1. Estirada no leito, chorava Marita, desconsolada.
As revelações ouvidas naquele diálogo, a curta distância, revolviam-lhe o coração, quais pinças de fogo. Sentia-se abandonada, desejava morrer.
2 Então, — confirmava-se, — todo aquele devotamento de Gilberto não passava da superfície. Apropriara-se-lhe da alma, empolgara-lhe os sentimentos, para deixá-la sem comiseração.
3 Recordava-se de que, realmente, semanas antes, indagara-lhe ele que outros idiomas conhecia. Algo vexada, informara que somente conseguira o curso primário. O moço retirara da algibeira uma composição de Shelley. ( † ) Lera o inglês e traduzira para ela os versos lindos. Em seguida, aconselhara-lhe estudos suplementares à noite. Poderia auxiliá-la, relacionava-se com professores distintos. 4 Ela rira-se, queria o lar, a escola do lar com ele. Apenas ali, na decepção que a molestava, compreendia a extensão do arrufo com que se despedira. Ah! sim, aspirava ao casamento com moça culta. Ignorante! — Dizia para si mesma, — não passo de uma ignorante. Marina era diferente, dominava outras línguas.
5 Tudo já estava tramado, deliberado.
À vista disso, a irmã recusava-lhe intimidade nos dias últimos. Por mais a rodeasse de mimos, mais se afastava.
6 Agora reconhecia igualmente a causa de mostrar-se o rapaz enfastiado e irritadiço. Entretanto, — perguntava-se, triste, — se ele a desprezava, assim, por que lhe abusara da confiança? Por que o arrebatamento com que lhe acorrentara a alma às inesquecíveis impressões da menina que se faz repentinamente mulher? Não selara com ela um ajuste de matrimônio? Não lhe testemunhava extrema ternura nos encontros domingueiros, quando se entregavam a comunhão mais íntima?
7 Incapaz de duvidar da legitimidade do carinho que recebera, voltava-se mentalmente para a irmã que lhe surrupiava as mínimas alegrias. A nova infelicidade, — conjeturava, — seria culpa dela. Com toda a certeza, Marina cobiçara o rapaz, a envolvê-lo na teia de artimanhas que entretecia como ninguém. Gilberto caíra-lhe no engodo. Ave no visco. Contudo, ao descobrir toda a trama, reconhecia-se irremediavelmente lesada. Debatia-se em pranto, sob o peso das considerações familiares. Era imperioso certificar-se de que era enjeitada e ignorante. Nada sobraria para ela, tudo para a outra. Marina possuía méritos, ela não.
8 A exposição de Dona Márcia, naquela hora, insuflara-lhe a tortura do réu que ouve sentença inapelável. Ainda assim, chorava, inconformada. A contingência de perder Gilberto induzia-lhe o sentimento a matar ou desaparecer. Rememorou as tragédias, lidas na imprensa, mas o fratricídio repugnava-lhe ao coração. 9 A ideia do suicídio, contudo, qual semente a se lhe ocultar no imo do ser, evocada pelo esboço ligeiro da alma, como que germinara, de súbito. Acariciou-a, de leve, e a sugestão infeliz ganhou corpo. Divagações negativas tomaram-na de assalto. Renunciar a Gilberto e largar os planos feitos doeriam muito mais que morrer, — pensava, desolada. Mas seria justo acovardar-se, assim tanto? 10 Repeliu o estranho apelo e, conquanto as lágrimas, prometeu coragem a si própria. Lutaria pela felicidade. Explicar-se-ia com o rapaz, baniriam, juntos, a ameaça pendente. Entretanto, se Gilberto não lhe aceitasse os argumentos, que fazer do destino, se, com o golpe sofrido à frente, percebia também o fantasma da esquisita inclinação do pai adotivo pela retaguarda?
