1 O cavalheiro de renome e brilho,
Quarenta e dois dezembros de existência,
Tinha consigo um filho,
Irrequieto rapaz de vinte primaveras…
2 Viúvo, ele encontrara uma jovem bonita,
De maneiras sinceras,
Com quem se reuniria em casamento…
Mas conduzindo o filho de visita
Ao lar da noiva, em doce entendimento,
Eis que o rapaz por ela se apaixona
E, moço inteligente,
Ante a afeição que lhe transborda à tona
Do coração ardente,
Dá-se, de todo, à treva que o invade…
E, tão astuto quanto desumano,
Friamente executa um lamentável plano
De indescritível crueldade…
3 Notando, em certo dia, o pai acometido
Por resfriado leve,
Ministra-lhe o rapaz um forte entorpecente,
O genitor caído,
Em tremendo torpor, delira estranhamente,
E, de dose a outra dose, parecia
Mais doente e cansado, a cada novo dia.
4 O rapaz busca a jovem para vê-lo
E a moça foge amedrontada,
Fitando o descontrole e o desmazelo
Daquele que não mais conseguiria
Conceder-lhe migalha de alegria
Da ventura sonhada…
5 O resto da ocorrência
Qualquer pessoa pode imaginar:
O fazendeiro se afastou do lar,
Quase que inconsciente,
E, recolhido a um pensionato
Para enfermos da mente,
Muito longe de casa,
Eis que todo o equilíbrio se lhe arrasa,
Ante um texto legal que o destitui
Da regência de tudo o que possui.
6 O filho conseguira ilhá-lo em supremo desgosto,
O pai tanto reclama e tanto se tortura,
Que apresenta, rebelde e descomposto,
Um quadro indiscutível de loucura.
Não se descuida o moço… Mês a mês,
Envia ao pensionato o justo numerário
Para o custeio necessário
Das despesas do pai
Que deixara de vez..
7 Tempo vem, tempo vai
E, ao termo de dois anos,
De pesados e rudes desenganos,
Certa noite, o doente
Abandona a pensão e foge sem destino…
8 O jovem na cidade interiorana
Finalmente conquista
A ex-noiva do pai que acredita, inocente,
Na morte imaginária
Do homem bom que adorara, ternamente,
Através de uma carta simulada
Que o moço sedutor lhe expõe à vista.
9 O casal prosperou, vivendo agora
Na metrópole grande, em formosa mansão,
Um filho se lhe fez a base da união
E marido e mulher viviam, de hora à hora,
Em constante alegria…
De lembranças do pai nenhum sinal
Que lhes turvasse a vida
No azul do céu mental…
Festas, viagens, luxo, fantasia…
O menino — seis anos de ternura
Vive ligado à ama que o não solta,
Ambos sob a atenção de um guarda que os escolta,
Era o garoto um gênio de doçura…
10 Quase todos os dias,
Quando descia ao pátio ajardinado,
Via a criança um velho embriagado
A sorrir-lhe, por trás das grades de um portão.
— “Uma esmola, meu filho” — ele pedia,
Mostrando o rosto magro em desconsolo.
Ia o menino à ama e, em breve, aparecia,
Trazendo-lhe, feliz, grande porção de bolo.
— “Deus te abençoe, meu anjo!…” — O velho abençoava.
11 Curioso, o pequeno perguntava:
— “Onde é que você mora?”
O pedinte dizia: — “Aqui por fora,
Moro no Sítio da Calçada…”
A ama, compreendendo a alusão do mendigo,
Endereçava aos dois um olhar piedoso e amigo,
Sabendo com bondade e simpatia
Que a cena, no outro dia,
Seria renovada.
12 Certa noite em que os pais se afastaram mais cedo
Para uma longa festa em chácara distante,
Dois ágeis salteadores
Prendem o guarda num recanto escuro,
Depois, transpondo o muro,
Penetram na mansão… A dupla alcança
O aposento onde jaz a tranquila criança…
13 A ama é silenciada com mordaça,
O pequeno a gritar, segue sob a ameaça
Das mãos armadas dos sequestradores;
A dupla arrasta, a esmo, o menino que chora,
Mas, atingindo os três o portão de saída,
Alguém surge com fúria desmedida,
Um homem que se agarra ao pequeno indefeso
E clama em alta voz: “Sou da polícia!…
Sereis mortos, ladrões!… Meu carro aceso
Chegará neste instante…”
14 Ouvindo aquela voz tonitroante,
Um deles grita ao outro: — “Apague o velho tonto…
Depois, é dar no pé, nosso carro está pronto!…”
Enquanto o homem semi-embriagado
Guarda o pequeno ao lado,
Ouve-se um tiro e o pobre tomba e geme…
15 Despertam servidores,
Distanciam-se os dois sequestradores.
16 No piso do jardim, faz-se enorme alarido.
A governanta chega… O velho é conhecido,
É o mendigo que ali espera esmola,
O mesmo que a criança alivia e consola…
17 Nisso, o casal regressa à casa.
Um empregado descreve o acontecido
Enquanto a jovem mãe abraça o filho amado,
O dono da mansão busca ver o ferido,
Depois, grita ao mordomo:
“Temos aqui um herói, um amigo leal,
Ele salvou meu filho, o anjo que conheço…
Quero agora salvar-lhe a vida, a qualquer preço,
No melhor hospital…”
18 Mas o homem caído
Nele pousou o olhar profundo
E vendo-se a morrer, de segundo a segundo,
Disse, calmo e sereno:
“Meu filho, agora é tarde…
Se algo posso pedir, guarde o nosso pequeno…”
Depois, como quem vê nas Telas do Invisível
Acrescentou com a voz a elevar-se de nível:
— “Maria Clara veio… É a despedida…
Devo hoje segui-la em outra vida…
19 Ouvindo ali o nome
Da mãezinha que, há muito, falecera,
O dono da mansão, mais pálido que a cera,
Bradou, atormentado:
— “Quem é você? Alguém do meu passado?”
20 O velho sente o fim,
Estirado a gemer, no piso do jardim…
E, no esforço supremo a que se atira,
Na tremenda exaustão, em que ele expira,
Diz, ainda, no pranto que lhe cai:
— “Graças aos Céus, cumpri o meu desejo,
Ver você junto a mim é a luz maior que eu vejo…
Deus o abençoe, meu filho!… Eu sou seu pai!…”
Maria Dolores
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