O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

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Renúncia — Emmanuel — 2ª Parte


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Reencontro

1 Um ano depois da morte de Damiano, houve na casa humilde do burgo de São Marcelo  †  grande e desconcertante surpresa.

Orientado pela paróquia de São Jaques,  †  Carlos Clenaghan, ansioso e comovido, bate à porta de Madalena Vilamil. Nos primeiros meses que se seguiram à morte do tio, resolvera abandonar a batina, apesar do ressentimento dos colegas. Jamais pudera esquecer Alcíone, jamais conseguira manter um equilíbrio entre o dever e os impulsos da mocidade. Enquanto recebia as longas cartas de Damiano, a palavra amorosa do tutor lhe sofreava as preocupações tormentosas; mas, tão logo se viu sem o preservativo dos seus conselhos, entrou a meditar resoluto na mudança de situação. Anelava um lar, ardentemente, jamais renunciaria à afeição de Alcíone, não conseguia sopitar o desejo de ser pai e esposo feliz. Após algumas lutas em Ávila,  †  desprezara o apelo dos superiores hierárquicos e, sem dar qualquer satisfação do feito aos parentes irlandeses, desligara-se do voto sacerdotal, cheio de esperança no futuro. Seu primeiro cuidado foi correr a Paris,  †  por buscar a noiva amada.   2 Como o receberia ela? Conhecia-lhe a pureza dos princípios e a formosura do caráter cristão. Suspeitava que lhe não sancionaria a decisão, atento o conceito que fazia da fé; mas, faria o possível por demonstrar-lhe o seu amor imenso, convencê-la-ia com instâncias afetuosas, tanto mais quanto ela, agora, já não poderia contar com a assistência paternal de Damiano, que a morte arrebatara, e no lar, pelas notícias que recebia frequentemente em Castela-a-Velha,  †  arcava com muitas dificuldades, em vista da moléstia incurável da genitora. Talvez os trabalhos do mundo lhe houvessem modificado a opinião, relativamente ao enlace para uma vida tranquila e risonha. Oferecer-lhe-ia o braço protetor, voltariam à Espanha, onde pretendia continuar, em Ávila ou Valladolid,  †  dedicando-se ao comércio. Ébrio de esperanças, Clenaghan erguia castelos maravilhosos na mente exaltada. Edificariam um lar venturoso, Madalena Vilamil seria também uma segunda mãe, aprimorariam a educação de Robbie e teriam filhinhos amados. Impossível que ela relutasse, quando não desejava senão a suprema felicidade de ambos, diante de Deus e dos homens.


3 Enlevado nestes sublimes projetos, esperou que alguém viesse atender. Depois de alguns instantes de espera em que o coração lhe palpitava descompassado, surgiu a figura de Robbie, que lhe caiu nos braços afetuosamente. Conduzido ao interior, foi enorme a alegria da filha de D. Inácio ao receber as carinhosas saudações do amigo, e não menor a surpresa quando ele falou da sua renúncia eclesiástica.

Depois de longa troca de ideias e impressões afetuosas, referentes à vida em Castela e à enfermidade que aniquilara Damiano, o ex-padre aproveitou certas observações mais íntimas e sentenciou:

— Como bem pode avaliar, D. Madalena, eu nunca poderia esquecer Alcíone, e ciente de que o seu coração de mãe carinhosa compreende e justifica os meus propósitos, devo dizer que aqui estou para reconduzi-las aos caros penates… A senhora não gostaria de regressar a Castela para revivermos nossos tempos mais venturosos?…

Aquelas palavras eram pronunciadas com tanto carinho que a senhora Vilamil sentiu lágrimas de reconhecimento a lhe aflorarem dos olhos.

— Não sei se Alcíone me perdoará haver procedido em desacordo com o seu ponto de vista, mas tenho para mim que procedi nobremente. Fui lógico, sincero, coerente, creia. De que me valeria continuar, sem a vocação imprescindível? Desde que a senhora saiu de Ávila, debalde procurei repouso para o espírito atormentado. A ânsia de construir um lar tornou-se-me obsessão permanente. Às vezes, quando erguia a hóstia consagrada, assustava-me com as sugestões da natureza… Enquanto o padre Damiano me escrevia as suas exortações, eu me sentia fortalecido para prosseguir na batalha silenciosa; mas verifiquei, depois, que seria inútil combater o impossível…


4 A pobre enferma recebia a confissão com tristeza inexplicável, e, tendo o rapaz notado que o coração maternal se encontrava embaraçado para responder, prosseguiu:

— Se lhe for possível, ajude-me neste passo… Quem sabe recuperará a saúde, regressando comigo? Se lhe prouver, poderemos residir nas cercanias de Ávila, organizaremos uma chácara como aquela onde a senhora viveu longos anos e que está sempre em suas recordações!…

Falava como filho afetuoso, pondo no olhar e na voz toda a ternura do coração bem formado. Depois de ligeira meditação, a senhora Vilamil ponderou, com acento triste:

— Sou muito grata à tua lembrança! Ah! quem me dera voltar para esperar a morte, contemplando o céu da Espanha! A paisagem da Guadarrama  †  nunca sairá de minh’alma…


5 E depois de enxugar o pranto da evocação amarga, voltava a dizer:

— Esta cidade parece marcar as horas mais terríveis do meu destino. Aqui em Paris conheci, na mocidade, a pobreza mais dura, experimentei a ironia e a crueldade de pessoas ingratas, perdi meus pais carinhosos, abracei meu esposo pela última vez! Agora, neste mesmo lugar, encontrei a paralisia completa, vi morrer o padre Damiano em situação quase miserável!… Desde que aqui cheguei, jamais pude arredar-me do leito para uma visita ao túmulo dos meus inesquecíveis genitores. Não sei se estarei condenada a também exalar aqui o derradeiro suspiro… Por meu gosto, devo confessar francamente, estou ansiosa por voltar à Espanha; entretanto, preciso ouvir Alcíone que me tem sido verdadeiro anjo guardião nos dias amargos, de necessidade e sofrimento. Como mãe, não me sinto com ânimo para induzi-la a casar-se. Minha filha, antes de tudo, tem sido para mim uma conselheira respeitável. Não seria justo obrigá-la a aceitar minhas ideias, mas podes crer que eu receberia o assentimento dela com o maior contentamento. Voltei à França no propósito de conseguir recursos para de demandar as plagas Americanas, mas, logo que o padre Damiano apresentou os primeiros sintomas da enfermidade do peito, perdi as esperanças!…


6 Clenaghan estava mais esperançado. Sentia-se plenamente garantido, no tocante às concessões maternas. O sincero desabafo de Madalena encorajava-lhe as pretensões. A pobre senhora, extremamente abatida, inspirava-lhe simpatia e enternecimento filiais. Tal qual acontecera à genitora, a filha de D. Inácio viu chegar, devagarinho, o mal do coração. Suas noites estavam agora povoadas de aflições repetidas. Além das pernas inchadas pela continuidade da mesma posição no leito, sentia-se presa de outros sintomas alarmantes. Debalde, Alcíone e Luísa preparavam tisanas e aplicavam fomentações, em cansativas vigílias. A senhora Vilamil piorava sempre. Esse o motivo pelo qual as observações de Carlos lhe falavam tão fortemente ao coração.

— Pois bem — acrescentou o sobrinho de Damiano, mais animado —, Deus há de permitir que a senhora encontre a meu lado a tranquilidade merecida.

— Alcíone decidirá — acentuou a enferma resignada. — Até que minha filha se pronuncie, nada poderei dizer em caráter definitivo.

A conversação continuou afetuosa, permanecendo Clenaghan em São Marcelo, à espera de Alcíone, que regressava habitualmente à noitinha.


7 Mal começavam a brilhar no céu os primeiros astros, a filha de Cirilo voltou da sua faina diária.

A surpresa foi demasiado chocante para sua alma sensível. Cumprimentou o rapaz, muito pálida, na atitude de íntima e penosa expectativa. Naquela hora, o pupilo de Damiano, entestando com a sua superioridade moral, sentia-se acovardado para as explicações indispensáveis. A princípio, a moça julgou que ele tivesse vindo a Paris no só intuito de visitar o sepulcro do tio querido, prestando-lhe a derradeira homenagem e valendo-se de alguma autorização especial para levar a efeito tão longa excursão, sem a batina comum. Mas, em breves minutos, Carlos, não sem enleio, notificava-lhe a verdade. Estupefata, Alcíone indagou:

— Como pudeste cometer semelhante desvario?

O rapaz, algo confuso, tentava esclarecer:

— Supus que seria melhor assim… Era impossível continuar. O coração inquieto, desde que vieste, nunca me permitiu reaver a paz interior. Pedi a Deus me inspirasse a melhor solução, supliquei ardentemente do céu um recurso, até que o propósito de renunciar ao compromisso eclesiástico de todo me empolgou.


8 No íntimo, a filha de Cirilo estava profundamente comovida com aquela espontânea confissão de fraqueza, mas, certa de que o dever espiritual deve ser cumprido até ao fim, alcançou energias para observar:

— Pediste, mas não oraste. Como te sentiste forte para esquecer as obrigações assumidas, sem considerar a questão do proveito próprio? Será isso a renúncia cristã? Não creio. Declaras que imploraste uma inspiração do Céu e resolveste o problema distanciando-te do compromisso; mas eu não posso admitir, em nenhuma hipótese, que Deus nos dispense dos seus trabalhos; nós é que por vezes ouvimos o apelo da natureza inferior e abandonamos o serviço divino, em prejuízo de nós mesmos…

— Não desconheço, Alcíone — aventou humilde — que minha atitude inesperada desagradaria muito ao teu bondoso coração. Entretanto, o que aconteceu é humano e peço me perdoes pelo muito bem que te desejo… Esquece esta falta, dize que me compreendes e serei feliz!…


9 A nobre criatura, pelo tom carinhoso com que Clenaghan falava, compreendeu que ele desejava reatar os antigos laços afetivos. Experimentou sincero desejo de lhe tomar as mãos, ternamente, confessando os seus anseios e saudades. Ele agora estava livre. Observando-o, naquela atitude amorosa, recordou as jovens da sua idade, que se apresentavam a cada passo, em Paris, exibindo os seus eleitos. Muitas vezes, quando acompanhava Susana a certas festividades públicas, vinha-lhe à mente Clenaghan, ao contemplar os pares venturosos que perambulavam nas praças e jardins. E sentia, então, frio no coração. A própria Beatriz, aos quinze anos, começava a receber as visitas afetuosas do noivo. A filha de Madalena fitou o rapaz, demoradamente, e teve ímpetos de ceder ao primeiro impulso, mas a consciência lhe dizia que resistisse, que era indispensável atender a Deus acima de quaisquer contingências mundanas, e que ainda não havia cumprido todos os deveres, para que pudesse pensar na sua felicidade pessoal.


10 Muito sensibilizada pela atitude humilde, penitencial do bem-amado, retrucou:

— Não me suponhas capaz de condenar-te por coisa alguma desta vida. Apenas lamento o que sucedeu, porque é razoável te deseje no caminho da fidelidade a Jesus, até ao fim.

Sinceramente embaraçado, o ex-eclesiástico não sabia como reatar a explanação dos seus projetos. A senhora Vilamil, no entanto, acudiu a socorre-lo, advertindo;

— Carlos, minha filha, faculta-nos o ensejo de regressarmos a Espanha.

— Sim — prosseguiu o rapaz —, agora estou liberto e apto para reorganizar a vida, mas nada quero fazer sem te ouvir. Desde que nos vimos, compreendi que Deus não me poderia destinar outro coração feminino, além do teu. Tomo, portanto, tua mãe, como testemunha da minha afeição pura e devo dizer que vim a Paris só para buscar-te. Estou certo de que acreditas no meu devotamento e de que nos uniremos para sempre, eternamente felizes sob as bênçãos de Deus.


