Desde a juventude, Chiquito Rosa dedicou-se à comercialização do gado zebu. Tudo começou em 1915, quando, deixando Uberaba, sua terra natal, foi ao Rio de Janeiro para continuar seus estudos… Mas, seus planos mudaram completamente com a chegada ao porto da então Capital brasileira de um navio carregado de gado zebu, vindo da Índia.
Desse momento em diante, entregou-se de corpo e alma ao comércio do zebu. Ao longo de décadas, percorreu o Brasil de ponta a ponta, divulgando as raças indianas, passando a ser considerado “o maior mascate de zebu de todos os tempos”. E sempre foi chamado a participar de várias comissões técnicas julgadoras de animais indianos, em famosas exposições.
Ainda em vida física foi homenageado por Joaquim Prata dos Santos, em longo artigo publicado no Jornal da Manhã (Uberaba, Minas, 07/11/1976), do qual transcreveremos alguns tópicos:
“Espírito arejado, depois de ajudar seu cunhado Armel Miranda, na comercialização do gado importado, entendeu que deveria conquistar outros mercados (…) levando tourinhos para o Rio Grande do Sul. (…) fez uma tentativa de comercializá-lo na Argentina (…) Posteriormente dirigiu-se ao Piauí, onde foi o pioneiro a introduzir o zebu naquele Estado (…) De grande visão e muita fibra foi à busca de novos mercados no Norte do país. (…) teve a oportunidade de ser um dos primeiros a embarcar para a Bahia, um lote de 10 tourinhos, num avião de carga (…) Com a saúde abalada e uns negócios adversos foi, pouco a pouco, reduzindo os seus ganhos até chegar a uma situação de pequenos recursos financeiros.”
Com sérios problemas cárdio-renais, Chiquito foi obrigado a acamar-se, assim permanecendo durante seis anos, até os últimos dias de sua vida material.
Porém, todo esse tempo de sofrimento foi bem aproveitado, conforme suas próprias palavras, escritas dois anos após seu desenlace, pela psicografia de Chico Xavier: “Acredite que os meus melhores tempos foram aqueles de permanência, quase que obrigatória, dentro de casa. (…) A doença prolongada me intimou ao curso intensivo dos conhecimentos que já lhe felicitam o espírito. (…) Se não fosse os nossos diálogos (…) não posso calcular o atraso em que me acharia em caminho.”
Assim, agradecido, refere-se aos conhecimentos espíritas que sua devotada esposa — nossa confreira D. Sílvia — transmitiu-lhe em reuniões de estudo doutrinário-evangélico, realizadas no lar, em quase todos os dias. Essa foi a bendita iniciação para a vida nova, que Chiquito soube aproveitar, e agora, em carta afetuosa e rica de informações, narra sua valiosa experiência, útil para todos nós.
Ei-la:
CARTA DE CHIQUITO ROSA n
1 Querida Sílvia, n estou aqui, seguindo a você mesma, no caminho que a sua fé me trouxe. Por isso mesmo, rogo a Jesus nos abençoe e fortaleça nos deveres a cumprir.
2 O tempo parece deslizar sobre asas que nos arrancam até mesmo de nosso íntimo, de modo a buscarmos progresso e luz, queiramos ou não.
3 Hoje, noto que o sofrimento, por si, não é obstáculo, e sim desafio, a que nos empenhamos na busca de mais vida.
4 Acredite que os meus melhores tempos foram aqueles de permanência, quase que obrigatória, dentro de casa, já que foi esse processo de que se utilizaram os nossos Amigos Espirituais para retirar-nos do campo de nós mesmos para o aprendizado que em mim se revelava tardio.
5 A doença prolongada me intimou ao curso intensivo dos conhecimentos que já lhe felicitam o espírito. Conversando, aprendia de sua palavra o que se me fazia necessário para conquistar novos horizontes mentais.
