1 — Espero nos ajude a vencer tão grande obstáculo, — dizia uma inquieta senhora ao Firmino. — Sua cooperação fraternal é a minha última esperança. Minha filha precisa de conselhos urgentes.
— Quem sabe estará a pobrezinha perseguida de algozes das trevas? — Lembrava o interlocutor sorridente. — Conheço casos dessa natureza, em que tudo não passava de simples influenciação de elementos inferiores.
2 — Estou disso convencida, não tenho mesmo qualquer dúvida. A menina sempre pautou seus atos pelo sincero desejo de acertar. Nunca desprezou o trabalho, nunca deu mostras de rebeldia. Agora, entretanto, parece obcecada por pensamentos indignos.
— Hoje mesmo solucionaremos o assunto, — asseverava o doutrinador prestativo, — irei a sua casa, logo à noite; fique tranquila. Esses maninhos da sombra preparam ciladas a torto e a direito, mas havemos de vencer o mal, dirigindo energias para o bem.
3 Enquanto a senhora se despedia evidenciando gestos desordenados de inquietude, outro cliente assomava à porta, requisitando orientação.
— Firmino, — exclamava atencioso, — a situação de minha mulher continua desesperadora. Tenho a impressão de que ela permanece insensível a qualquer advertência. A obsessão empolga-lhe o sistema nervoso de maneira absoluta. Ainda ontem, vi-me em situação vexatória, na Polícia, devido a sérias denúncias de vizinhos. Até quando suportarei este martírio doméstico, meu bom amigo? Não poderia você ir até a nossa casa, a fim de ministrar algum esclarecimento?
O interpelado inclinou a fronte em sinal de assentimento e acrescentou:
— Poderemos fazer, à noite, alguma doutrinação. Espere-me depois de onze horas.
4 Mal não se havia retirado o esposo aflito, um velho batia à porta, em companhia de um rapaz renitente e preguiçoso. Admitido no interior, começou a desfiar o longo rosário de queixas comuns.
— Este meu filho, Sr. Firmino, de há muito vem sendo perseguido por entidades perturbadoras. Ninguém mo disse; mas não se engana o meu coração de pai. A princípio, recorremos à Medicina, gastei o que pude, batendo a consultórios e farmácias; todavia, não colhi qualquer resultado animador. O rapaz continua fazendo loucuras sobre loucuras. Disseram-me que o senhor dá conselhos como ninguém e venho apelar para a sua caridade. Por favor, veja se nos pode prodigalizar o benefício de uma orientação.
5 O jovem mirava os interlocutores de soslaio, dando a entender mais peraltice que demência; entretanto, o conselheiro, em vez de receitar-lhe um susto adequado, começou a dizer levianamente:
— É incontestável. O pobrezinho está obsidiado. Não é de estranhar, visto que as influências maléficas povoam todos os lugares deste mundo.
6 E rematava, imprudente, após longa pausa:
— Você, meu filho, está envolvido nas perigosas malhas de perseguidores invisíveis, mas de amanhã em diante faremos serviços de auxílio a seu favor. Qualquer pessoa, nas suas condições, pode cometer os mais negros crimes. Não conhece os escândalos do noticiário comum? É a obra destruidora dos maus Espíritos. Assassínios, suicídios, erros, paixões, resumem a perigosa atuação dos seres diabólicos das sombras.
O progenitor, embalado pela ideia de socorro gratuito, não ocultava a satisfação em largos sorrisos, enquanto o rapaz dissimulava gestos cínicos.
7 E era esse o feitio daquele ingênuo e bondoso Firmino da Conceição. Premido pelas contínuas solicitações, abandonara a atividade profissional, passando a viver a expensas das duas filhas, que definhavam nos trabalhos afanosos do bordado e da costura. Sempre vigilante no círculo das necessidades dos vizinhos e conhecidos, como que se habituara à desordem do próprio lar. Ambas as moças sentiam-se à frente da maré invencível. As remunerações incertas mal chegavam para as despesas inadiáveis. E a velha esposa, quando os cobradores rondavam a porta, aguardava o marido pacientemente, alegando em tom afável:
— Ora, Firmino, esta situação precisa modificar-se. Nossas filhinhas parecem cansadíssimas. E seu emprego? Você não esperava colocar-se este mês?
— Sim, sim, mas não podemos esquecer a tarefa.
Os apelos são muitos e não posso desatender a essa boa gente que me procura. Imagine que, presentemente, estou a serviço espiritual para benefício de vinte e duas famílias.
— Mas, lembre-se igualmente de que é chefe desta casa e que não estamos isentos de responsabilidade familiar.
8 Notando que a generosa companheira estava a ponto de irritar-se, o doutrinador afagava-lhe a fronte cismarenta e dava-se pressa em buscar meditações e leituras, acentuando:
— Deixe-se de ideias tolas. Perdeu então a fé em Deus?