11 A jovem contemplou-o ofegante, e como se sentisse em hora das mais difíceis de toda a sua vida, implorou a inspiração de Jesus e silabou:

— É impossível!…

Clenaghan empalidecera. Adivinhava nos olhos da escolhida que a sentença não lhe provinha do coração.

— Por quê? — indagou exaltado — o que poderá impedir nossa ventura na Terra? Serei assim tão detestável? Desde que te ausentaste tenho vivido como louco. A saudade e a inquietação começaram a nevar-me os cabelos. Voltemos a Castela,  †  Alcíone! Levaremos tua mãezinha por dar-lhe uma vida tranquila e feliz!…

Tais palavras ecoavam nos ouvidos da jovem como doce harmonia de uma felicidade inatingível. Contemplou a genitora, que parecia aguardar sua decisão, ansiosamente, mas recordou também o palacete da Cité,  †  onde seu pai não era menos doente da alma, arrostando absconsos pesares. Lembrou as reuniões evangélicas em que Cirilo Davenport ouvia as lições de Jesus e as suas explicações como se estivesse a receber suaves mensagens do Céu; considerou as transformações de Susana, a mudança de Beatriz, o enternecido carinho do velho Jaques… Seu coração estava sufocado. Fitou o escolhido, longamente, e esclareceu em voz pausada:

— Não posso, Carlos! A felicidade tem base no dever cumprido. Ainda não terminei minha tarefa de filha, como queres que assuma novas obrigações?!…


12 Isto, ela o dizia desfeita em lágrimas O pupilo de Damiano, todavia, longe de conhecer todas as angústias e sacrifícios daquela alma heroica, tomou as suas palavras alusivas ao dever cumprido como acusatórias da sua renúncia eclesiástica e objurgou:

— Queres dizer que ainda não concluí minhas tarefas sacerdotais e desejo assaltar novo plano de obrigações?

Acabrunhada por se ver incompreendida, Alcíone reviu mentalmente a figura do padre Damiano, relembrou a sua franqueza, que chegava a ser quase áspera, e certificou-se de que necessitava de muita energia para defender-se dignamente naquele lance. Recobrando a serenidade íntima, em virtude da poderosa confiança em Cristo, explicou-se com bondade sincera:

— Que não terminaste o serviço começado, é inegável; mas semelhante circunstância, Carlos, já entrou no domínio de minha compreensão. Somos agora como duas criaturas as quais se reservou uma herança de ventura imortal, sob a condição de executarem determinadas tarefas. Infelizmente, não pudeste chegar à conclusão da tua. Toda vez que fugimos ao desígnio sagrado de Deus, erramos no labirinto da indecisão e da amargura. Não te doerá o coração arrebatar-me aos deveres que o Pai me destinou? Consideras, então, o amor como coisa tão frágil que se despedace num momento, apenas porque não nos foi dada a satisfação passageira de um capricho sentimental? Onde colocas a divina união das almas? Nossa concepção deve ir muito além da alucinada impressão dos sentidos…


13 O sobrinho de Damiano e a enferma ouviam-na, profundamente admirados. Alcíone fizera-se de uma palidez transfiguradora, parecendo haurir as palavras em fonte estranha à esfera material. Ouvindo tantas alusões a compromissos, o ex-padre supôs que suas obrigações espirituais não ultrapassavam o acanhado círculo familiar do burgo de São Marcelo e objetou humildemente:

— Curvo-me às tuas exortações, mas, podes crer que não abandonei a batina tão só pela inquietude dos desejos humanos. É verdade que sou um homem carregado de fraquezas, mas também tenho um coração. Se é inegável que encareço ardentemente a tua companhia, não é menos certo que te desejo tomar sob os meus cuidados afetuosos. Que te prenderá em Paris, se te vejo sobrecarregada de trabalhos mortificantes? De um lado, vejo D. Madalena presa a um leito de dor, de ti segregada durante o dia e, ao demais, carecida de outros ares; de outro lado, o nosso Robbie necessitando educação. Entre os dois, tu, abatida e inquieta para dar conta exata dos teus encargos. Não será mais justo atenderes aos meus apelos? Tua genitora confugiria aos teus constantes e diretos cuidados e Robbie tomaria o lugar de primeiro filho em nosso lar. É impossível que Jesus nos negue a bênção a propósitos tão elevados. Sairias então do labirinto de vicissitudes e responsabilidades de governanta, não precisarias pensar nas viagens diárias a Cité nos dias de chuva, nem te atribulares em casa alheia por tua mãe distante, quando a tempestade se forma no céu! Se puderes, esquece o meu passado de sacerdote e pensa, ao invés, que, com tua inspiração permanente, alcançarei novas forças para ser um homem digno nas lutas da vida. Esquece o mal que eu tenha praticado pelo muito de bem que poderei fazer com o teu auxílio constante. Medita na tranquilidade futura de D. Madalena, que está definhando a olhos vistos!… Será que nenhum dos meus argumentos te poderá convencer?


14 Tocada novamente pela doce humildade do querido postulante, Alcíone chorava. Ele jamais poderia aquilatar a intensidade da sua angústia. Ela não poderia afastar-se de Paris sem lacerar a consciência. Jesus não a conduziria, sem uma finalidade, à casa paterna, onde era tratada como filha, não obstante o título de serva com que se apresentava. Em profundas reflexões, lobrigou no olhar da genitora sincero desejo de se afastar de Paris para sempre. Adivinhava-lhe os pensamentos mais secretos. Longos instantes passaram, em que se sentia atormentada por terríveis indecisões. Reportou-se às últimas palavras de Damiano, quando lhe recomendara procurasse o socorro de Clenaghan nos transes mais difíceis. Firme, porém, no propósito de manter ilibada a consciência até ao fim das lutas humanas, enxugou as lágrimas e reafirmou:

— Não posso… Sei o que mamãe tem sofrido em tão longos anos de martírio, físico e moral, e espero que Deus nos estenda a mão, para que suas dores sejam aliviadas; no entanto, agora, não me é possível deixar Paris…

A filha de D. Inácio esboçou um gesto de resignação, respeitando, sem discutir, a decisão da filha. Não assim, o pupilo de Damiano, que deixou transparecer no olhar uma profunda desconfiança.

— Ah! compreendo agora — disse desapontado —, não podes sair de Paris! Louco que fui, presumindo que a vida aqui seria a mesma de Ávila. As atrações parisienses modificam as criaturas…


15 Notando-lhe a profunda tristeza, a jovem Vilamil experimentou indefinível aflição por se declarar abertamente, revelar a natureza dos sagrados deveres que a escravizavam prisioneira, mas a verdade dolorosa lhe morria no coração. Ferida nos mais nobres sentimentos, encontrou forças para murmurar:

— Não deves fazer semelhante juízo a meu respeito…

E muito enleada sob o olhar indagador do rapaz, que a envolvia em atmosfera de humilhação, concluía:

— Ouve, Carlos! Quando houver cumprido meus deveres, quando minha consciência permitir que pense em mim, irei procurar-te onde estiveres! Guardaremos, eu e mamãe, toda a nossa gratidão e confiança em ti. Não importa hajas renunciado ao ministério sacerdotal, porque, então, quando me sinta livre, poderemos iniciar nova e venturosa tarefa.

Clenaghan, entretanto, ouviu-a quase friamente, com o ciúme que lhe envenenava o coração. Conturbado pelas sugestões inferiores, cada afirmativa de Alcíone, agora, lhe parecia diferente. Teve a impressão de que ela se deixara levar em Paris pelas promessas de algum homem criminoso e inconsciente. As palavras “quando me sinta livre” toavam-lhe dolorosamente. Sentia-se estranho a tudo e não pôde murmurar senão evasivas ligeiras, até ao momento em que se despediu para voltar ao hotel.

Alcíone compreendeu o que se passava com ele, mas, ainda que amargurada, chamou Luísa para os serviços de cada noite, relativos ao tratamento de sua mãe e cumpriu, rigorosamente, o programa do lar. Madalena Vilamil se envolvera num véu de tristeza silenciosa. Então, fazendo o possível por dissimular as amarguras íntimas, a jovem procurou desfazer o ambiente pesado, pedindo a Robbie para tocar alguma coisa, enquanto lia à enferma certas páginas de sua predileção.


16 No dia seguinte, pela manhã, saiu de casa como de costume, a fim de esperar o carro do Sr. Davenport, na pequena praça, defronte da igreja mais próxima. Um carro ia-lhe no encalço, discretamente, sem que ela o suspeitasse. Era Carlos que, informado na véspera por Madalena, das regalias e atenções que a filha desfrutava na casa onde servia resolvera não deixar Paris sem uma prova da singular transformação que injustamente atribuía à criatura eleita. Cada pormenor da conversa com a senhora Vilamil, no dia anterior, gravara-lhe indelével no coração. Por que motivo ela não esperava o carro à porta de casa? Não havia necessidade de caminhar quase um quilômetro para encontrar a viatura. Preocupado com essa primeira observação, reparou a carruagem garbosa que Alcíone tomou, a breve trecho. A suntuosidade do veículo pareceu-lhe excessivamente inadequada para a jovem humilde dos idos tempos de Ávila. Seguiu-a, mais ou menos de perto, até que chegou ao destino. Viu-a descer e receber com evidentes mostras de satisfação o abraço acolhedor de um homem que a esperava junto do rico portão de acesso ao jardim. Considerou o palacete de linhas nobres, poucos passos distante do seu carro de aluguel e, dando ouvidos ao despeito venenoso, concluiu que Alcíone não era mais aquela criança meiga e carinhosa que entregava costuras nas ruas empedradas da cidade onde se haviam encontrado e embebido de sublime e santo idealismo. Perplexo, alimentando mil ideias errôneas, deliberou fugir no mesmo dia, da capital francesa, demandando o Havre, onde não lhe seria difícil o retorno à Espanha.

Mandando tocar de volta ao burgo de São Marcelo, procurou despedir-se de Madalena.

Quando anunciou a intenção de regressar, a pobre senhora não ocultou a surpresa amarga:

— Não posso crer que volte tão depressa — afirmou com bondade.

— Não se preocupe por isso — exclamou o rapaz fingindo-se tranquilo —, não vim com a intenção de demorar-me. Tenho alguns amigos que me esperam no Havre, por estes dias.


17 A resignação da enferma, aliada ao seu profundo abatimento, inspiravam-lhe sincera preocupação, mas não podia suportar o ludibrio de que se julgava vítima.

— Alcíone vai sentir muito a tua partida súbita.

Carlos sentiu que o coração se lhe descompassara no peito e respondeu:

— Pode ser que não. De qualquer modo, porém, vejo-a satisfeita e isto me conforta o espírito. Muito desejava reconduzi-las à nossa terra distante, mas reconheci que a providência não é mais possível, por importuna.

Madalena esboçou um gesto triste, murmurando:

— Tenho desejado, ardentemente, sair de Paris, mas minha filha discorda e eu creio que terá razões ponderosas para isso.

— Mas, que razões seriam essas? — perguntou Clenaghan exaltado.

— Desconfio que o meu médico desaconselha a medida, porquanto, há muito, venho apresentando sintomas de grave afeção cardíaca… Vejo que Alcíone me oculta esse detalhe, carinhosamente, mas, devo dizer, isso nada me assusta. Tenho sofrido demais para disputar uma longevidade improdutiva.


18 Carlos não concordou, intimamente atribuindo as palavras da pobre senhora a simples fruto do carinho maternal. Depois de longa pausa, desejando reforçar a nociva atitude mental, perguntou:

— Alcíone foi sempre bem tratada na casa onde trabalha?