6 A verdade é que se não fossem os nossos diálogos, nos quais você tomava a palavra com paciência, a fim de esclarecer-me o coração de novato em assuntos espirituais, não poderia calcular o atraso em que me acharia em caminho. Entretanto, o seu cuidado para com a minha gradativa preparação para a vida em que me vejo agora, me serviu por luz acesa em meu próprio íntimo, para vencer todos os entraves espirituais que, a princípio, pareciam insuperáveis.
7 Sentia-me de corpo desfalecente, mas o Espírito, em mim mesmo, se fortalecia, cada vez mais, para a jornada que acabei realizando a contragosto. Digo assim, porque, até hoje, não conheço pessoa alguma que estime a aproximação da morte com a alegria de quem descobre um continente novo e continua a viver.
8 Também fui a vítima dos prejuízos e tabus de variada espécie que pretendem arrojar-nos em fracasso e desilusão.
9 Quando, porém, amanheceu aquela doce véspera de Natal, percebi que minha vida se alterara por dentro. n Ouvia chamados da mamãe Zulmira n como a convidar-me para uma festa de paz. Compreendi tudo, embora buscasse nada lhe dizer, porque me surpreendia ralado de vacilações e de dúvidas, mas entendi que o fim do corpo abatido não se faria esperar.
10 Realmente, foi o meu pai Tobias Rosa, no momento em que me confiava às suas preces mais íntimas, que me surgiu à frente e avisou-me, francamente, que o momento era chegado. Mesmo assim, lutei resistindo o aviso, porquanto me sentia demasiado forte para render-me às sugestões ouvidas e partir no rumo do desconhecido.
11 As minhas condições se agravavam, e, não apenas o meu pai me ocupava o campo da mente, outros antigos companheiros de Uberaba me apareciam como que a insistirem para que me decidisse para a viagem. Ainda assim, o receio de deixá-la sozinha me desagradava e me compelia a pensar em providências diversas… 12 O cerco fraterno prosseguia, e se conseguia algumas pitadas de sono era para sonhar que me achava a distância no Sul do País, ou nas regiões do Norte, no tentame de colocar o zebu no lugar de destaque que eu supunha estivesse a merecer… 13 Em poucos instantes me revia em Cruz Alta, ou na travessia da fronteira com a Argentina, naquele sonho de mascatear, conduzindo o nosso gado à destinação que nos merecia… Acordava de imediato e me via; ali, prostrado no leito sem coragem de arredar o pé para a travessia de distâncias, fosse como fosse.
14 Tudo prosseguia nesse descontrole dolorido, quando vi o Armel Miranda, n o amigo, junto do qual me abalancei a pedir a Deus me libertasse do corpo imprestável. Só então soube que o companheiro aceitara trabalho junto de nós, a fim de acompanhar as atividades da Ginga, bastante doente e abatida. n Mas não apenas o Armel me encorajou a decisão, também o nosso Antônio Martins Borges, n o João Prata, n o Joaquim Telésforo n e o David Carvalho n se colocavam junto de mim, apontando-me os caminhos novos que me competia percorrer.
15 Louvei a Deus pela presença daqueles nobres amigos do Centro Allan Kardec, que me servia de escola e ponto, junto ao refazimento de forças de que me sentia necessitado, e dormi à feição da criança que recebesse o brinquedo de minha própria libertação, perante a ocorrência impropriamente considerada como sendo a morte.
16 A querida mamãe Zulmira amparava-me a cabeça e, assim, esperei ansiosamente o instante de me desinstalar do corpo esquelético que me retinha. Ouvi as suas preces em meu favor e rendi graças a Jesus.
17 As nossas reuniões, ainda que não as frequentasse de todo, me haviam habilitado de algum modo para a Grande Mudança e me vi, pela primeira vez, separado do veículo que me transportara no mundo por tantos anos.
18 Agradeço a toda a família espiritual do nosso grupo de corações fraternos e peço a Deus a fortifique para que o seu apostolado prossiga, sem intervalos, diante de seu próprio futuro.
19 Querida Sílvia, compreendi que somente possuía o que colocara em minha própria alma e, desde então, me esforço por integrar a equipe dos irmãos que operam no bem e cooperam em favor do bem, junto à sua mediunidade e à sua fé.
