergueu, de nosso lado, arrebatando-nos em prece:


4. — Senhor Jesus, nós te agradecemos a felicidade que nos concedeste na lição do sofrimento, nestes dias de trabalho e de expectação!…

2 Obrigado, Senhor, pelas horas de aflição que nos clarearam a alma, pelos minutos de dor que nos despertaram as consciências! Obrigado por estas duas semanas de lágrimas que realizaram por nós o que não nos foi possível fazer em meio século de esperança!…

3 Em te alçando nosso agradecimento e louvor pedimos ainda!… Lança, por misericórdia, a tua bênção na irmã que se despede e no companheiro que ficará. Transfunde-lhes o pesar em renovação, a mágoa em regozijo!… Recebe-lhes o pranto, como sendo a oração que te elevam, aguardando-te a paz no caminho!…

4 Entretanto, Mestre, não te exoramos a piedade somente para eles, irmãos bem-amados, que consideramos filhos da própria alma!… Suplicamos-te arrimo para todos os que resvalaram nos enganos do sexo desorientado, quando nos ofereceste o sexo por estrela de amor a brilhar, assegurando-nos a alegria de viver e garantindo-nos os recursos da existência!…

5 Consente, Senhor, possamos relacionar, diante de ti, aqueles irmãos que as convenções terrestres tantas vezes se esquecem de nomear, quando te dirigem o coração.

6 Abençoa os que se tresmalharam na insânia ou no infortúnio, em nome do amor que não chegaram a conhecer!

7 Socorre nossas irmãs entregues à prostituição, já que todas nasceram para a felicidade do lar, e corrige com tua munificência os que as impeliram para a viciação das forças genésicas; 8 acolhe as vítimas do aborto, arrancadas violentamente ao claustro materno, dentro dos prostíbulos ou em recintos que a impunidade acoberta, e retifica, sob teu auxílio, as mães que não vacilaram asfixiar-lhes ou degolar-lhes os corpos em formação; 9 restaura as criaturas sacrificadas pelas deserções afetivas, que não souberam encontrar outro recurso senão o suicídio ou o manicômio para ocultarem o martírio moral que lhes transcendeu a capacidade de resistência, e compadece-te de todos aqueles que lhes escarneceram da ternura, transformando-se, quase sempre, em carrascos sorridentes e empedernidos; 10 protege os que renasceram desajustados, no clima da inversão, suportando constrangedoras tarefas ou padecendo inibições regenerativas, e recupera os que se reencarnaram nessa prova, sem forças para sustentar as obrigações assumidas, afogando a existência em devassidão; 11 recolhe as crianças que foram seviciadas e renova, com a tua generosidade, os estupradores que se animalizaram, inconscientes; 12 agasalha os que rolaram na desencarnação prematura, por efeito de golpes homicidas, nas tragédias da insatisfação e do desespero, e ampara os que se lhes tornaram os verdugos padecentes, vergastados pelo remorso, seja na liberdade atenazada de angústia ou no espaço estreito dos calabouços!…

13 Mestre, digna-te reconduzir ao caminho justo os homens e as mulheres, nossos irmãos, que, dominados pela obsessão ou traídos pela própria fraqueza, não conseguiram manter os compromissos de fidelidade ao tálamo doméstico; 14 reequilibra os que fazem da noite pasto à demência; 15 conforta os que exibem mutilações e moléstias resultantes dos excessos ou dos erros passionais que praticaram nesta ou em outras existências; 16 reabilita a cabeça desvairada dos que exploram o filão de trevas do lenocínio; 17 regenera o pensamento insensato dos que abusam da mocidade, propinando-lhe entorpecentes; 18 e sustenta os que rogaram antes da reencarnação as lágrimas da solidão afetiva e as receberam na Terra, por medida expiatória aos desmandos sexuais, a que se afeiçoaram, em outras vidas, e que, muitas vezes, sucumbem de inanição e desalento, em cativeiro familiar, sob o desprezo de parentes insensíveis, a cuja felicidade consagraram a juventude!…

19 Senhor, estende também a destra misericordiosa sobre os corações retos e enobrecidos! Desperta os que repousam nos ajustes legais, acatados nas organizações terrestres, e esclarece os que respiram em lares, revestidos pela dignidade que mereceram, a fim de que tratem com humanidade e compaixão os que ainda não podem guardar-lhes os princípios e imitar-lhes os bons exemplos!… 20 Ilumina o sentimento das mulheres engrandecidas pelo sacrifício e pelo trabalho, para que não desamparem aquelas outras que, até agora, ainda não conquistaram a maternidade premiada pelo respeito do mundo, e que, tantas vezes, lhes suportam a brutalidade dos filhos nos lupanares! 21 Sensibiliza o raciocínio dos homens que encaneceram honrados e puros, de modo a que não abandonem os jovens desditosos e transviados!…

22 Senhor, não consintas que a virtude se converta em fogo no tormento dos caídos e nem permitas que a honestidade se faça gelo nos corações!…