— Sim — confirmou Madalena, convicta. — Lutamos terrivelmente, nos primeiros dias de Paris, visto haver adoecido o padre Damiano, mas, desde que minha filha se empregou na Cité, nunca mais sofremos qualquer necessidade. Com o seu salário, não somente foram atendidas as despesas domésticas, como também tivemos a alegria de saber que nada faltou ao nosso velho amigo.

— E a senhora está informada a respeito dessa família que lhe contratou os serviços de governanta.

— Trata-se de um rico negociante de fumo — informou a interpelada, atenciosa. n

— E a senhora nunca visitou essa gente?

— Nunca, até agora. De há muito venho desejando visitar a casa que acolheu Alcíone como filha; entretanto, estou à espera de melhoras que me permitam faze-lo.


19 O rapaz calou-se. Quis manifestar à enferma a venenosa desconfiança que o consumia, exteriorizar todo o rancor que lhe afluía ao espírito despeitado, mas a doce resignação de Madalena Vilamil, presa ao leito naquele estado, inspirava-lhe respeito sagrado. Era preciso ter um coração bem cruel para tirar a derradeira partícula de esperança e tranquilidade daquela alma sofredora de mãe sacrificada.

Com estranho brilho nos olhos o sobrinho de Damiano voltou a dizer:

— Onde está Robbie? Quero abraçá-lo antes de partir.

A filha de D. Inácio percebeu nessas palavras a funda contrariedade que absorvia o interlocutor, compreendeu quanto lhe magoava a atitude firme de Alcíone, com relação ao desejado regresso à Espanha, e esclareceu conformada:

— A esta hora Robbie deve estar na igreja de São Jaques de Passo Alto,  †   em trabalhos de limpeza que padre Amâncio lhe confiou.

E como notasse que Clenaghan se dispunha a partir em deplorável estado de espírito, a pobre senhora aduziu:

— Não te vás querendo mal a Alcíone. Carlos! Podes crer que minha filha nunca te esqueceu a bondade fraternal e a sublime afeição. É bem possível que, intimamente, ela deseje partir em busca da felicidade, junto do teu coração, mas, talvez por minha causa sacrificasse os mais caros desejos. Conheço-lhe o espírito de sacrifício. Sou testemunha silenciosa das suas lutas nesta casa, onde sua dedicação é o nosso manancial de bênçãos!…


20 O ex-sacerdote, porém, estava obcecado pelo ciúme. Trazia óculos negros nos olhos exacerbados da imaginação e não prestou atenção maior ao que lhe fora dito, continuando inalteradas as próprias suspeitas. O olhar fixo, como que alheio ao ambiente, despediu-se de Madalena, que o recomendou à proteção divina. Horas depois, abraçava Robbie, pela última vez, tomando rumo norte, de regresso a Ávila, profundamente desditoso.

À noite, Alcíone foi informada da precipitada deliberação do rapaz.

— Carlos pareceu-me bastante abatido e desesperado — afirmava a genitora — e lastimei sinceramente vê-lo em tão penosa conjuntura.

A jovem, com expressão de indefinível tristeza, acentuou:

— Jesus há de proporcionar-lhe ao coração aquilo que presentemente não lhe podemos dar.

— Qual será o motivo — perguntou a enferma com interesse — que leva o pobre Clenaghan a sofrer tanto? Ele é moço, talentoso, cheio de possibilidades e, no entanto, daqui saiu como se fora um pária da sorte!…

— A senhora não presume — aventou Alcíone com um gesto significativo — seja isso a primeira consequência da sua renúncia ao voto contraído? Clenaghan, para nós, é criatura muito amada, mas, nem por isso, podemos isentá-lo da rede de amarguras e tentações que constringe a criatura quando se evade ao mais sagrado dos deveres. Continuo a pensar que uma consciência pura é o melhor tesouro do mundo. Nas melhores posições terrenas o homem será positivamente um desventurado, sem o refúgio desse santuário interior, onde Deus nos fala, consolando e esclarecendo, em sua infinita misericórdia!…


21 A doente pôs-se a meditar nessas verdades sublimes, enquanto a filha, adivinhando a onda de preocupações acerbas que afogava o ser amado, retirava-se para orar em silêncio, de modo a diminuir as próprias amarguras.

Dentro das vibrações poderosas da sua fé, Alcíone pareceu consolada, buscando nas tarefas ingentes de cada dia o olvido das penas amargas.

Não se haviam passado muitos dias do incidente, quando Madalena Vilamil começou a apresentar sintomas de acentuada fraqueza. A moléstia do coração não se limitava, agora, a sintomas vagos e intermitentes. Surgiram as dispneias noturnas, que lhe reavivavam a lembrança dos derradeiros dias de sua mãe, na velha casa de Santo Honorato. Face macilenta, angustiada, contemplava demoradamente a filha, como a lhe anunciar o fim próximo. Passava as noites a falar das experiências da vida, das necessidades de Robbie, da gratidão devida à boa serva, dando a entender que se preparava corajosamente para a grande jornada. Alcíone tudo ouvia recalcando as lágrimas de amor filial. Compreendia a gravidade do mal e dissimulava o prognóstico médico, revelando-se confiante em melhoras futuras. Ainda assim, não conseguia arrebatar a carinhosa genitora à invariável tristeza que lhe ensombrava a fronte.


22 Uma noite em que as tisanas caseiras não atenuavam a aflição dolorosa, Madalena chamou a filha e falou francamente:

— Alcíone, algo me diz ao coração que me reunirei a teu pai, muito breve…

— Ora, mamãe — exclamou a jovem, solícita —, combatamos a tristeza! Sejamos confiantes, Deus ouvirá nossas preces.

E dosando cada palavra com o mel das consolações carinhosas, continuava:

— Logo que a senhora puder viajar, voltaremos à Espanha. Notei que a senhora entristeceu-se quando recusei a proposta de Carlos; mas, tratando-se da sua saúde, a coisa é outra. Pense que teremos novamente um clima restaurador e não se preocupe com os desgostos que aqui passou. A mão de Jesus nos traçará o roteiro.

Em lhe ouvindo tais palavras de conforto e piedade filial, tomou a mimosa mão da filha e selou-a com um beijo, acrescentando:

— Não te mortifiques, filhinha! Jamais duvidarei ou perderei a confiança em Deus; antes continuarei tudo esperando do Pai misericordioso que nos acompanha lá dos Céus; mas julgo, também, que a resistência física, após mais de vinte anos de enfermidade, vai chegando a termo… Estas dispneias não podem enganar.


23 Depois, fixando o olhar enternecido nos olhos da filha afetuosa, prosseguia, melancólica:

— Não ficarás zangada comigo se te disser que estou muito saudosa. Desde que Cirilo se foi, nunca mais senti o prazer da vida… Reconheço, contudo, que o Senhor tem sido magnânimo, concedendo-me socorros inesperados. Basta lembrar que meu pobre esposo morreu no mar, enquanto eu me via socorrida num oceano de lágrimas, por teu amor. Tua afeição tem sido meu santo consolo, iluminado refúgio sobre a Terra… Jesus te concederá tudo o que te não pude dar na minha pobreza de mãe!…

A moça ouvia-lhe os conceitos carinhosos, de coração sufocado. Nunca sua mãe lhe parecera tão triste, jamais se queixara assim, em qualquer outra circunstância passada. Então, começou a soluçar, mas a enferma, afagando-a com ternura, prosseguiu:

— Não chores… Para esta hora nos temos preparado desde a tua infância… Não sei em que dia o relógio da eternidade terá marcado meu derradeiro alento neste corpo; mas nós ambas estamos cientes de que a veste carnal é também uma ilusão. Estou certa de que Jesus me restituirá a companhia de Cirilo, para sempre. Cercar-te-emos, então, do nosso afeto e te esperaremos num mundo mais feliz, onde não haja lágrimas, nem morte. Se pudesse, ficaria contigo, a fim de partirmos juntas; mas, algo me diz que não poderei realizar este desejo. Não fossem tua afeição e as necessidades de Robbie, creio que partiria sem qualquer outro laço… Tenho, no entanto, a consciência tranquila, embora não me possa furtar a estas preocupações! Se morrer de um instante para outro, confio o nosso Robbie aos teus cuidados!… Ele é uma criatura caprichosa, difícil de educar, mas não cabe repetir recomendações que bem conheces.


24 Diante de tantas resignação, Alcíone sentia certa dificuldade para iludir a triste realidade, no intuito de confortar o coração materno, mas, ainda assim, lidando por mostrar-se esperançada, falou com brandura:

— Confiemos em Deus, acima de tudo! A senhora, mamãe, tem estado muito sozinha, tem-se entregado em excesso aos pensamentos de morte. Sinto que nossa casa necessita de alegria. Reanime-se para nós. Vou pedir uma licença temporária para ficar a seu lado, e com um saldo de vencimentos do que tenho a receber, vamos comprar um cravo. Quem sabe a música, que a senhora sempre cultivou, não virá melhorar nosso ambiente?

A senhora Vilamil tentou um sorriso apagado, obtemperando:

— Teus sacrifícios já são muitos.

— Amanhã mesmo, pedirei aos pais de Beatriz que me ajudem na aquisição. Não há de ser difícil.

Recordaremos nosso antigo repertório espanhol e creio que irá sentir muita satisfação em reviver essas lembranças.

— Sim, certamente que nos sentiremos transportadas a Castela,  †  onde, tantas vezes, encontramos a felicidade nas coisas mais simples…


25 Observando a consolação que o assunto produzia, a cândida Alcíone prosseguiu:

— Ah! como estou satisfeita por vê-la confortada com este projeto. Teremos muitas vantagens com essa compra. A senhora vai experimentar novo ânimo e Robbie, por sua vez, poderá ter minha cooperação, novamente, nos seus estudos domésticos. E depois, quando as suas melhoras se positivarem, pensaremos, seriamente, na mudança, à procura de melhor clima, onde a senhora possa ficar boa.

A enferma mostrou-se mais consolada com as palavras carinhosas da filha e considerou:

— Teu plano me reconforta pela ternura que traduz e rogo a Deus te abençoe tanta bondade. Agora, porém, quero fazer-te dois pedidos, dado as minhas preocupações.

A filha demorou nela o olhar inteligente e respondeu comovida:

— A senhora não deve pedir-me coisa alguma e sim mandar sempre.

— Pois desejaria — disse algo hesitante — que me conduzisses ao cemitério, a fim de orar no túmulo de meus pais, assim satisfazendo uma velha aspiração de minh’alma. Não poderei ajoelhar-me junto dos sepulcros, mas talvez consiga chegar até lá, carregada na poltrona, tal como quando visitei o padre Damiano pela última vez…


26 A moça não conseguia ocultar a impressão de penosa surpresa.

— A outra coisa que desejo — continuou confiante — é que tragas até aqui a senhora a quem serves e que tem sido tão generosa contigo, isso para que lhe peça maternal amparo à tua mocidade, caso eu morra mais cedo, como aliás pressinto.

Alcíone procurou não trair na face a estranha emoção que experimentava. Madalena pleiteava duas coisas inadmissíveis. Mas, longe de quebrar o padrão de tranquilidade da querida enferma, concordou nestes termos:

— Tão logo se encontre mais forte para viajar de carro, iremos ao túmulo de meus avós, mas, penso que mamãe não deve afligir-se por isso. Que é, mamãe, a sepultura senão um monte de cinzas? Quanto a genitora de Beatriz, hei de traze-la a São Marcelo na primeira oportunidade. Espero, porém, que a senhora esteja descansada na fé em Deus. Repousemos a mente na inesgotável bondade divina. É certo que temos muitas e grandes necessidades, mas o Altíssimo tem tudo para nos dar e somente espera saibamos compreender a sua misericórdia.