11 Por que a peça que a vida lhe pregava? Devia esquivar-se ao afeto do jovem que amava, numa consagração natural, para ganhar a paixão do homem maduro que se habituara a respeitar como pai e que lhe acenava com uma espécie de união para ela inaceitável? Estarrecia-se ao ouvi-lo naquela hora. Identificava-lhe o tom de alegria triunfante, ao dar-se conta da felicidade com que se desembaraçaria de Gilberto, no campo em que se prometia apresá-la.
12 Cláudio como que lhe falava de longe, ao dirigir-se à esposa. Aquelas referências louvaminheiras com que a obsequiava, perante Dona Márcia, confirmavam-lhe a decisão de dobrá-la, demovê-la. Entre o asco e a piedade, rememorava-lhe as carícias, que somente naquela noite conseguira compreender.
13 Como desvencilhar-se?
Flor sacudida no vento da provação, perguntava porquê, porquê?…
Sopesando as ocorrências, pela primeira vez sentia medo daquele ninho familiar a que se reconhecia encadeada por filha do coração.
2. De repente, elevou o pensamento à memória materna… 2 Ah! nunca imaginara que um coração feminino pudesse encontrar dilemas tão aflitivos, quanto aqueles a que se via largada, de instante para outro! Que não teria sofrido sua própria mãe, que a deixara no instante do alvorecer? 3 Nunca soubera, ao certo, as circunstâncias que lhe haviam rodeado o nascimento. Concluía agora, porém, que talvez a genitora tivesse conhecido o cálice que ela agora amargava! Que noites de agonia moral atravessara, sozinha, ao acariciá-la no ventre! Que injúrias padecera, que privações experimentara? 4 Ela, que tudo desconhecia acerca do pai, refletia no martírio da genitora, jovem e abandonada, quando, provavelmente, lhe aguardava, em vão, o carinho e a proteção, noite a noite. 5 Dona Márcia, ao biografar-lhe a mãezinha, dissera “moça brincalhona”. Teria sido mesmo? Possivelmente, gargalharia para não soluçar, ansiando abafar em ruídos de festa os gritos da própria alma… Quem sabe ter-se-ia dedicado a algum homem proibido, empenhado o coração a algum moço que lhe fora roubado à ternura de menina e mulher?!
6 Nas lágrimas que lhe corriam, suspirava por fazer-se criança… Por que não vivera a mãezinha, a fim de lutarem juntas?! Consagrar-se-iam uma à outra. Permutariam as próprias mágoas…
7 Muita vez, na loja a que servia, escutava apontamentos sobre comunicações de mortos, inteirava-se de experiências sobre a continuação da vida no Além… Seria aquilo verdade? — Indagava-se. Se Aracélia, libertada, estivesse em alguma parte, indiscutivelmente lhe acompanharia o calvário, compartilhar-lhe-ia o infortúnio…
8 Mecanicamente, implorava ao Espírito materno a abençoasse, fortificasse, protegesse… Conquanto sem qualquer ideia religiosa definida, formulava prece muda, que valia por funda invocação…
3. Intentávamos consolá-la, buscando asserenar-lhe a mente, quando duas senhoras desencarnadas penetraram no quarto, de improviso.
2 Saudaram-nos, afetuosamente, revelando a condição de entidades familiares, vinculadas àquele refúgio doméstico.
3 Das recém-chegadas, a que nos pareceu menos experiente adiantou-se para a menina em oração. Controlava-se, dificilmente. Tremia, ao enxugar o pranto silencioso. Inclinou-se para o leito, como qualquer mãe desventurada e aflita da Terra, quando teme acordar um ser querido…
4 Embora sem elucidações prévias, não nos era lícito alimentar qualquer dúvida. Aquela, era a jovem do retrato que Marita conservava, em imagem, nas telas do pensamento. Aracélia, amparada pela doce afeição de venerável amiga, ali estava, diante de nós! Mãe amorosa, vinha talvez de muito longe para acudir às angústias da filha… 5 Enternecendo-nos, a pobre mãe ajoelhou-se para beijar-lhe os cabelos… E, oh! Segredos insondáveis da Providência Divina!… Quem conseguirá definir com palavras humanas a essência do amor que Deus situou nas entranhas maternas?!… A dama inclinou-se, muito de manso, e abraçou-a, com ternura à maneira de planta que se fechasse sobre a única flor que lhe nascera…
6 A castigada menina acalmou-se, de súbito. Adivinhando a visita pela qual suspirava, alijou a tensão, percebendo-se mentalmente ocupada pela presença da genitora, cujos traços tentava, afetuosa, lembrar e reconstituir.