9 Meses e anos corriam para o abismo do tempo e Firmino era sempre o mesmo homem, determinado a satisfazer pedidos importunos e extravagantes. Diariamente, entregava-se a demorados exercícios espirituais, a fim de multiplicar os valores positivos de sua doutrinação. Desenvolvera a visão psíquica. Agora, recebia apelos do visível e do invisível. Espíritos ociosos, ou inquietos, deste e do outro lado da vida, procuravam-no incessantemente. Vendo-se em tal situação, julgou-se dono de vastos poderes e a vaidade não demorou a surgir como escalracho invasor. O nosso homem não admitia orientação estranha, no seu modo de interpretar, julgava-se detentor de dons infalíveis.
10 Chegou, porém, a ocasião de ser abalado nas convicções profundas. Quando a família esgotava o enorme cálice de sofrimento, eis que uma noite, feita a oração habitual, Firmino é visitado por entidade desconhecida. Auréolas de luz cercavam-na inteiramente. Estampando amoroso sorriso, aproximou-se do velho doutrinador que se ajoelhara, e falou com bondade:
— Venho da parte de Jesus fazer-te um apelo.
11 Firmino, quase em êxtase, parecia esmagado de júbilo. Solicitação do Cristo?! Que não faria por atender imediatamente? Desde muitos anos, empregava as menores possibilidades na solução dos problemas alheios. Certo, Jesus premiava-lhe a boa vontade, designando-lhe nova tarefa. Enquanto essas reflexões lhe vagavam na mente, o sábio mensageiro continuou:
12 — Trata-se de pessoa que requer auxílio urgente; alguém que precisa do teu interesse efetivo e desvelada atenção. Não te negues a cooperar, meu amigo. Essa criatura guarda a melhor intenção nos serviços comuns, mas, há muito tempo, internou-se pelos abismos da incompreensão. Jesus, porém, observa os discípulos generosos e sinceros e jamais lhes faltará socorro celeste. 13 O teu concurso é, todavia, indispensável. Esse irmão bem-amado permanece em perigo. Ervas daninhas lhe cresceram no campo espiritual, ameaçando as flores da esperança e os frutos da verdade. Viajor descuidado, apesar de bondoso, numerosas sereias tentam encantá-lo. 14 O pobrezinho começou a dormir, mas é preciso arrancá-lo do sono. Ainda que seja necessário, submete-o a disciplinas, acorda-o a golpes de força, dada a hipótese de necessidade premente. Não o deixes a meio da estrada, longe de si mesmo. Jesus confia em ti. Dize-lhe que o Mestre não deseja ver os seus serviços fraternos sujeitos a solução de continuidade e sim, que, acima de tudo, conserve o trabalho da própria iluminação. Não se interrompa a atividade carinhosa do irmão, mas não se olvide, tampouco, a realidade do homem. 15 Ensina-o a respeitar a beneficência de Deus, a clarear os próprios horizontes e a estruturar a personalidade do discípulo perfeito em si mesmo, a fim de que socorra os necessitados com as medidas da justiça e do amor. 16 Jesus dissemina a caridade, todos os dias, nos mais ínfimos recantos do Globo, e espera que cada habitante do mundo lhe estenda os dons sublimes; entretanto, essa caridade constrói, retifica, educa, eleva e redime. 17 A bondade não endossa a preguiça, nem suprime o valor da necessidade de luta, na evolução das almas. Vai, meu amigo, ainda é tempo. Corrige, amando, a quem adormeceu inadvertidamente na estrada tentadora.
18 O interpelado guardava profunda impressão. Debalde tentava localizar o necessitado nos escaninhos do pensamento. A quem se referia o emissário solícito? Algum dos obsidiados em estudo? Habituado a fixar o exterior, lembrou repentinamente o irmão de nome Donato, que nascera sob o mesmo teto, velho companheiro de trabalho terrestre, o qual, apesar de generoso, nunca lhe aceitara os conselhos e pontos de vista.
19 Penetrando-lhe a ideia recôndita, falou ainda o mensageiro:
— Refiro-me à única pessoa a quem deves e podes impor a necessária reforma espiritual, mesmo à custa de ásperas disciplinas…
O doutrinador ergueu os olhos preocupados e interrogou:
— Trata-se do mano Donato?
20 A entidade lúcida sorriu, entre a compaixão e a serenidade, e, como quem necessita atirar o golpe a descoberto, depois de esgotados os recursos da delicadeza fraternal, acentuou com firmeza:
— Não, Firmino; ainda uma vez estás equivocado; a pessoa necessitada a que aludi, és tu mesmo. O apelo de Jesus refere-se a ti.
Humberto de Campos
(Irmão X)