1. Qual acontece entre os homens, no Mundo Espiritual que os rodeia, sofrimento e expectação esmerilam a alma, disciplinando, aperfeiçoando, reconstruindo…
2 Enquanto envergamos a veste física, habitualmente imaginamos o paraíso
das religiões encravado para lá da morte. 3 Sonhamos o apaziguamento integral
dos sentidos, o acesso à alegria inefável que anestesie toda lembrança
convertida em chaga mental. 4 No entanto, atravessada a fronteira de cinza,
eis-nos erguidos à responsabilidade inevitável, ante o reencontro da
própria consciência.
5 Uma vida humana, a continuar-se naturalmente no Além, assume, assim,
a forma de partida, em dois tempos distintos. 6 Diferem campos e vestimentas;
entretanto, a luta da personalidade, de um renascimento a outro na Terra,
afigura-se laborioso prélio em duas fases. 7 Anverso e reverso da experiência.
O berço inicia. O túmulo desdobra. 8 Com raríssimas exceções na regra,
somente a reencarnação consegue transfigurar-nos de modo fundamental.
9 Deixamos no esquife o casulo mirrado e transportamos conosco, na mesma
ficha de identificação pessoal, para outras Esferas, os ingredientes
espirituais que cultivamos e atraímos.
10 Inteligências em evolução na eternidade do espaço e do tempo, os Espíritos
domiciliados na Moradia Terrestre, em abandonando o invólucro de matéria
mais densa, assemelham-se, figuradamente, aos insetos. 11 Larvas existem
que se retiram do ovo e revelam-se na condição de parasitos, enquanto
que outras se transformam, de imediato, em falenas de prodigiosa beleza,
ganhando altura.
12 Encontramos criaturas que se afastam do estojo carnal, entrando em
largos processos obsessivos, nos quais se movimentam à custa de forças
alheias, ao lado de outras que, de pronto, se elevam, aprimoradas e
belas, a Planos superiores da evolução. 13 E entre as que se agarram profundamente
às sensações da natureza física e as que conquistam a sublime ascensão
para estágios edificantes, no Grande Além, surge a gama infinita das
posições em que se graduam.
14 Emergindo na Espiritualidade, após a desencarnação, sofremos, a princípio,
o desencanto de todos os que esperavam pelo céu teológico, fácil de
granjear.
15 A verdade aparece por alavanca renovadora.
16 Padecendo ainda espessa amnésia, relativamente ao passado remoto, que
descansa nos porões da memória, somos então defrontados por velhos preconceitos
que se nos entrechocam no íntimo, tombando despedaçados. 17 Suspiramos
pela inércia que não existe. 18 Exigimos resposta afirmativa aos absurdos
da fé convencionalista e dogmática que reclama a integração com Deus
para si só, excluindo, pretensiosamente, da Paternidade Divina, os que
não lhe comunguem a visão acanhada.
19 De semelhantes conflitos, por vezes terríveis e extenuantes, nos recessos
da mente, muitos de nós saímos abatidos ou revoltados para extensas
incursões no vampirismo ou no desespero; 20 a maior parte dos desencarnados,
porém, a pouco e pouco se acomoda às circunstâncias, aceitando a continuidade
do trabalho na reeducação própria, com os resultados da existência aparentemente
encerrada no mundo, à espera da reencarnação que possibilite renovação
e recomeço…
2. Essas ponderações afogueavam-me o pensamento, reparando a tristeza e o cansaço do meu amigo Pedro Neves, devotado servidor do Ministério do Auxílio. n
2 Partilhando expedições arrojadas e valorosas em atividade benemérita,
ainda não lhe víramos hesitações quaisquer. 3 Veterano de empreendimentos
socorristas, jamais entremostrara desânimo ou fraqueza, por mais opressivo
se lhe evidenciasse o peso de compromissos e obrigações.
4 Advogado que fora, na existência última, caracterizava-se por extrema
lucidez, no exame dos problemas que as eventualidades do caminho apresentassem.
5 Sempre denodado e humilde; agora, porém, enunciava sensíveis alterações
de comportamento.
6 Soubera-o com breves encargos, na Esfera física, para
atender, de modo mais direto, a necessidades de ordem familiar, cuja
extensão e natureza não me houvera sido possível perceber.
7 Desde então, mostrava-se arredio e desencantado, copiando o feitio de companheiros recém-chegados da Terra. 8 Isolava-se em funda reflexão. Fugia à conversação fraterna. Queixava-se disso ou daquilo. E vez por outra, em serviço, denotava lágrimas que não chegavam a cair.
9 Ninguém ousava sondar-lhe o sofrimento, tal a fibra moral em que se lhe exprimiam as atitudes.
10 Provocando, porém, algumas horas de desafogo, num banco de jardim, busquei habilmente lançá-lo à extroversão, alegando dificuldades que me preocupavam. 11 Referi-me aos descendentes que deixara no mundo e às inquietações que me causavam.
12 Pressentia-lhe na tristeza a presença de lutas domésticas a lhe torturarem a alma, quais ulcerações em recidiva, e não me enganei.
13 O amigo absorveu a isca afetiva e desenovelou os sentimentos.
14 A princípio, falou vagamente das apreensões que lhe assomavam ao espírito agoniado. Aspirava a esquecer, alhear-se; no entanto… A retaguarda familiar no mundo lhe infligia dolorosas reminiscências difíceis de extirpar.