A enferma calou-se, conformada. A moça, no entanto, confiava-se a Jesus em preces fervorosas. Como solucionar o delicado problema? Não encontrava recursos para atender mentalmente à questão obscura, mas contava com o socorro do Cristo no momento oportuno.


27 No dia seguinte, um tanto acanhada, dirigiu-se a Cirilo, falando-lhe receosa:

— Sr. Davenport, espero não me leve a mal se lhe pedir um grande obséquio…

— Dize, confiante, minha filha! — respondeu o chefe da casa com inflexão afetuosa — Poderá dispor de mim em qualquer circunstância.

Ela esboçou um gesto de reconhecimento e continuou:

— É que minha mãe, apesar de doente, gosta muitíssimo de música e, de tempos a esta parte, noto-a excessivamente tristonha. Pensei então, em pedir-lhe um adiantamento sobre os meus ordenados, a fim de comprar um cravo de segunda mão. Creio que isso reavivará o ânimo da pobre enferma.

Cirilo Davenport ouviu-a comovidíssimo.

— Com muito prazer — respondeu, solícito — e se quiseres eu próprio me incumbirei da compra.

— Não, não — atalhou a jovem, temendo a informação do endereço —, o senhor não precisará ter esse incômodo. Padre Amâncio, em São Jaques, me fará esse favor. É pessoa entendida e não fará uma aquisição muito cara.


28 Cirilo contemplou-a edificado com aquelas reiteradas provas de humildade e concluiu:

— Esperarei, então, a conta das despesas e podes estar certa de que tenho nisso grande satisfação.

Ela ia referir-se ao plano de resgate, mas o interlocutor antecipou-se dizendo:

— Não penses em pagamento. Há muito que Beatriz me pediu um instrumento desses para que o guardasses em penhor de nossa amizade. Não será esta a ocasião de satisfaze-la?

Alcíone rejubilava-se de encontrar tamanha generosidade.

Não se passaram muitos dias e a casinha pobre, de São Marcelo, todas as noites se impregnava de melodias maravilhosas. A doente amada submergia-se em ondas de sonoridade divina, encontrando ternas consolações às penas diuturnas. Robbie também percebeu que sua mãe adotiva não estava longe do termo fatal. Nessa angustiosa perspectiva, imprimia ao violino acordes de profunda beleza, traduzindo saudade e sofrimento indefiníveis. Alcíone, a seu turno, mostrava-se incansável no carinho dispensado à enferma idolatrada. Cada noite eram recordadas velhas árias castelhanas, antigas músicas da juventude de sua mãe, que a filha de D. Inácio escutava entre lágrimas de profunda emoção. Para Madalena, a ternura dos filhos era uma gloriosa compensação do mundo aos seus martírios inomináveis de esposa e mãe.

— Tenho a impressão, minha filha — dizia com um sorriso de sincera conformação — que nossa casinha se transformou num templo. Estou quase convencida de que disponho, agora, da estação religiosa, da qual poderei partir para a vida espiritual.


29 A filha multiplicava as expressões confortadoras e as melodias cariciosas vibravam no ar, transportando a enferma a sublimes estâncias de puro gozo espiritual.

Semanas se passaram assim, contemporizadoras, até que um dia Madalena acusou astenia geral. Grandemente assustada, Luísa esperava por Alcíone com angustiosa ansiedade. Robbie, porém logo que chegou do trabalho, resolveu procurar o socorro do médico assistente. A enferma estivera desacordada alguns minutos e, em seguida, sucessivas aflições lhe causavam verdadeiro tormento.

À tarde, como de costume, Alcíone voltou ao lar, experimentando dolorosa surpresa com a gravidade do caso. Abraçou a mãezinha, mal podendo conter as lágrimas.

— Que foi isso, mamãe?

Percebendo a aflição que lhe transparecia do olhar afetuoso, a doente buscou tranquilizá-la:

— Creio que não estou pior!… Talvez seja alguma perturbação do estômago. Aliás, nunca me senti tão bem como nas últimas semanas.


30 O coração filial, porém, adivinhava naqueles olhos túmidos um esforço supremo para tranquilizá-lo. Ambas estavam convictas de que o fim se avizinhava. A jovem fez o possível para renovar-lhe as forças com palavras encorajadoras, murmurando em seguida:

— Suponho que, por estes dias, poderemos ir ao cemitério visitar o túmulo dos nossos entes caros, como a senhora deseja. Reanime-se, mamãe! Pense nos passeios que gostaria de fazer, pense na saúde e verá que as dores desaparecem.

Entretanto, naquele momento, era a genitora quem se esforçava por consolar a filha ansiosa.

— Ora, filhinha — objetava com um sorriso forçado —, que iria fazer ao cemitério? Não sei onde tinha a cabeça, quando pensei e desejei conhecer a sepultura de papai, visitando igualmente a de mamãe!… Com o correr dos dias, fui ponderando melhor e acabei compreendendo que era mesmo um capricho extravagante. Nossos amados não devem mesmo lá estar, envoltos em montes de lodo. Cheguei mesmo a sonhar com mamãe a elucidar-me da impropriedade do meu desejo, afirmando que seu coração está comigo, junto de mim, fortalecendo-me nas provações em curso…


31 Alcíone ouvia confortada e surpreendida. A senhora Vilamil fez uma pausa mais longa, devido à dispneia, e prosseguiu ofegante:

— Espero, porém, que Deus me ajude a realizar o outro desejo. Quando pensas que vamos ter a visita dos teus patrões?

Alcíone esboçou um gesto indefinível e asseverou:

— Os pais de Beatriz, segundo creio, não tardarão a vir…

— Ainda bem que assim é, pois quero agradecer-lhes o bem que nos têm feito, no desdobramento de nossas lutas em Paris.

A chegada do médico, em companhia de Robbie, interrompeu o diálogo.

O facultativo examinou a doente com minuciosa atenção, formulando conceitos otimistas que Madalena acolhia com melancólico sorriso, mas, ao retirar-se, chamou Alcíone em particular, afiançando-lhe gravemente:

— Apesar de nossos esforços e da tua valiosa dedicação, minha boa menina, tua mãe está chegando a termo de vida.

A moça não conseguia articular palavra, sufocada pela dolorosa surpresa, enquanto o velho esculápio prosseguia:

— Qualquer medicação não passará de paliativo destinado a manter-lhe uns restos de vitalidade. Pelos meus conhecimentos e longa prática, digo que ela poderá expirar de um momento para outro; mas, na melhor das hipóteses, não irá além de um mês…


32 Enquanto a desolada Alcíone enxugava as lágrimas discretamente, o médico procurava confortá-la, exclamando:

— Procura entregar o caso a Deus. Não te martirizes com a ideia de perde-la, porque a paralisia de tua mãe é um dos casos mais angustiosos que conheço, de há muitos anos, na minha clínica. D. Madalena tem sofrido heroicamente, não seria justo perturbar-lhe o coração nestes dias em que se prenuncia o termo de longos padecimentos…

Alcíone fitou-o reconhecidamente, murmurando:

— O senhor tem razão.

No dia seguinte, a jovem Vilamil chegou ao palacete da Cité, assomada de profunda tristeza. Olhos encovados, muito pálida, esperou que Susana se levantasse, e, quando a atividade doméstica entrou no ritmo habitual, chamou-a por obséquio, em particular, assim falando:

— Senhora Davenport, infelizmente a situação em que me encontro obriga-me a importuná-la com um pedido de licença por alguns dias. Creio que minha mãe não terá mais que um mês de vida… Ontem sofreu a primeira crise cardíaca mais grave, e o médico me declarou que suas horas estão contadas…


33 A filha de Jaques condoeu-se sinceramente da governanta de Beatriz, pela comoção e humildade com que lhe confiava a amargura do seu lar, e respondeu com interesse amistoso:

— Sem dúvida. Faço questão que permaneças ao lado de tua mãe, pelo tempo que for preciso. Não tens somente um irmão adotivo?

— Sim — disse a moça, desejando conhecer a intenção da pergunta.

— Neste caso, poderei combinar com Cirilo, e tua mãezinha, se julgares conveniente e útil, virá para nossa casa. Como sabes, temos muitas dependências desocupadas. Com isto não estou considerando a pausa das tuas obrigações, mesmo porque, há muito, pretendia oferecer-te alguma oportunidade de repouso no que concerne ao tratamento da enferma. De antemão, estou convencida de que a providência daria a Cirilo muito prazer. Aqui na Cité, os recursos são mais fáceis e sua mãe seria uma doente também nossa.


34 A filha de Madalena confortou-se com tamanha afabilidade, verificando o poder regenerador do Evangelho sobre aquela alma, e respondeu comovida:

— Pode crer, senhora Davenport, que minha mãe e eu lhe seremos eternamente reconhecidas pela lembrança amável; no entanto minha genitora não poderia deixar nossa casinha. Seria impossível transportá-la…

— Já que assim é — explicou Susana atenciosa —, levarás contigo uma de nossas criadas para ajudar no trabalho necessariamente aumentado nestes transes.

— Agradeço muito, senhora, mas nós temos uma velha criada de confiança, que se incumbe de todos os serviços. A senhora pode estar descansada.

Susana, porém, desejando externar, de qualquer modo, o desejo de ser útil, buscou uma centena de escudos, colocando-os nas mãos da governanta, a murmurar:

— Então, leve este dinheiro. Talvez sobrevenha alguma despesa imprevista.


35 Alcíone aceitou, emocionada, e, quando pretendia retirar-se, a dona da casa perguntou solícita:

— E o teu endereço? Antes que te vás, desejo sabe-lo, para que Beatriz lá chegue de vez em quando e nos traga notícias.

— Nossa casinha — esclareceu a filha de Madalena dissimulando o embaraço — não tem uma característica com que se possa identificar, mas a senhora pode ficar tranquila que eu aqui virei sempre que for possível e, no caso de qualquer ocorrência mais grave, não deixarei de mandar um portador.

Mais uma vez, Susana preocupou-se com as evasivas da moça, nesse particular, mas não fez qualquer objeção. Todos os familiares se interessaram pelo caso e procuraram expressar votos sinceros de solidariedade e feliz desfecho.

Alcíone afastou-se apressadamente para o arrabalde de São Marcelo, toda entregue a penosas cogitações. Observara em Susana sincero desejo de aproximar-se. Que aconteceria se os Davenport lhe descobrissem a residência? Infelizmente, o estado da genitora não lhe permitia ponderar a possibilidade de se retirarem para alguma aldeia distante. Rogava a Deus o socorro divino de sua bondade nas inquietantes expectativas que lhe assaltavam o espírito. Prometia a si própria voltar sempre à Cité, para desviar da segunda esposa de seu pai a ideia de uma visita a São Marcelo, cujas consequências seriam demasiadamente dolorosas para todos. De volta ao lar, verificara que a doente querida não obtivera qualquer melhora. Fez o possível para dissipar os pensamentos que a torturavam, entregando-se à tarefa de enfermeira carinhosa, com todos os desvelos do coração.


36 Os dias escoavam-se com expectativas atrozes. A senhora Vilamil alcançava apenas rápidos minutos de repouso, para voltar logo às dispneias angustiantes. De quando em quando, vinha o médico e esperançava a enferma com palavras amigas, meneando, porém, tristonhamente a cabeça, tão logo se via a sós com a filha, a comentar a situação.