23 Tu, que desceste às vielas do mundo para curar os enfermos, sabes que todos aqueles que jornadeiam na Terra, atormentados pela carência de alimentação afetiva ou alucinados pelos distúrbios do sexo, são doentes e infelizes, filhos de Deus, necessitados de tuas mãos!…

24 Inspira-nos em nossas relações uns com os outros e clareia-nos o entendimento para que saibamos ser agradecidos à tua bondade, para sempre!…


25 Quando Félix emudeceu, o compartimento demorava-se invadido pelo clarão que se lhe exteriorizava do peito; contudo, não éramos somente nós, os comandados dele, que trazíamos, ali, o espírito subjugado por intensa emoção!… 26 Todas as entidades desencarnadas, em serviço no estabelecimento, mesmo as que se vinculavam a outros cultos religiosos, se perfilavam à frente do acanhado recinto, discretas e atenciosas… 27 Espíritos ignorantes e vampirizadores, em trânsito nos sítios adjacentes, acorreram para junto de nós, atraídos pelos jorros de luz solar que o aposento irradiava em todas as direções, e, muitos deles, a curta distância, baixavam a fronte, emocionados e reverentes.

28 Aquele quarto da venerável instituição socorrista, em plena noite, na rua do Resende, assemelhava-se a fulgurante coração de alvenaria, constelado de amor!…


5. Cláudio nada ouvia, mas, empolgado pelas vibrações balsâmicas do ambiente, chorava, de manso, percebendo a mão gélida que se colara às dele, afrouxando a pressão do adeus. 2 Agoniado, fitou o semblante da filha e notou que o palor da morte nele esboçava o derradeiro sorriso… Levantou-se e cerrou, cuidadosamente, aquelas pálpebras fatigadas, orvalhando-as de lágrimas; no entanto, renteando com ele, Moreira não continha os soluços.

3 Telmo aplicava passes anestesiantes à jovem e um médico espiritual, que se nos incorporara ao trabalho de equipe, cortou os últimos ligamentos que ainda retinham a alma cativa ao corpo inerme.

4 Quando viu Marita liberta e agasalhada nos braços de Félix, figurando-se uma criança cansada e adormecida, Moreira, na aflição e na humildade dos que se olvidam integralmente, para destacarem os que mais amam, indagou, desolado:

5 — Irmão Félix, que farei doravante, inútil como sou?

— Moreira, — respondeu o instrutor, abençoando-o com o olhar, — somos uma família só. Muito em breve, terás o necessário, de modo a retomar o convívio de Marita, que pede agora paz e refazimento; mas, antes, somos nós os companheiros que te pedem auxílio! Marina sofre… Precisamos libertá-la. Contamos contigo como quem tudo espera de um amigo, de um irmão!…

6 O ex-assessor de Cláudio, ansiando patentear correta submissão, pôs-se genuflexo e deixou pender a fronte, confundido ao reconhecer que o orientador lhe rogava sanar uma brecha que ele, Moreira, havia agravado, e prometeu, em pranto, atender à obrigação que se lhe indicava. Tudo o que anelava agora, acentuou, era aprender, auxiliar, dedicar-se ao bem, trabalhar, servir…




6. Felizes da Terra! Quando passardes ao pé dos leitos de quantos atravessam prolongada agonia afastai do pensamento a ideia de lhes acelerardes a morte!…

2 Ladeando esses corpos amarrotados e por trás dessas bocas mudas, benfeitores do Plano espiritual articulam providências, executam encargos nobilitantes, pronunciam orações ou estendem braços amigos!

3 Ignorais, por agora, o valor de alguns minutos de reconsideração para o viajor que aspira a examinar os caminhos percorridos, antes do regresso ao aconchego do lar.

4 Se não vos sentis capacitados a oferecer-lhes uma frase de consolação ou o socorro de uma prece, afastai-vos e deixai-os em paz!… 5 As lágrimas que derramam são pérolas de esperança com que as luzes de outras auroras lhes rociam a face!… 6 Esses gemidos que se arrastam do peito aos lábios, semelhando soluços encarcerados no coração, quase sempre traduzem cânticos de alegria, à frente da imortalidade que lhes fulgura do Além!….

7 Companheiros do mundo, que ainda trazeis a visão limitada aos arcabouços da carne, por amor aos vossos sentimentos mais caros, dai consolo e silêncio, simpatia e veneração aos que se abeiram do túmulo! 8 Eles não são as múmias torturadas que os vossos olhos contemplam, destinadas à lousa que a poeira carcome… São filhos do Céu, preparando o retorno à Pátria, prestes a transpor o rio da Verdade, a cujas margens, um dia, também vós chegareis!…




9 Ao entardecer, Agostinho e Salomão acompanharam Cláudio e os despojos da filha até ao Caju. ( † )

Cerimônia simples que a prece consagrou.

10 De volta, Nogueira, acabrunhado, despediu-se dos amigos, na Cinelândia, ( † ) e tomou táxi para o Flamengo. ( † )

Alcançou o prédio, subiu e, sequioso de companhia, abriu a porta. Vasculhou peça por peça e sentiu frio no corpo e na alma…

No apartamento deserto não havia ninguém.


André Luiz


Texto extraído da 1ª edição desse livro.

Abrir