I
1 Venho do núcleo imbele da albumina.
Num milhão de sombrios avatares,
Pólipo de comunas celulares
Que a lei organogênica domina.
2 Avancei dos recôncavos da mina
Ao charco morno que reveste os mares…
E errei nas selvas multisseculares
Com sede e fome de carnificina.
3 Venho do zero cósmico profundo,
De pavorosas tenebras do mundo,
Estrangulando os vínculos das eras.
4 E, nas lutas sem fim que me consomem,
Tenho o orgulho bastardo de ser homem
Sobre o instinto medonho das panteras!
II
1 Mas, além do pretérito que humilha,
Meu ser antropocêntrico em batalha,
Surge um sol flâmeo e belo que se espalha
Por celeste e ignota maravilha.
2 É o anjo-homem-Cristo que perfilha
O homem-lôbo que, em mim, veste a mortalha
Da fera que ainda ruge e se estraçalha
Sob a treva em que a lágrima não brilha…
3 Desce, ó Divina Luz, aos meus escombros,
Põe a cruz de verdade nos meus ombros,
Prende-me os punhos ao calvário adverso!
4 Esmaga em mim a hiena taciturna,
Arrebata-me aos pântanos da furna
Para a glória divina do Universo.
Augusto dos Anjos
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