A pobre moça não sabia como atender à complexidade dos problemas torturantes. De três em três dias, corria à Cité, onde, exibindo olhos fundos e considerável abatimento, procurava tranquilizar os Davenport. Ante as interrogações afetuosas de Cirilo, ou de Susana, alegava que a enferma estava melhor e mais forte, ansiosa por lhes desvanecer a intenção da visita.

A situação, porém, era outra. A filha de D. Inácio, ao fim de três semanas, apresentou os sintomas inequívocos da morte. O facultativo recomendou o derradeiro socorro da religião. Desfeita em lágrimas, seguida de Robbie que não sabia como disfarçar a imensa dor, Alcíone pediu a assistência do padre Amâncio, dadas as relações de amizade. Madalena Vilamil confessou-se, recebeu religiosamente as bênçãos da extrema-unção. O velho pároco de São Jaques do Passo Alto  †  dirigiu-lhe palavras de fé e consolação, que a nobre senhora recebeu com serenidade.


37 Mas, nada obstante a firmeza dos seus princípios religiosos, não conseguia eximir-se à mágoa da separação da filha e de Robbie, as duas afeições que lhe haviam sustentado a alma sofredora, por longos anos de provações atrozes. Naquela noite que se seguira às últimas providências religiosas, a agonizante parecia mais lúcida. Seus olhos haviam adquirido brilho diferente. Dizia entrever paisagens extraterrenas, que a criada tomava à conta de alucinações.

Enquanto Robbie soluçava baixinho, no quintal, Alcíone aproximou-se do leito e perguntou, como costumava fazer todas as noites:

— Mamãe, a senhora prefere agora a leitura?

A agonizante tinha as faces banhadas de suor. E enquanto a filha lhe enxugava a fronte, respondeu na sua aflição:

— Hoje, minha filha, gostaria que lesses o Novo Testamento, o capítulo da Paixão.  † 

Sufocando as impressões dolorosas, a jovem tomou o livro e leu vagarosamente, observando o profundo interesse maternal pela triste narrativa da passagem de Jesus pelo Horto.  † 


38 Nessa noite, por mais que se esforçasse, Alcíone não conseguiu fazer o comentário. Com inaudita dificuldade, continha as lágrimas que lhe bailavam à flor dos olhos. A enferma interrogou-a com o olhar muito lúcido, e ela respondeu beijando-a:

— A senhora hoje está fatigada. Minhas palavras poderiam incomodá-la… Além disso, quero preparar-lhe umas gotas calmantes para o sono necessário.

A agonizante pareceu conformar-se e perguntou:

— Onde está Robbie?

A jovem foi buscá-lo imediatamente. Instado por ela, o rapazinho enxugou o pranto, compôs a fisionomia como pôde e acorreu à cabeceira da mãezinha adotiva. Madalena deu-lhe a destra muito branca, que ele beijou enternecido; mas, notando-lhe o abatimento extremo, o nariz afilado pela dor da agonia, as unhas roxeadas, os olhos fulgurantes dos últimos lampejos, não pôde atender aos rogos da irmã e rojou-se de joelhos, a soluçar convulsivo. A senhora Vilamil deitou à filha um olhar de quem roga cooperação e, passando a mão descarnada e trêmula pela sua cabeça, perguntou:

— Por que choras assim, meu filho?


39 Alcíone procurava ergue-lo com delicadeza, mas Robbie, como que desejando desabafar com a enferma, que sempre o tratara com ternuras de mãe, murmurou em pranto:

— Ah! que será de mim se a senhora morrer?

— Que é isso, Robbie? — falou Alcíone com afetuosa energia — pois mamãe está doente e cansada e tu não tens pena de vê-la com tanta necessidade de dormir?!…

Madalena sorriu tristemente, mostrando que desejava consolá-lo, e disse com esforço:

— Deus é Pai, meu filho, e nunca nos separará em espírito… A morte aniquila o corpo, mas a alma é indestrutível… Não chores assim, porque essa atitude demonstra falta de confiança no Todo Poderoso…

— Sei que a senhora não me esquecerá — disse o rapaz comovedoramente — e que, se partir, pedirá por mim, lá no Céu… mas por que não morro em seu lugar, se vivo tão escarnecido neste mundo? Sem a senhora, como suportarei as ironias da rua e as sátiras ferinas daqueles próprios meninos confiados aos meus cuidados para os serviços da música, na igreja?


40 E vendo que Madalena olhava para a filha, como a inculcá-la sua substituta, para o futuro, Robbie reclamava em tom de lástima:

— Alcíone trabalha fora o dia inteiro, nunca terá tempo de ouvir-me!… Luísa não me pode compreender. Se a senhora se for, a casa para mim fica vazia, sem ninguém…

A filha de D. Inácio deixou escapar uma lágrima.

— Se Deus me chamar Robbie, lembra que aqui estarei guardando-te em espírito… Seguirei teus trabalhos com o mesmo interesse, cuidarei da tua saúde, dar-te-ei forças para ouvir os ditos ingratos do mundo, enquanto o Todo Poderoso for servido…

Alcíone avaliou a angústia materna e, abraçando-se com o irmão adotivo, observou:

— Vamos, Robbie! Estás muito nervoso. Luísa te levará um cordial, logo que te deites. Quem te disse que mamãe vai morrer? Não achas que é ingratidão atormentá-la com estes pensamentos lúgubres?

O rapaz atendeu e retirou-se amparado pela irmã, a esfregar nervosamente os olhos.


41 Alcíone regressou ao quarto da enferma para desmanchar-se em carinhos. De minuto a minuto, passava-lhe na fronte um fino lenço, enxugando o suor abundante. Em dado instante, Madalena Vilamil pareceu sossegar. À dispneia sucedia uma relativa serenidade. Em preces fervorosas, a filha observou, porém, que os olhos estavam demudados, qual se apresentam nas febres intensivas. A agonizante parecia delirar de alegria. Começara um período de perturbação, natural em muitos casos de desprendimento, no qual a senhora Vilamil não sabia se estava na Terra ou noutra região.

— Por que vos demorastes tanto, padre? — insistia em perguntar, dando a entender que falava a uma sombra.

— A quem se refere, mamãe? — inquiriu Alcíone impressionada.

— Padre Damiano aqui está… Não o vês?

E olhando, ansiosa, para um canto do aposento, a agonizante perguntava:

— Ah! — quem sois vós?

Mas, quase no mesmo instante, olhos desmesuradamente abertos, rematava:

— Minha mãe!… minha mãe!…


42 Alcíone acompanhava-lhe o pranto natural, rogando a Jesus lhes enviasse o socorro divino da sua misericórdia.

Depois de um minuto, a filha de D. Inácio voltava a dizer:

— Minha mãe veio interpretar, para nós, a leitura evangélica… Sim, todos nós temos um horto de agonias, que atravessaremos a sós, no esforço valoroso da fé… todos teremos um caminho doloroso e um calvário… mas, além de tudo isso… a criatura de Deus encontrará a ressurreição e a vida eterna…

A moça, que a ouvia entre lágrimas, não duvidou da visita espiritual de que era testemunha. Decorridos alguns instantes, sempre dando a entender que recebia a voz do invisível, a agonizante voltou a interpelar as sombras:

— E Cirilo, minha mãe? — por que não veio em sua companhia?

Os traços de Madalena iluminaram-se de contentamento.

— Amanhã? — bradou a enferma desvairada de júbilo.


43 Em seguida, misturando as impressões espirituais com as do Plano físico, dizia à filha, surpresa:

— Teu pai chegará amanhã! Como me sinto melhor, minha filha!… Nosso quarto está cheio de luzes! Minha mãe diz que chegou o tempo da minha cura e que partirei com ela, amanhã, ao entardecer…

A moça estremeceu. Seu pai viria no dia seguinte? Como interpretar semelhante afirmativa? Tratar-se-ia de uma expressão confortadora ou de promessa justa do Plano espiritual? Fundamente espantada, pedia a Deus lhe iluminasse a razão para o entendimento de sua divina vontade.

Desde essa hora, Madalena, semi-inconsciente, dava a impressão de preparar-se para o amanhã jubiloso.

— Vai, minha filha — dizia inquieta —, abre a grande mala e traze os dois grandes cadernos de anotações de teu pai, a velha Bíblia, o livro de orações…

Alcíone sentia-se compelida a obedecer maquinalmente. Minutos depois, as pequenas lembranças de Cirilo estavam alinhadas sobre a mesa rústica, ao lado das drogas medicamentosas. Só então, quando as viu a todas, envolvendo uma a uma em delicioso olhar, conseguiu entrar em branda sonolência, como quem repousa após cumprir um sagrado dever. Alcíone, porém, continuou vigilante, certa de que a mãezinha amada vivia na Terra os minutos derradeiros. Pela madrugada, voltaram as crises. Madalena abandonava o corpo, devagarinho, entre dispneias dolorosas e visões do mundo espiritual, que lhe deixavam o espírito meio confuso. Pela manhã, duas vizinhas solícitas vieram ajudar nos afazeres domésticos. Alcíone, sempre colada à cabeceira da mãe, que continuava a falar em voz alta, prosseguia em oração silenciosa, imprecando a intervenção de Jesus no lutuoso transe.


44 Voltemos agora ao palacete da Cité, onde, não obstante as informações tranquilizadoras da governanta de Beatriz, reinava certa inquietude pela sua ausência prolongada. Todos sentiam a sua falta, não no trabalho propriamente dito, mas na assistência que seu coração dedicado sabia proporcionar a cada um. O culto doméstico, sem a sua presença, parecia desprovido das luzes ardentes que caiam sobre os textos aparentemente obscuros, dilatando confortadoras e divinas inspirações.

Na véspera daquele mesmo dia em que a jovem aguardava o traspasse da genitora, os Davenport comentavam, durante o almoço, a sua demora, quando Susana obtemperou:

— Alcíone cá esteve há cinco dias. Tranquilizou-nos sobre o estado da enferma, mas eu tenho necessidade de visitá-la, de qualquer modo.

— Muito bem — respondeu Cirilo com atenção —, também acordei hoje com a ideia de fazer o mesmo. Poderemos então faze-lo amanhã.

— E o endereço? — objetou a senhora — até hoje, por mais que me esforçasse, não consegui obtê-lo. Quando o solicito, Alcíone perturba-se e há muito, por isso, deixei de lhe exprimir o sincero desejo de me aproximar dos seus.

— É o acanhamento natural — justificou o chefe da casa, com bonomia.


45 O velho professor de Blois interveio, murmurando:

— O endereço? É muito fácil. Sabemos que Alcíone tem relações afetivas com o pessoal da igreja de São Jaques do Passo Alto. Basta recordar que ali visitamos os despojos do seu tutor…

— É verdade — concordou Cirilo —, como não me havia lembrado antes? Mandaremos o cocheiro tomar informações ainda hoje.

Susana, que se interessara vivamente pela lembrança paterna, tomou as primeiras providências, chamando o servo para a incumbência.

— Então, Cirilo — disse a dona da casa —, podemos ir amanhã cedo a São Marcelo, caso tenhas tempo disponível.

— Eu também vou — disse Beatriz, resolutamente.

Observando a atitude da neta, o velho Jaques lembrou:

— Será melhor irmos todos. Além de atender a uma obrigação agradável, creio que faremos belo passeio, em arrabalde que pouco conhecemos.

O chefe da família concordou alegremente, apesar da objeção que a esposa fazia com o olhar.


46 No dia imediato, por volta das dez horas, elegante carruagem entrava na ruazinha modesta, em que Madalena curtia a sua pobreza. Muitos moradores entreolhavam-se espantados.