20 Continue ajudando-me com a sua boa vontade e não se esqueça de que eu preciso ainda e demais do seu interesse para o meu conhecimento maior.
21 Perdoe-me se demorei tanto na compreensão e aceitação dos fatos correlacionados com a Verdade. Saiba, no entanto, que devo à nossa casa de fé e esperança a minha iniciação para a vida nova.
22 Agradeço a você por todas as manifestações de boa vontade para com o seu velho doente, e espero corresponder ao seu carinho e à sua confiança.
23 Reconheço que ainda me vejo enfraquecido para manejar o lápis com segurança; no entanto, prometo voltar a escrever com mais desenvoltura como é de desejar.
24 Agradeça por mim a todos os companheiros e irmãs de nossa casa pelo muito que me proporcionaram em matéria de auxílio.
25 E, na expectativa de retornar a fim de tomar-lhe a atenção para minhas novas notícias, sou o esposo e colaborador reconhecido, e companheiro sempre mais agradecido,
Chiquito
Francisco Rosa e Silva. n
NOTAS E IDENTIFICAÇÕES
1 - Carta psicografada por Francisco C. Xavier, em reunião pública do GEP, Uberaba, Minas, na noite de 29/01/1983.
2 - Sílvia — D. Sílvia Oliveira Rosa, esposa, reside em Uberaba, à Rua Delta, 63. Em 1966, fundou o Centro Espírita Allan Kardec, localizado de frente à sua casa. Espírita atuante, preside a instituição até os nossos dias. O casal não teve filhos.
3 - Quando, porém, amanheceu aquela doce véspera de Natal, percebi que minha vida se alterara por dentro. Ouvia chamados da mamãe Zulmira (…) compreendi tudo, embora buscasse nada lhe dizer (…) foi o meu pai que me surgiu à frente e avisou-me, francamente, que o momento era chegado. — Chiquito desencarnou muito lúcido, no Natal de 1980. E, de fato, nada contou à esposa a respeito desta abençoada assistência espiritual, preparatória para o seu desenlace.
4 - Mamãe Zulmira (…) meu pai, Tobias Rosa — Seus progenitores: Tobias Antônio Rosa e Zulmira Ribeiro Rosa. Seu pai, desencarnado em 26/11/1917, “foi o grande jornalista que marcou época nesta cidade, com a sua A Gazeta de Uberaba, um verdadeiro líder do jornalismo interiorano.” (J. P. dos Santos, em artigo já citado.)
5 - Armel Miranda — Seu cunhado, falecido em 1947, “um dos uberabenses que se encontra na galeria de honra e nos anais da história de Uberaba, como um dos pioneiros e um dos mais arrojados importadores de zebu.” (J. P. dos Santos, idem.)
6 - Ginga, bastante doente e abatida — Apelido de Lídia Rosa Miranda, sua irmã e viúva de Armel Miranda. Na época referida, estava muito enferma.
7 - Antônio Martins Borges — Fazendeiro e comerciante dos mais destacados de Uberaba, faleceu em 1966.
8 - João Prata — Sogro da irmã de Chiquito, Délia Rosa Prata. Faleceu em 1942.
9 - Joaquim Telésforo — Joaquim Telésforo Prata, amigo, faleceu em 1937.
10 - David Carvalho — Farmacêutico, um dos fundadores do Hospital Beneficência Portuguesa de Uberaba, faleceu em 1965.
11 - Francisco Rosa e Silva (Chiquito) — Nasceu e desencarnou em Uberaba, a 29/03/1898 e 25/12/1980, respectivamente. Além de sua atuação marcante no comércio do gado zebu, também tornou-se muito conhecido como esportista. Foi um dos fundadores do Uberaba Sport Club e, quando presidente desta agremiação, em 1920, adquiriu um terreno e nele construiu o Estádio Boulanger Pucci. Assim, a Rua Chiquito Rosa, no Bairro das Mercês, é uma justa homenagem pública à sua memória.
Hércio Arantes