4. Outro quadro, entretanto, superpôs-se, comovedor.
2 Aracélia, que orava e chorava em profundo silêncio, buscava em pensamento outra mulher, cuja evocação lhe renovava as energias.
3 A mãe desencarnada via-se pequenina, junto da lavadeira singela que a trouxera, na reencarnação última, para o teatro da vida humana. Identificava-se criança, agarrada à saia daquela moça doente, que mergulhava as pernas no rio para ganhar o pão… Tão fundo atingia a acústica da memória, que chegava a escutar o ruído daquelas mãos miúdas, esfregando as peças ensaboadas… Recolhia-lhe, de novo, o olhar meigo, em que lhe pedia paciência… Calada, na areia, por vezes esperava, esperava, depois que a mãezinha lhe repunha o corpo frágil, à curta distância, a fim de atender ao serviço… E rememorava o enlevo e o júbilo que sentia, quando os braços maternos a retomavam, para fazê-la dormir, ao som do velho estribilho, a que se acostumara no lar de telha vã…
4 De olhos parados, como se buscasse, além, no espaço infinito, o colo agasalhante que o tempo arrebatara, assumiu nova posição, colocando a cabeça da jovem no próprio regaço e, emocionando-se até às lágrimas, qual se tivesse nos lábios aqueles lábios de mãe, humilde e enferma, que jamais esqueceria, Aracélia, em pranto resignado, cantou suavemente diante de nós:
5 Lindo anjo de meus passos,
Descansa, meu doce bem;
Dorme, dorme nos meus braços,
Enquanto a noite não vem.
Dorme, filhinha querida,
Não chores, encanto meu;
Dorme, dorme, minha vida,
Tesouro que Deus me deu…
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6 Qual se fora repentinamente magnetizada, Marita caiu em pesado sono.
Isso feito, a senhora, que tutelava a companheira, atraiu-a brandamente de encontro ao peito, no manifesto propósito de consolá-la e, segurando-a, falou-nos, triste:
— Irmãos, nossa Aracélia ainda não está em condições de amparar a filha.
7 E, ajuntou, entre gentil e desapontada:
— Perdoem-nos a interferência. Nós, as mães, em certas dificuldades, nada mais temos que alguma velha canção para dar aos nossos filhos!…
8 Em seguida, retirou-se, sustendo Aracélia, que se lhe refugiara nos braços, soluçando…
5. Ainda não nos refizéramos da emoção, quando vimos Marita, em Espírito, afastar-se do corpo denso, guardando a inquietação da criança que anseia inutilmente pelo calor materno… 2 Qual ocorre, porém, à maioria das criaturas encarnadas, no Plano físico, mostrava lucidez oscilante, insegura… Cambaleou no quarto e, percebendo eu que Neves se dispunha a arrimá-la, sustive-lhe o impulso, fazendo-lhe sentir que a nossa intervenção direta poderia frustrar-lhe os desejos e que, a fim de prestar-lhe auxílio eficiente, era mister deixá-la à vontade, sob vigilância discreta, de modo a examinar-lhe as necessidades mais íntimas.
3 Sucedeu, quase que de imediato, o que não prevíamos.
Esfumaram-se os arroubos da filha saudosa, esmaeceram-se atitudes infantis, a menina de Aracélia desaparecera e ressurgiu nela a personalidade feminina, estuante e clara.