Arrancada por Luísa da cabeceira da enferma, cuja agonia se prolongava dolorosamente, Alcíone foi à porta atender a quem a chamava com tanta insistência. Reconhecendo que os Davenport se aproximavam sorridentes, seu primeiro impulso foi recuar, tal o assombro. Nunca encontrara na vida momento tão amargo. Quis caminhar, sorrir, mostrar-se calma e, no entanto, seus lábios se prenderam, enquanto estranho palor lhe cobria a face num ricto de espanto. O coração batia-lhe descompassado. Que iria suceder em tais circunstâncias? A agonizante, desde a madrugada, falava em voz alta, da chegada do esposo. Impossível evitar que os Davenport a ouvissem. Num ápice, porém, lembrou-se do seu contato com as lições de Jesus e procurou dominar-se. Certo, o Evangelho não seria apenas um roteiro para os momentos fáceis. Era indispensável provar-lhe o valimento em todas as situações da vida. Olhou instintivamente o céu e disse consigo mesma: — “Senhor, ajudai-me a compreender vossa divina vontade!”

Seu desfalecimento durara um instante. Energias cariciosas balsamizavam-lhe o coração dorido e ansioso. Não lhes podia determinar a fonte, mas estava certa de que Jesus lhe enviava sua bênção.


47 Nesse comenos, os visitantes já estavam junto dela, menos risonhos, por haverem percebido na sua atitude algo de grave, que não podiam prever.

— Que foi, Alcíone? — perguntou Susana preocupada, abraçando-a. — Assim tão pálida? A doente piorou?

Mais calma, a jovem teve forças para murmurar:

— Mamãe está expirando.

Cirilo e Jaques, sinceramente compadecidos, abraçaram-na, comovidamente. Beatriz, como se desejasse prestar serviço imediato, adiantou-se ao grupo, varando casa a dentro. Alcíone acompanhou-os à pequena sala de visitas, que dava justamente para o quarto da agonizante, convidando-os a sentar-se, com a gentileza que lhe era inata. Percebendo o empenho que tinham em socorre-la naquele transe, seu primeiro desejo era correr ao quarto de sua mãe e esconder as lembranças paternas, que lá estavam em cima da mesa; mas Susana e Cirilo, poderosamente atraídos para o quarto da agonizante, levantaram-se procurando lá entrar, no intuito de prestar qualquer auxílio.

A moça empalideceu e exclamou:

— Por favor, não entrem agora!…


48 A voz timbrava um mundo de aflições, que ninguém poderia perceber. Cirilo, porém, afagando-lhe a cabeça num gesto afetuoso, tentava dissipar-lhe a inquietude:

— Não te acanhes, minha filha! Tuas dores são nossas também!…

Ela os acompanhou, quase cambaleante.

Nesse momento, Madalena deu um grande grito, misto de emoção e júbilo.

— Cirilo!… Cirilo!… — bradou, julgando-se visitada por uma sombra — por que demoraste tanto? Ai! que longos anos de separação, que noites de angústia! Mas, agora, me levarás contigo para o mundo onde não existem nem sorvedouros, nem mar!…

O casal dava mostras de profundo terror. Magnetizado por estranha força, o filho de Samuel colou-se à cabeceira do leito. Não podia enganar-se. Era Madalena, sim, envelhecida e semimorta. As mãos de cera, as rugas do rosto, a cabeleira maltratada de moribunda, não revelavam a carinhosa e bela companheira da mocidade; mas aqueles olhos profundos e lúcidos, a voz inesquecível, não podiam deixar qualquer dúvida.

— Que vejo? Que vejo eu? — murmurava o negociante de fumo, terrivelmente surpreendido.


49 Madalena como que alucinada de alegria e de dor, estendia-lhe as mãos cadavéricas, exclamando:

— Vê como Alcíone cresceu. Moça e bela!… Nunca contemplamos juntos a nossa filha!… Ela foi o meu consolo na viuvez, o meu refúgio nos dias de saudade… Vê nossa casa como está pobrezinha! Mas Deus habita conosco em santa paz! Antes que a notícia da tua partida para o Céu me chegasse aos ouvidos, eu já havia perdido tudo da nossa felicidade de outros tempos… Fiquei só, Cirilo, mas Jesus começou a restituir-me a ventura que desaparecera… Não haverá no mundo hora mais feliz do que esta em que nos reunimos, para sempre, depois de tão longa separação…

Alcíone, revelando poderosa energia moral, aproximou-se da genitora, enxugou-lhe o suor e afagou-a murmurando:

— É preciso acalmar-se, mamãe…

— Não estou alucinada, filhinha — retrucava Madalena de olhos fulgentes —, não vês o que vejo no limiar da morte… Ainda não podes divisar as feições de teu pai, que voltou do sepulcro para me levar com ele…

— Minha mãe tem experimentado longos delírios — exclamava Alcíone timidamente…


50 Mas, voltando-se para os dois circunstantes, observou que Susana, lívida de mármore, ajoelhara-se, enquanto o genitor fixava a agonizante com ares de alucinado.

— Tua lembrança — continuou a dizer Madalena, dirigindo-se ao esposo — sempre andou conosco, em tudo e em cada dia. Ali estão os teus cadernos de anotações, tua Bíblia, o livro de contos irlandeses…

Cirilo Davenport esboçou um gesto de profundo espanto, como aregistar a confirmação da tremenda surpresa.

— Estão limpos e intactos… — prosseguia a agonizante, dando satisfações do seu cuidadoso dever — todas as semanas, repetíamos o trabalho de conservação e limpeza, com o pensamento em ti, para que nos visses lá do Céu!…

O filho de Samuel, mudo e trêmulo, aproximou-se da mesa. Sua palidez aumentava à medida que ia reconhecendo antigas notas de trabalho na Sorbona.  † 


51 Susana, a seu turno, jamais poderia definir a angústia que lhe oprimia o coração. Via o que nunca poderia prever, na sua perversidade de outrora. Madalena Vilamil ali estava à sua frente, desafiando-lhe a consciência onusta de acerados remorsos. Anos de angustiosa expiação íntima haviam passado. Quantas vezes procurara, à sombra dos altares, um bálsamo para as torturas do coração? Tudo inútil! Apenas, naqueles últimos tempos, conseguira um farrapo de esperança com o culto doméstico em que Alcíone esclarecia tão bem o problema das fraquezas humanas e da bondade de Deus. Agora, entretanto, sentia-se convocada ao testemunho pungente. Somente agora compreendia a primeira impressão de repulsa, quando Alcíone lhe entrara em casa, simpatizada por todos. Era impossível que ela ignorasse o segredo terrível. Contudo, pelas palavras da agonizante, pela situação geral, compreendera que a filha de Madalena dispusera-se a um sacrifício quase sobre-humano. Filha de Cirilo, suportara o papel de serva em sua casa e vítima do seu crime, nunca levantara a voz para fazer a mínima acusação…   52 Quem teria dado forças àquela criatura tão simples, para tolerar tamanho opróbrio do destino, sem um gesto de indignação e desespero? A filha de Jaques lembrou as magníficas inspirações no culto doméstico do Evangelho. Alcíone sempre se referira a Jesus como divino hóspede do seu coração. Do Mestre é que devia escorrer o manancial de tantas energias. E foi assim, ali, defrontando sua vítima nas vascas da morte, que a infeliz criatura experimentou sincera e dolorosa contrição. Os sofrimentos de Madalena e os heroísmos de Alcíone falavam-lhe muito alto daquele Cristo, que tantas vezes lutara por compreender, sem resultados apreciáveis. Entendia, afinal, que um exemplo, às vezes, podia substituir um milhão de palavras. 53 Naquele momento, por certo, Jesus lhe impunha a confissão do crime nefando. Angustiosa batalha travava-se-lhe no íntimo atormentado. Onde estaria Antero de Oviedo, o comparsa da trama sombria? Não seria melhor atribuir-lhe a culpa do feito execrável? A família Davenport estava certa de que ela apenas assistira à morte de D. Inácio. Sempre afirmara ter chegado a Paris no dia seguinte ao sepultamento da rival e para comprová-lo tinha o documento do cemitério. Seu velho pai era testemunha da sua saída de Blois  †  e podia conferir mentalmente a data da sua chegada a Paris.  †  Ela também já havia lutado muito. O consórcio, não obstante a vida de fausto que levavam, nunca lhe dera a felicidade ardentemente esperada. Alguns fios brancos já lhe riscavam a cabeleira, traduzindo o cansaço da vida. 54 Não seria, também, mais acertado preservar a ventura de Beatriz, isentando-a da venenosa recordação de uma mãe ignóbil? E seu venerando pai? Como receberia a confissão dolorosa? Nessa terrível batalha em que os impulsos inferiores propendiam para exibir uma falsa inocência, para que o sobrinho de D. Inácio fosse o único culpado, Susana Davenport sentia-se morrer. Daria mil vezes a vida para tomar o leito da agonizante e entregar-se à morte, em seu lugar. Quando o mal estava a pique de triunfar concretizado em ato extremo, ela relembrou o vulto de Alcíone nos seus sacrifícios diários. Quanto não teria sofrido a pobre menina para suportar o serviço a que fora conduzida, talvez ignorante de que, ao procurar a subsistência, batia à porta do próprio pai? E Madalena? Quantas privações duras e amargosas não deveria ter experimentado? 55 Acerbo sentimento de pejo empolgou-a inteiramente. Sentiu-se, depois, envolvida nas alocuções evangélicas do culto familiar. Jesus estava sempre pronto a acolher os desamparados, os falidos, os criminosos e impenitentes do mundo; mas não era lícito recalcitrar. O Mestre fornecia recursos à retificação dos erros; entretanto, o maior dos crimes deveria ser o reincidir no mal, perante o Mestre, tendo a noção de seus ensinamentos. Um vulcão de lavas ardentes rompia-lhe do peito, devorava-lhe o cérebro em cachoar de brasas vivas. Em meio de tanta desolação íntima, dúlcida voz lhe falava à consciência dilacerada: — “Confessa! Confessa e acharás o caminho para Deus…”


56 Nesse instante, Cirilo Davenport, aterrado com os documentos que revirava nas mãos, voltou-se para Alcíone, buscando esclarecimentos, mas, vendo-a tão calma e transparente de candura, desistiu de lhe magoar o coração tão cedo sacrificado e dirigiu-se automaticamente a Susana, que se mantinha muda e genuflexa.

Alcíone percebeu que se iniciava o penoso processo de reparação e aclaramento, e sentou-se ao lado de sua mãezinha, murmurando com carinho:

— Quem sabe, mamãe, a senhora desejará um pouco d’água?…

— Não… não… — dizia a agonizante, parecendo interessada em não perder de vista a silhueta de Cirilo — onde está Robbie? Quero apresentá-lo a Cirilo como nosso filho de criação…


57 Cirilo, porém, profundamente acabrunhado, retirara-se a um canto do quarto, onde Susana continuava ajoelhada.

— Que pensa de tudo isso? — inquiriu ele extremamente pálido.

Ela teve a impressão de que aquela voz era um libelo terrível. Como se despertasse de medonho pesadelo, respondeu confusa:

— É ela!…

— Mas… explica-te — insistiu transfigurado pelo sofrimento.

A filha do professor de Blois, no último esforço para vencer-se a si mesma, olhou para Alcíone como a buscar na sua efígie a energia precisa à confissão dolorosa, afirmando em seguida:

— Foi o maior crime da minha vida!

Cirilo fez um esforço inaudito para não baquear aturdido.

— Que diz? — perguntou aterrado.


58 Mas Susana enterrara novamente a cabeça nas mãos; e o marido, cambaleante, deu alguns passos, abriu a porta e chamou o velho Jaques. O venerando ancião, pela fisionomia estuporada do sobrinho, compreendeu de relance que algo havia de muito grave. Beatriz ficou só, folheando um livro.

