1 Benício Fernandes era assíduo frequentador de um grupo espiritista, mas, nunca se furtara à enorme contrariedade por não participar da visão direta, dos quadros movimentados da Esfera invisível. Desejava, ardentemente, os dons mediúnicos mais avançados. Fazia inúmeros exercícios para obtê-los. Iniciavam-se os trabalhos habituais e lá estava o nosso amigo em profunda concentração, ansioso por surpreender as visões reveladoras. Tudo, porém, em torno do seu mundo sensorial, era expectação e silêncio. 2 Terminada a reunião, ouvia, velando a própria mágoa, certas descrições de alguns companheiros. Este observara a presença de Espíritos amigos, aquele contemplara maravilhoso quadro simbólico. Falava-se de mensagens, de painéis, de luzes entrevistas. 3 Dentre os visitantes comuns, de passagem pelo grupo, surgiam preciosos casos de fatos vividos. Havia sempre alguém a comentar um acontecimento inesquecível, de sabor doutrinário, ocorrido no seio da família. 4 Benício não conseguia disfarçar a inveja e o desgosto e despedia-se, quase bruscamente, nervoso, fisionomia estranha e taciturna, para entregar-se em casa a pensamentos angustiosos.
5 Por que razão não conseguia perceber as manifestações do Plano espiritual? Seria justo acompanhar o esforço dos companheiros, quando, a seu ver, sentia-se desatendido em suas necessidades?
6 A cousa ia assumindo caráter de terrível obsessão. Nosso amigo não mais ocultava o mal-estar íntimo. Se alguém, depois de uma prece, o interrogava sobre as observações próprias, esclarecia em tom desabrido: “Nada vi, nada sinto. Acredito que sou uma pedra!…”
7 Aquelas atitudes revelavam profunda desesperação aos companheiros preocupados. A situação agravava-se cada vez mais, quando, uma noite, Benício sonhou que aportava ao mundo espiritual, convocado por um amigo desejoso de receber suas notícias diretas. 8 Na paisagem de intraduzível beleza, o desvelado mentor abraçou-o e cogitou das suas amarguras. O pobre homem estava deslumbrado com o que via, sem encontrar meio de expressar a sensação de gozo que lhe ia nalma; todavia, respondeu sem hesitação:
— Meu grande benfeitor, não me posso queixar das minhas lutas terrenas, mas não devo ocultar minha grande mágoa…
9 A respeitável entidade fez um gesto interrogativo, enquanto Benício continuava:
— Desgraçadamente, para mim, embora participe dos esforços de uma nobre agremiação de estudos evangélicos, nunca vi os Espíritos!…
— Mas não estás com a luta temporária da cegueira! — Objetou o amigo venerando, afavelmente. — Esqueces, acaso, que teu plano de trabalho está igualmente povoado de Espíritos em diversos graus da ascensão evolutiva?!… Crês, porventura, que os habitantes da Terra sejam personalidades estranhas à comunidade universal?…
10 Benício Fernandes experimentou imenso choque. Aquela interpretação inesperada lhe desnorteava os pensamentos. Como se desejasse retificar o engano de suas cogitações, acentuou com algum desapontamento:
— Sinto ânsia ardente de contemplar os Espíritos protetores, beijar-lhes as mãos todos os dias, manifestando-lhes meu reconhecimento.
— Esqueceste tua velha mãezinha? — Perguntou o mentor solícito. — Há quanto tempo não te recordas de orar com ela, osculando-lhe as mãos carinhosas? Acreditas, talvez, que os cabelos brancos dispensam os carinhos? E teu tio; esgotado nos trabalhos mais grosseiros do mundo, por ajudar tua mãe, na viuvez? Olvidaste, Benício, esses Espíritos protetores de tua vida?
11 O discípulo da Terra experimentou frio cortante na alma; no entanto, prosseguiu:
— Compreendo… Mas não posso furtar-me ao desejo de entrar em contato com as nobres entidades que nos dirigem as tarefas e conhecer-lhes os superiores desígnios…
— Não recordas teu chefe de trabalho diário? — Interrogou o benfeitor venerável. — Ele é um bom Espírito dirigente. Supões que a tua oficina e a sua administração estivessem no mundo, a esmo? Não desdenhes a possibilidade de integrares elevados programas de ação do teu diretor de trabalhos terrestres. Auxilia-o com a boa vontade sincera. Antes de examinar-lhe as decisões com pruridos de crítica, procura algum meio de contribuir com o teu esforço, honrando-lhe os propósitos.
12 E como o interlocutor estivesse, agora, profundamente emocionado, o amoroso mensageiro continuou:
— Olvidaste os diretores da instituição doutrinária onde buscas benefícios? Aqueles irmãos muitas vezes são caluniados e incompreendidos. Considera-lhes os sacrifícios. Quase sempre sofrem os ataques da malícia humana e necessitam companheiros abnegados para a obra generosa de suas fundações fraternais. É justo que não sejas apenas mero sócio contribuinte de despesas materiais, e sim participante ativo do trabalho evangélico, isto é, sincero sócio de Jesus-Cristo.
13 O aprendiz da Terra sentia-se extremamente envergonhado. Suas ideias modificavam-se em ritmo vertiginoso. Entretanto, na sua feição de homem do mundo, pouco inclinado a ceder das próprias opiniões, redarguiu em tom de mágoa:
— Sim, meu bondoso amigo, reconheço a justiça e a grandeza das vossas observações; entretanto, nas minhas atividades terrenas, queria ver, pelo menos, algum Espírito sofredor, alguma entidade necessitada, ou ignorante…
14 Valendo-se da pausa que se fizera espontânea com os derradeiros argumentos, o carinhoso emissário voltou a dizer:
— Almas desalentadas, entre feridas e angústias? Seres necessitados de assistência e de luz? Não te lembras mais dos filhinhos que o Céu te concedeu? Penetras cegamente os portais da tua instituição, a ponto de não veres os enfermos e derrotados da sorte que ali procuram o socorro do Evangelho de Jesus-Cristo? Nunca viste os que se aproximam da fonte das bênçãos, tomados de intenções mesquinhas e criminosas, terríveis obsessores dos operários fiéis?
15 Benício estava agora extático, demonstrando haver afinal compreendido.
— Andas assim tão esquecido da vidência preciosa que Deus te confiou? — Prosseguia o mentor espiritual, solicitamente. — Se ainda não pudeste contemplar os Espíritos benfeitores, ou malfeitores, que te rodeiam na Terra, como queres conhecer e classificar as potências do Céu? Volta para casa e procura ver!…
16 Nesse instante, Benício sentiu-se perturbado pela explosão de um ruído imenso. Era o relógio que o despertava. Acordou, esfregou os olhos e preparou-se para tomar o trem suburbano, dentro de alguns minutos.
17 Nessa manhã, Benício Fernandes levantou-se, tomou o café, abraçou mais afetuosamente a esposa e os filhinhos. Cada coisa da sua modesta habitação apresentava, agora, aos seus olhos, uma expressão diferente e mais preciosa. Antes de sair foi beijar as mãos de sua mãe paralítica, o que há muito não fazia; perguntou pelo velho tio que saíra mais cedo, e, engolfado em grandiosos pensamentos, dirigiu-se para o trabalho, meditando na Providência Divina que lhe havia permitido receber uma lição para o resto da vida.
Humberto de Campos
(Irmão X)