15 — É a esposa quem o aflige, assim tanto? — Aventurei, procurando localizar o carnicão da mágoa que lhe abria as comportas do pranto silencioso.
16 Pedro fitou-me com a postura dolorida de um cão batido e respondeu:
— Há momentos, André, nos quais será preciso biografar-nos, ainda que superficialmente, para vascolejar o pretérito e extrair dele a verdade, somente a verdade…
17 Meditou, algo sufocado por instantes, e prosseguiu:
— Não sou homem que me deixe governar por sentimentalismos, embora aprecie as emoções pelo justo valor. Além disso, a experiência, desde muito, me ensinou a raciocinar. 18 Há quarenta anos moro aqui e, há quase quarenta anos, a esposa compeliu-me a absoluto desinteresse do coração. 19 Deixei-a quando a mocidade das energias físicas lhe estuava no sangue, e Enedina, compreensivelmente, não pôde sustentar-se a distância das exigências femininas.
20 E prosseguiu esclarecendo que ela se associara a outro homem, num segundo casamento, entregando-lhe seus três filhos por enteados. 21 Esse novo marido, entretanto, arredou-a completamente de sua convivência espiritual. Homem ambicioso, senhoreou os cabedais que ele ajuntara, logrando multiplicá-los imensamente, à força de astúcia em arrojadas empresas comerciais. 22 E agiu com tanta leviandade que a esposa, dantes simples, se apaixonou pelas comodidades demasiadas, gastando o tempo terrestre em prodigalidades e tafulices, até que se rojou às derradeiras viciações nos desvarios do sexo. 23 Observando o esposo em aventuras galantes, de modo permanente, na posição de cavalheiro rico e desocupado, quis desforrar-se, estabelecendo para si mesma, desordenado culto ao prazer, mal sabendo que apenas se transviava, em lamentáveis desequilíbrios.
24 — E meus dois filhos, Jorge e Ernesto, ludibriados pelo fascínio do ouro com que o padrasto lhes comprava a subserviência, enlouqueceram no mesmo delírio do dinheiro fácil e se animalizaram a tal ponto que nem de leve guardam qualquer traço de minha memória, não obstante serem atualmente negociantes abastados, em idade madura…
25 — A esposa, no entanto, ainda se encontra no mundo físico? — Arrisquei, cortando a pausa longa, para que a explicação não esmorecesse.
26 — Minha pobre Enedina voltou, há dez anos, abandonando o corpo pela imposição da icterícia, que lhe apareceu por verdugo invisível, evocado pelas bebidas alcoólicas. 27 Fitando-a, edemaciada, vencida, ensaiei alarmado todos os processos de socorro à minha disposição… 28 Atemorizava-me a perspectiva de vê-la escravizada às forças aviltantes a que se jungira sem perceber; ansiava retê-la no corpo de carne, como quem resguarda uma criança inconsciente em disfarçado refúgio. 29 Entretanto, ai de mim! Colhida por entidades infelizes, às quais se consorciou levianamente, em vão procurei estender-lhe algum consolo, porquanto ela mesma, depois de desencarnada, se compraz na viciação, tentando a fuga impossível de si própria. Não há outro recurso senão esperar, esperar…
30 — E os filhos?
— Jorge e Ernesto, hipnotizados pela riqueza material, para mim fizeram-se inabordáveis. Mentalmente, não me registam a lembrança. Intentando captar-lhes cooperação e simpatia, o padrasto chegou a insinuar que não seriam meus filhos e sim dele próprio, através de união com minha esposa, ao tempo de minha experiência terrestre, o que Enedina, infelizmente, não desmentiu…
31 O companheiro esboçou um sorriso amarelo e considerou:
— Imagine! Na carne, o medo é comum, à frente dos desencarnados e, em meu caso, fui eu quem se afastou do ambiente doméstico, sob sensações de insopitável horror… 32 Ainda assim, a bondade de Deus não me arrojou à solidão, em se tratando da ternura familiar. Tenho uma filha de quem jamais me separei pelos laços do espírito… Beatriz, que deixei na flor da meninice, suportou pacientemente as afrontas e conservou-se fiel ao meu nome. Somos, assim, duas almas, na mesma faixa de entendimento…
33 Pedro enxugou os olhos e acrescentou:
— Agora, com quase meio século de existência entre os homens, presa embora ao carinho que consagra ao esposo e ao filho único, prepara-se Beatriz para o regresso… Minha filha vem atravessando os derradeiros dias terrenos, com o corpo torturado pelo câncer…
34 — Mas, atormenta-se você por isso? A ideia do reencontro pacífico não será, antes, motivo para alegrar-se?
— E os problemas, meu amigo? Os problemas do grupo consanguíneo? 35 Por muitos anos, estive à margem de todas as tricas do navio familiar… Fizera-me ao oceano largo da vida… Agora, por amor à filha inesquecível, sou compelido a topar, com espírito de caridade, a irreflexão e o descaramento. Estou inapto, desambientado… Desde que me postei à cabeceira da doente querida, vejo-me na condição do aluno debilitado pela expectativa de erros constantes…
36 Dispunha-se Neves a prosseguir, mas urgente chamado de serviço nos impeliu à separação e, conquanto diligenciando acalmá-lo, despedi-me, sob o compromisso de irmanar-me a ele, nas tarefas de assistência à enferma, de modo mais intenso, a partir do dia seguinte.
André Luiz
[1] Organização de “Nosso Lar”. — Nota do Autor espiritual.