— Meu tio — exclamou Cirilo amargamente, designando a agonizante —, esta é Madalena e Alcíone é minha filha!…

O velho Jaques estuporou-se também. Era ela, sim! Não obstante o abatimento físico da extrema hora, identificava a filha de D. Inácio Vilamil, detalhe por detalhe. E sentia-se estrangulado pela surpresa angustiosa. Dava a impressão de se haver petrificado pelo sofrimento. Queria amparar Cirilo, mas todo o corpo lhe tremia ao impulso da violenta comoção. Foi o próprio sobrinho quem lhe deu a mão, impedindo-o de tombar, ali mesmo, diante da agonizante. Nesse instante, porém, Jaques orou com fervor jamais sentido em toda a vida, exorando forças para atender a amarga conjuntura do momento. Passado o primeiro choque, teve forças para interrogar:

— Como se explica isso?


59 A filha levantou-se, em pranto convulsivo, emocionada com o testemunho inelutável, e arrostando a angústia paterna, abraçou-se ao velho genitor, como a procurar o perdão de um espírito sempre generoso.

— Meu pai!… meu pai! — clamava entre lágrimas.

Foi aí que Cirilo, respondendo à pergunta do tio, exclamou quase sufocado:

— Susana deve saber tudo!… Já me afirmou que esse foi o maior crime de sua vida!…

O velhinho, estupefato, recordou maquinalmente a remota noite de Blois, quando a filha se agastara com a sua adesão ao projeto do sobrinho, de esposar a senhorita Vilamil. Parecia-lhe ter diante dos olhos o quadro que o tempo não conseguira esfumar, ouvindo a confissão de Susana, de que também amava o rapaz. Relembrou as suas atitudes no lar, a ojeriza constante à Madalena, a insistência em desposar o primo viúvo, lá nas plagas americanas.


60 De pronto repassou a tela das reminiscências vivas, para fixar depois o olhar na agonizante e na filha, considerando a dolorosa jornada de ambas. De que paragens de dor chegava Madalena Vilamil até ali, com as rugas lavadas de lágrimas e coberta de cãs prematuras? Pelas informações de Alcíone, deveria ter vivido muito tempo na Espanha… Quem a teria conduzido a regiões tão distantes? A exemplificação da filha constituía, naquele momento, um atestado de glória espiritual. Somente agora compreendia o suave e irresistível magnetismo que ela exercia sobre todos os de casa. Era preciso, entretanto, ter um coração perpetuamente unido a Deus para praticar o amor qual o fazia a jovem humilde, que ali se encontrava em atitude confiante, no cumprimento de um dever tão sagrado quão doloroso. O quadro o impressionava para sempre. Ponderando tudo isso, Jaques Davenport convocou as suas possibilidades morais para conservar a serenidade imprescindível e obtemperou, com afetuosa energia: 

— Avalio que ação negra se mascara por detrás da nossa angústia!…


61 E observando que os dois se achavam incapacitados de dominar a própria emoção, lembrou sensatamente:

— Deus nos está mostrando o ígneo bulcão de amarguras em que Madalena consumiu as energias de esposa e mãe! Podemos imaginar que espécie de infâmia lhe argamassou o infortúnio. Mas, penso que se a pobrezinha foi reduzida a tamanha expressão de sofrimento, em toda a vida, não devemos perturbar-lhe o sono da extrema hora. É preciso defender a paz dos mortos!…

Ditas essas palavras, dirigiu-se à filha, exclamando: 

— Vai-te para casa com a Beatriz. Depois falaremos.

E voltando o olhar para o sobrinho, murmurava comovido:

— Quanto a ti, meu filho, que Deus te dê forças!…

Susana contemplou, pela última vez, Madalena no seu leito de morte e encaminhou-se para a porta, vacilante. Beatriz, que esperava calmamente na sala, não dissimulou o espanto ao ver a transfiguração da genitora.

— Que foi, mamãe? — interrogou ansiosa.

— Não te assustes — esclareceu a infeliz com dificuldade —, a mãe de Alcíone está expirando… Vamos. Teu pai e teu avô ficam até mais tarde…

— Pobre Alcíone! — murmurou a mocinha ingenuamente.


62 Enquanto a carruagem regressava, depois do meio dia, no quarto modesto de Madalena Vilamil a cena dolorosa continuava. Jaques identificou um por um dos papéis que estavam sobre a mesa. Depois de muito lagrimar, sentou-se contemplando a agonizante, com grande amargura. Sufocado de dor, o esposo apoiava-se no leito mortuário, como querendo galvanizar as últimas manifestações da agonizante com indomável ansiedade. Jamais Cirilo conhecera pranto tão acerbo. Obedecendo às reclamações insistentes da genitora, Alcíone trouxe Robbie ao aposento.

— Este, Cirilo — dizia a agonizante, exânime —, é também nosso filho pelo coração…

Criei-o amorosamente desde o dia em que nasceu… Ajudar-me-ás a pedir por ele aos pés de Jesus! Nunca o deixaremos só!…

E dando a impressão de querer consolar o rapazinho, acrescentava:

— Estás vendo, Robbie? Por que temer os padecimentos do mundo, se temos outra vida? Não dês importância aos que te escarneçam, meu filho!… Tudo passa na Terra!… Por que haverás de permanecer em tristeza no mundo, quando sabes que te esperamos no Céu?

Fez uma longa pausa, que ninguém se sentia com coragem de interromper. Ao cabo de alguns instantes, acentuava com placidez inconcebível, dirigindo-se ao filho adotivo:

— Toma a bênção a teu pai, Robbie!… Pede-a também ao amigo que o acompanha!… n


63 Então, verificou-se a cena tocante, que provocava novo contingente de lágrimas copiosas. Com sincera humildade, o pequenote atendeu, beijando a mão dos dois homens para ele desconhecidos.

O filho de Samuel contemplou-o, comovido. Jamais poderia dizer porque o pequeno descendente de escravos o atraía tão fortemente. Num gesto espontâneo, abraçou-o com ternura e murmurou:

— Serás também meu filho!…

Decorreram longas horas, pesadas, tristes.

À tarde, Madalena Vilamil pareceu mais serena e mais lúcida. Em dado instante chamou a filha e declarou:

— Minha mãe e padre Damiano também chegaram… É o momento de partir…

Alcíone recordou a revelação da véspera e ajoelhou-se. Em preces silenciosas, rogou a Jesus recebesse a genitora em seu Reino de verdade e de amor, que lhe atenuasse as últimas amarguras. A agonizante manifestou desejos de confortar a filhinha, formulando carinhosas promessas de amor maternal; contudo, seus lábios apenas denunciavam o esforço supremo. Em profundo desespero íntimo, Cirilo estendeu-lhe a mão, que ela apertou fortemente, como a selar uma eterna aliança e, aos poucos, entregava-se ao grande sono.


64 Belos tons de crepúsculo invadiam a natureza, quando Madalena partiu. Pesada angústia desabara sobre a casa de São Marcelo, onde se ouvia a voz de Robbie em dolorosos lamentos de criança inconsolável.

O velório teve a presença de numerosos vizinhos, tão pobres quanto os Vilamil.

No entanto, Cirilo Davenport, embora taciturno e desesperado, tomou todas as providências que a situação exigia. A modesta vivenda encheu-se de servas improvisadas, proporcionando à Alcíone e à velha Luísa o repouso de que necessitavam. O cadáver foi amortalhado regiamente. As pessoas presentes, que tinham relações com a morta, surpreendiam-se em face de tamanha generosidade.


65 O esposo de Madalena Vilamil não saberia explicar o seu estado íntimo. Mil pensamentos lhe turbilhonavam no cérebro incandescido. Tinha ânsias de conhecer todos os informes de Susana, para avaliar a natureza da sua falta e puni-la sem quartel. Procurava recordar as lições do culto doméstico, concernentes à confiança em Cristo e ao perdão, mas os ensinamentos evangélicos pareciam-lhe agora envolvidos em nuvem distante. A ideia de uma reparação à esposa, ofendida e sacrificada, era a nota dominante no seu espírito. Procuraria conhecer toda a extensão do crime que reduzira a companheira a situação tão amarga, castigaria severamente os algozes. Desejava aproximar-se das recordações filiais, sentando-se junto de Alcíone com a poesia do seu coração de pai; mas, era indispensável resolver primeiramente o caso da esposa traída. Depois de tranquilizar a consciência, então elevaria Alcíone ao merecido altar. Aquilatava-lhe o valor moral, a grandeza dos sentimentos. Quanto não teria sofrido antes de fazer-se simples cantora da rua, qual a encontrara pela primeira vez?! Ele ainda não sabia entregar a Jesus situações sem remédio no mundo, desejava dar uma satisfação plena ao seu amor próprio ofendido. A seu ver, impunha-se, antes de tudo, restabelecer a honra pessoal.   66 Submerso em amargura sombria, passou a noite vígil sem um momento de tréguas à mente incendiada por ideias quase sinistras. Que fizera Madalena durante tantos anos na Espanha? Quem havia forjado a burla da sua morte? Como vivera em separação tão amarga? As conjeturas atropelavam-se-lhe no cérebro, sem resposta. Depois de uma consulta ao cemitério dos Inocentes,  †  recebia na manhã seguinte a notícia de que era impossível abrir um túmulo na mesma zona onde se haviam sepultado os variolosos de 63. Embora não pudesse satisfazer o desejo de inumar a morta inesquecível ao lado dos despojos do fidalgo espanhol, ordenou que o funeral se fizesse com o destaque possível. Alcíone acatou-lhe os mínimos desejos, com humildade. Padre Amâncio, solícito, cuidou de todos os pormenores, sem disfarçar a surpresa que a atitude dos Davenport lhe suscitava.


67 Quase à noitinha, grande carro estacionou junto ao palacete da Cité. Dele apeavam-se Jaques e Cirilo, acompanhados de Robbie e Alcíone. Na antiga casinha de São Marcelo, apenas ficara a velha serva, aguardando solução definitiva a seu respeito.

Cirilo demandou o ambiente doméstico, assomado de poderosa inquietação. Susana recebeu-o desfigurada, abatida, parecendo haver envelhecido vertiginosamente.

— Não temos tempo a perder — disse ele com expressão rancorosa —, precisamos ouvir-te na sala de leitura. Onde está Beatriz?

— Por piedade! — exclamou ela desesperada — poupa-me a vergonha de apresentar-me a nossa filha como criminosa!

— Não posso — respondeu Cirilo inflexível —, ignoro que providências terei de tomar para desobrigar-me com a minha consciência e não quero que Beatriz mais tarde possa julgar-me injustamente.


68 Muito pálida, Susana encaminhou-se ao local indicado. Nesse momento, a pedido de Alcíone, Robbie era recolhido ao leito por um velho criado.

Daí a minutos, a filha de Madalena, muito constrangida, figurava ao lado dos Davenport para as investigações amargas. Depois de sentados, Cirilo dirigiu-se a Beatriz nestes termos:

— Minha filha, ontem tivemos a revelação de que Alcíone não é tua governanta e sim irmã mais velha. A agonizante que fomos visitar, e que o túmulo recebeu à tarde, era minha primeira esposa — Madalena Vilamil! Nunca pude saber o drama cruel que se formou no meu caminho, mas tua mãe, que deve ter lembranças bem nítidas do passado vai expor certos fatos que nos poderão esclarecer.

A jovem Davenport tornou-se lívida. Jamais pudera imaginar que, por trás da felicidade doméstica, dormissem angústias como a daquela hora inesquecível.


69 Susana, que se assentara um tanto afastada, afigurava-se antes uma ré acabrunhada e aflita, sem saber como iniciar a confissão do seu crime.