4 A moça não nos via. Guardava, a mente nebulosa que caracteriza os pequeninos ainda tenros, incapazes de particularizar as impressões, quando se transferem de lugar; entretanto, qual lhes acontece, quando ao reterem ideias fixas, quais sejam o brinquedo ou a guloseima, concentraram-se-lhe todos os pensamentos num ponto só: Gilberto.
5 Queria ver Gilberto, ouvir Gilberto.
Semelhantes impulsos a se lhe conglomerarem na cabeça, repetidamente emitidos, galvanizavam-lhe a vontade, revestindo-lhe o pensamento de uma certa clareza, que a favorecia, porém, tão só na direção dos seus anseios de mulher. 6 Essa penetração parcial como que lhe conferia agora seguro apoio íntimo, e Marita, figurando-se-nos senhora de si, conquanto absolutamente presa ao desejo ardente em que se obstinava, largou o aposento e, descendo os largos trechos da escadaria que contornava o elevador, deixou para trás o enorme edifício, qual sonâmbula, magnetizada pelos próprios reflexos.
7 Seguimo-la, atentos, não obstante confiando-a à própria discrição.
Cabia-nos estudar-lhe os ímpetos extrovertidos, consultar-lhe as inclinações. Não tivemos, todavia, qualquer dificuldade para adivinhar-lhe o rumo.
8 Em tempo reduzido, a filha adotiva de Cláudio alcançou a residência de Nemésio, que já se nos fizera conhecida.
9 Na certeza instintiva de quem se endereça a determinada pessoa, pelos recursos do olfato, sem atender a quaisquer convenções de forma e número, avançou casa a dentro, acalentando a imagem de Gilberto, que lhe substancializava o pensamento dominante.
10 Impulsionada pelas percepções indefiníveis da alma, demandou amplo dormitório, localizado nos fundos da moradia, e, sem que nos fosse possível avaliar, de pronto, a resolução de garantir-lhe a liberdade, a fim de analisar-lhe as reações, sobreveio o choque doloroso.
Naturalmente sobressaltados, apenas conseguimos ampará-la pela retaguarda.
11 Entrando no quarto, Marita surpreendeu Gilberto nos braços da irmã, e bradou, estarrecida:
— Canalha! Canalha!…
12 Aquelas imprecações, entretanto, nem de longe atingiram o jovem par, completamente absorto na permuta de gratificações afetivas.
13 Neves e eu não trocamos palavra. Precipitamo-nos, automaticamente, para a menina atribulada, intentando anular-lhe a agitação convulsiva.
14 Mais alguns minutos e despertou no corpo denso, obrigando-nos a pensar numa pequena fera aguilhoada, retornando à gaiola. Descerrando as pálpebras, vagarosamente, denotava no olhar a feição dos loucos, quando relaxam os músculos em seguida a perigoso acesso de fúria. Tateou, espantada, a fronte suarenta. Fez luz, com fome de realidade física. Atarantada, sentou-se para fixar as paredes, com mais segurança, e certificar-se de que se achava no leito e no lar.
15 A pouco e pouco, readquiriu a confiança, acalmou-se, refazendo energias; no entanto, acusava uma espécie de tranquilidade constrangida e amarga.
16 Pesadelo? — Indagava-se, aterrada, — ou quem sabe os padecimentos simultâneos lhe acarretavam crises de loucura?
17 Doía-lhe a cabeça, sentia-se desajustada, febril.
Marita regressara ao agasalho físico, sob pressa demasiada, sem que nos fosse possível adotar qualquer providência para anestesiar-lhe a memória.
18 Retinha no pensamento particularidades do quadro visto e ouvido, e encarcerada, de novo, entre as impressões superficiais dos sentidos corpóreos e a noção da verdade profunda, que não lograva apalpar, entrou em pranto agoniado, para somente dormir, com relativa calma, aos clarões do dia.
André Luiz