1 Aproximava-se a noite com seu leque de estrelas. Frente às águas marulhosas do Tiberíades, o Mestre descansava com os discípulos.
2 O grupo dos doze vinha de experimentar certas surpresas com o famoso sermão do monte. ( † ) Nesse programa divino, Jesus salientara a necessidade de aplicação das ideias renovadoras do Evangelho, a fim de que o mundo conhecesse o labor dos bem-aventurados. Seu louvor aos aflitos, sua bênção aos pacíficos, sua palavra amorosa e doce aprovando os simples de coração haviam trazido novos sentimentos ao ânimo popular. 3 Os companheiros, no entanto, lutavam ainda por aprender em toda a extensão os seus ensinos relativamente aos inimigos. As observações do Mestre, nesse sentido, pareciam-lhes impraticáveis e transcendentes. Como retribuir o mal com o bem? Como estimar os adversários, bendizer os ingratos, amparar os caluniadores?
4 Participando da perplexidade geral, André adiantou-se, quebrando-se o silêncio caricioso.
— Senhor, — disse, comovidamente — sinto que devo aproveitar este momento de paz para dissipar minhas dúvidas. Não sei se ouvi mal, entretanto, tive a impressão de haverdes aconselhado o máximo de complacência para com os inimigos quando instruístes a multidão com os últimos ensinamentos que dispensastes no monte. Se não me engano, recomendastes boa disposição de oferecermos a face direita quando alguém nos fira a esquerda… Mandastes bendizer os que nos perseguem e caluniam…
5 O Mestre pareceu meditar alguns momentos, fitou no discípulo os olhos muito calmos e falou:
— Repetirei minhas observações afetuosas para que não as esqueçais. A vós que ouvis digo: amai aos vossos adversários, fazei bem aos que vos aborreçam, bendizei dos que vos maldigam, trabalhai em favor dos que vos caluniem!
6 — Quão difícil será a perfeita execução de tudo isso! — exclamou o irmão de Pedro, com um suspiro.
— É preciso não esqueçais — replicou Jesus, com bondade — que falei “a vós que ouvis”. Naturalmente que as minhas recomendações não se dirigem aos homens fracos de entendimento, ainda incapazes da reta percepção de minhas palavras.
7 E depois de uma pausa, em que todos os presentes se revelavam surpreendidos, o Mestre continuou:
— Se amardes tão-somente aos que vos estimam, que recompensa tereis? Se fizerdes o bem apenas aos que sejam bons para convosco, onde o mérito das vossas resoluções? Acaso os grandes pecadores não procedem assim? Os fariseus hipócritas não fazem o mesmo?
8 Ante as expressões firmes de sua lição sábia, André calara as demais indagações, enquanto os outros companheiros refletiam em silêncio.
— Tarde ou cedo — concluiu Jesus, com generosa serenidade — estareis convencidos de que permaneceis na Terra para uma tarefa diferente.
9 Esse acontecimento era recordado por nós, em grande reunião espiritual, no Rio de Janeiro, quando se verificou o fechamento das sociedades espiritistas, em caráter temporário, por determinação das autoridades policiais, no mês de abril último [1941]. A medida não desconcertara somente aos discípulos encarnados, cheios de ótimas intenções. Algumas entidades do Plano invisível aos olhos naturais, que ainda não chegaram a tudo compreender, na sua indigência, e em cujo número me encontro eu, participariam, igualmente, da perplexidade que invadira o espírito geral. 10 Eram portas generosas que se fechavam a sofredores e necessitados, por ordem dos que deviam assegurar o bem ao público; eram santos serviços adiados, possibilidades de socorro que se perdiam, oportunidades divinas que talvez não voltassem. Aos nossos olhos, a providência figurava-se descabida. Ante a nossa surpresa dolorosa, convocou-se uma reunião de grandes proporções para esclarecimento geral.
11 Um santo mensageiro das forças que amparam o Evangelho no Brasil nos veio assistir nos trabalhos que se faziam necessários. Compreendendo minha situação de pobreza espiritual, fiquei a um canto, observando os movimentos dos generosos amigos da coletividade carioca. O esclarecido emissário empolgou a nossa atenção por largo tempo, fazendo-nos sentir a grandeza da missão evangélica, cujos objetivos vão muito além da justiça, desdobrando-se nas regiões do amor infinito. Comentou brilhantemente a posição dos trabalhos dos novos discípulos, referindo-se aos irmãos infelizes que se atiram à exploração inferior, em nome de princípios sagrados.
12 Em dado instante, porém, um dos nossos companheiros mais apaixonados inquiriu, exclamando:
— Mas será justo o fechamento de casas tão respeitáveis como essas em que se pratica a abnegação e a caridade!?! Não será tudo isso uma resultante da perseguição de médicos e sacerdotes?
13 O mensageiro sereno replicou:
— Com referência à tua primeira interrogação, devemos lembrar, com Paulo de Tarso, que tudo coopera para o bem dos que amam a Deus ( † ) e quanto à segunda só nos cabe louvar e bendizer os que hajam contribuído para que os nossos círculos de ação recebam os benefícios justos, em nome do Senhor!
14 — Mas dói muito observar determinações semelhantes — redarguiu o companheiro, algo desapontado. — Os espiritistas são amigos da renúncia, mantêm longos serviços de beneficência, são portadores de providências justas aos que sofrem…
— Entretanto, — admoestou carinhosamente o instrutor — a cruz deve ter infligido inomináveis padecimentos ao divino Enviado. Acaso ignoram os novos discípulos quanto lhes compete sofrer por amor ao seu nome? O aprendiz sincero do Mestre estará em luta de testemunho até o fim de seus dias materiais. Em todas as comunidades religiosas, apenas os bons praticantes são incomodados. Isso é a regra geral e os espiritistas devem estar satisfeitos por ser incomodados em massa!
15 O esclarecimento era convincente e irrespondível, porém, o interlocutor, o apaixonado companheiro recém-chegado dos labores do mundo revidou, com certa energia:
— Entretanto, temos de considerar o fundamento legal da decisão. A justiça deve ser igual para todos e falo aqui dos decretos propriamente humanos. Se há uma liberdade religiosa, será justo que os nossos amigos encarnados proclamem seus direitos. Além do mais, Jesus não aconselhou dar a Cesar o que é de Cesar e a Deus o que é de Deus?
— Sim, — disse o iluminado emissário, sem se perturbar — a nossa tarefa não é a de recorrer a organismos transitórios da Terra, e sim a de exemplificar o amor, em atos de trabalho, dedicação e humildade. Os discípulos sinceros hão de saber encontrar a conformação, sem descurar as lições do Mestre. E se Jesus recomendou dar a Cesar o que é de Cesar, nunca se lembrou de mandar que Cesar nos desse o que é nosso, porque os bens que nos pertencem vêm de Deus!
16 O companheiro de lutas teve um sorriso de compreensão e calou-se. Foi após esse incidente que o magnânimo instrutor se referiu às perguntas de André e às respostas do Cristo, junto às águas formosas e mansas do maravilhoso lago de Genesaré, concluindo:
— Tarde ou cedo os espiritistas ficarão convencidos de que permanecem na Terra para uma tarefa diferente. n
Humberto de Campos
(Irmão X)
Reformador — Junho de 1941.
[1] Segundo consta do original, a mensagem foi psicografada em 23 de maio de 1947.