O velho Jaques, referto de experiências da vida, contemplava a filha num misto de dor e de vergonha. Cirilo tinha os olhos fuzilantes de ansiedade. Alcíone recolhia-se em preces fervorosas no santuário do coração.

A infeliz criatura começou, dificilmente, a revelar, detalhe por detalhe, a enorme culpa da sua vida. De vez em quando, um soluço abafado a interrompia. A confissão prolongava-se por mais de uma hora, e, como se obedecesse a poderosos imperativos da consciência, Susana não omitiu a menor particularidade. Emocionadíssima, pintava os seus estados d’alma na época em que estudava todas as possibilidades do plano criminoso, para conquistar definitivamente o homem amado. Minudenciou as atitudes de Antero Oviedo, descrevendo os antecedentes de suas relações com ele, os passeios que faziam e nos quais o sobrinho do fidalgo espanhol dava-lhe a conhecer a imensa paixão pela prima. Por fim, em frases comovedoras, narrou as cenas da varíola, de 63, a visita ao cemitério dos Inocentes, as sugestões sinistras que um nome lido ao acaso, no velhoregisto de notas fúnebres, lhe suscitara.


70 Quando terminou, sob o olhar aterrado do genitor e do companheiro, e com os soluços abafados das duas jovens, ajoelhou-se e suplicou:

— Conheço a vileza do meu crime e Jesus, que me preparou a alma para fazer esta confissão dolorosa e horrível, é testemunha dos longos sofrimentos que tenho amargado. A paixão me levou ao desvario de comprometer para sempre a paz de minh’alma. Realizei o louco intento, vali-me de todos os recursos, meus e de meus amigos, para esposar Cirilo, crente de que, aparceirada com Antero, poderia corrigir um erro do destino. Mas a verdade é que nunca encontrei um ceitil da felicidade ardentemente desejada… Os criminosos não podem lograr, nunca, a realidade do seu ideal. Aprendi cruelmente que não pode haver paz fora do dever cumprido; que não há alegria sem aprovação da consciência tranquila. É verdade que infelicitei Madalena com a minha insânia de amor mas não o é menos que lhe invejo agora a calma espiritual, a fé sincera e confiante com que se entregou a Deus no último transe! Ai de mim! O conforto material que o mundo me concedeu é uma ironia da sorte. Para mim, que atravesso a vida taganteada pelo remorso impiedoso, os palácios são túmulos dourados, tudo se resume em punhados de sombra e de miséria! Sei que perante Beatriz sou mãe desnaturada e alma mesquinha; que perante meu pai sou a imagem da ingratidão imperdoável; que perante Alcíone sou mulher sem coração! Para Cirilo não passarei de malvada e diabólica; mas, se puderem, peço de joelhos que me ajudem o espírito cansado, com o perdão da imensa falta! Não sei quantos anos me restam de vida neste mundo, mas prometo-lhes humilhar-me a todo instante, penitenciar-me como serva de todos, a fim de trabalhar pela minha salvação… Jesus, que me deu a coragem de confessar o crime, não me há de faltar com as energias necessárias ao esforço regenerador!…


71 Nesse momento, fez uma pausa mais longa. Jaques, estático, permanecia calado, Alcíone e Beatriz choravam amargamente. O marido infelicitado, porém, parecia dementado pela dor. Olhos arregalados como a fitar o passado de sombras, Cirilo Davenport transportara-se em espírito ao ano de 63, esquecera momentaneamente todos os trabalhos e deveres das segundas núpcias. À sua frente via Madalena ultrajada, humilhada, perseguida. Sentia-se rodeado de inimigos implacáveis, que se haviam alojado em seu próprio coração. A ideia de vingança se lhe embutira no cérebro com vigor incoercível. Apesar dos conhecimentos evangélicos, não podia libertar-se da velha concepção que impunha lavar com sangue a dignidade ferida. Pela primeira vez, experimentava o supremo ultraje ao nome, à honra pessoal, ao amor próprio ofendido. Enquanto se perdia em dolorosas reflexões, Susana fixou nele o olhar e exclamou compungidamente:

— Perdoa-me e terei forças para me transformar!…

Soluços amargos acompanharam o apelo. Mas o filho de Samuel, com feições de louco sacou de um punhal e, cambaleando e rugindo, ameaçadoramente, acercou-se da postulante, bradando:

— Não há perdão para o teu crime, Susana! As víboras hediondas devem ser esmagadas.


72 Entretanto, num ápice, Alcíone colocou-se entre ele e a infeliz. Observando a atitude impulsiva e resoluta do genitor, abraçou-se à filha de Jaques e, quando viu que a mão armada ia desferir o golpe, exclamou com acento inesquecível:

— E Jesus, meu pai?

O braço ultriz pendeu inerte. Era preciso recordar Aquele que não desdenhara o madeiro infamante. Cirilo sentiu-se apossado de estranhas e novas sensações. Pela primeira vez, Alcíone lhe chamava “meu pai”. Por que não lhe seguir a exemplificação de sofrimento e sacrifício? Madalena havia partido em paz. Quem sabe poderia acompanhá-la na mesma tranquilidade de coração? Por que arruinar o porvir com uma ação execrável? Recordava, agora que as lágrimas lhe manavam dos olhos doridos, as lições evangélicas do culto doméstico. Ninguém poderia sanar um mal com outro mal, resgatar um crime com outro crime. O pranto corria-lhe em onda volumosa, quis andar livremente, mas uma sensação de súbito mal-estar lhe anulava as forças. Não conseguiu senão arrastar-se com dificuldade e, apoiando-se em Alcíone, que acabava de acomodar Susana no divã, entregou-lhe a arma perigosa, como a dizer que renunciava a toda ideia de vingança por suas próprias mãos. Jaques e Beatriz perceberam que Cirilo sentia algo de grave e correram a ampará-lo.

— Meu pai, meu pai — dizia a filha de Susana em tom angustiado —, não te entregues assim ao sofrimento!…

Ele, porém, não mais respondeu ao chamado dos circunstantes e foi conduzido ao leito, desfalecido, em deplorável situação.


73 Cirilo Davenport não resistiu ao sofrimento que lhe causara a revelação tenebrosa. Alguns vasos cerebrais se romperam em penhor de morte. Mais de um médico foi convocado a salvar o rico negociante de fumo, mas não houve meios de o sequestrar ao coma.

Beatriz estava inconsolável. Enquanto Jaques e Susana atendiam à situação angustiosa, no quarto do enfermo, Alcíone, considerando que a mocidade é sempre mais inquieta e inconformada, dirigiu-se ao aposento da irmã, no intuito de lhe preparar o espírito em tão graves circunstâncias. Era indispensável manter-se acima do próprio sofrimento, por corrigir o que fosse possível.

— Ah! Alcíone — exclamava a mocinha soluçando —, como detesto minha mãe!…

— Não diga isso! — revidava a interlocutora emocionada — então, Beatriz, em tão poucos momentos de provação e testemunho, já esqueceste o perdão que Jesus nos ensinou? Recorda os deveres filiais que devem ser sagrados em nossa vida!…

A filha de Susana, contudo, dando expansão a velhos sentimentos, não concordava, murmurando:

— Mas a mãe que Deus me deu é desleal e criminosa!…

— Por que não dizer antes que D. Susana foi doente do espírito quando lhe despontaram os primeiros sonhos da mocidade? Não seria mais nobre julgar assim? Por que, Beatriz, ver tão somente o mal, quando Jesus sempre nos inclina a ver as qualidades mais preciosas da criatura? Nesta casa, há velhas servas trazidas da América, que abençoam tua mãe todos os dias, pelos benefícios dela recebidos… Nada se perde no caminho da vida… Quem encontra forças para julgar os próprios erros já recebeu do Senhor alguma luz.


74 E vendo que Beatriz se lhe conchegava ao peito, com lágrimas angustiosas, continuava:

— Não te penalizou vê-la soluçante, em confissão que nos foi particularmente dolorosa? Não lhe notaste a expressão de vergonha e padecimento quando se ajoelhou a exorar perdão? Cala as tuas mágoas e procuremos compreender a mensagem que Jesus nos destinou.

— Mas, quanto haverá sofrido tua mãe em consequência desse crime?

— Sim, sofreu e lutou muito, mas hoje descansa das fadigas terrenas, abençoando, talvez, as lágrimas vertidas neste mundo. E, porque tenhamos chorado muito, será justo atormentar a mãe que Deus te concedeu?…

— Ouço as tuas observações carinhosas, quero guardá-las no espírito, mas não posso! A lembrança da confissão desta noite destrói minha felicidade, alguma coisa me turva o pensamento… desejo raciocinar, esquecendo o mal, e não posso.

— É porque ousas enfrentar as penas do mundo sem o Cristo. Estamos na Terra para adquirir ou provar alguma virtude. Na realização desse escopo não podemos desafiar a luta sozinhas! É imprescindível buscar a companhia do Divino Amigo, para sermos esclarecidas a tempo! Jesus tem uma palavra luminosa para cada situação, uma energia inspiradora a cada momento mais amargo, desde que lhe busquemos o socorro divino!…


75 A jovem Davenport sentiu profundamente o alcance sublime da advertência e acalmou-se. Daí a instantes, voltou a dizer:

— Compreendo, sim, a elevação de teus conselhos fraternos; entretanto, não me furto ao receio de que papai não resista a esta tragédia que nos aperta o coração… Esperarei que Henrique chegue para contar-lhe o que se passa. Muitas vezes tem ele falado da possibilidade de nos casarmos breve. Se o papai não escapar da morte, concordarei, pois assim, pelo menos, poderei deixar a companhia de mamãe e oferecer ao vovô tranquilidade para o resto dos seus dias.

— Não penses tal. Não poderemos desamparar tua mãe. Quanto ao mais, nada dirás ao Sr. de Saint-Pierre. Não temos o direito de confiar a ninguém a dolorosa revelação do nosso caso. É preciso lançar a rega do silêncio e da paz à fogueira das lucubrações tormentosas, para que nossa existência não se transforme em voraginoso inferno.

Beatriz concordou.


76 Dentro de poucas horas o noivo aparecia cheio de interesse familiar. Outras visitas se sucederam durante a noite. Fatigadíssima, Alcíone manteve-se no seu papel de serva, em que todos a conheciam. A alvorada encontrara Cirilo moribundo. Decorridas vinte e quatro horas do tremendo choque, o filho de Samuel desprendia-se do mundo para a vida espiritual.

O palacete da Cité logo se cobriu de crepes negros. Pesada atmosfera se espalhou no solar do abastado comerciante de fumo.

No dia seguinte o velho Jaques teve forças para providenciar o enterramento do sobrinho, ao lado do túmulo de Madalena Vilamil. O amoroso casal, que vivera separado pela astúcia maliciosa do mundo, reunia-se agora para sempre.

O funeral realizou-se com muita pompa, na tarde imediata à do falecimento. Numerosos eclesiásticos acompanharam o féretro com luxuosas exéquias. A viúva, com ares de alucinada, seguiu o cortejo amparada por Alcíone, que lhe dava o braço com zelos filiais. Mas, quando os padres disseram as últimas palavras do ritual para que o corpo baixasse à campa, ouviu-se estranha gargalhada no ambiente silencioso e triste.

A assistência numerosa entreolhou-se atônita e curiosa!

Susana Davenport havia enlouquecido…


Emmanuel



[1] Compelida pelas circunstâncias, a jovem Vilamil nunca forneceu à genitora o nome exato da família a que servia. — Nota de Emmanuel.


[2] Madalena Vilamil permanecia entre as impressões de dois mundos como acontece à maioria dos moribundos. — Nota de Emmanuel.


Texto extraído da 1ª edição desse livro.

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