1 Quando o Senhor determinou que algumas das Virtudes Celestes viessem ao mundo, trazendo a Felicidade para as criaturas, a Fé acercou-se do Homem, antes das demais, e disse-lhe compassiva:
— O Poder Superior governa-nos o destino. Confia na Providência do Pai Misericordioso e aprende a contemplar mais longe…
2 O Homem sorriu e replicou:
— O tempo urge. Viverei seguro na máquina de ganhar e guardar facilmente. Não aceito outras deliberações que não sejam minhas.
3 Veio a Humildade e pediu:
— Meu filho, não te vanglories do que possuís, porque Deus concede os recursos no momento preciso e retoma-os, quando julga oportuno. Sê simples para contentar a ti mesmo.
— O tempo urge, — exclamou o Homem, sarcástico, — e se o minuto é meu, que me importa a eternidade? Gozarei o dia, segundo meus desejos. Não tenho necessidade de submeter-me para ser feliz.
4 Chegou a Bondade e suplicou:
— Ajuda no caminho para que outros te beneficiem. Nem todos os instantes pertencem à primavera. Sê compreensivo e generoso! O rico pede cooperação fraternal, a fim de que a fortuna o não encegueça; e o pobre reclama concurso, para que a escassez não o conduza ao desespero.
— O tempo urge, — gritou o Homem, — e não posso deter-me em ninharias. Quem dá, espalha; quem nega, concentra. Minha defesa aparece em primeiro lugar.
5 Surgiu a Paz e implorou:
— Amigo, esquece o mal e glorifica o bem. Não entronizes a discórdia. Cede em favor dos necessitados. Não te detenhas no egoísmo voraz.
— O tempo urge, — respondeu o Homem, — e se eu renunciar em benefício alheio, que será de mim? Cedendo, perderei. Não guardo vocação para a derrota.
6 Em seguida, compareceu a Paciência e aconselhou:
— Age com calma. Não exijas serviçais em toda parte, porque a tarefa de outros é igualmente respeitável. Socorre os semelhantes, conscientes das próprias necessidades espirituais. Não esmagues as esperanças dos pequeninos e atende à justiça onde estiveres.
— O tempo urge, — repetiu o Homem irônico, — e as horas correm excessivamente apressadas para que me entregue a problemas de tolerância. Fixando direitos alheios, não perceberei os que me dizem respeito.
7 Logo após, abeirou-se dele a Compaixão, implorando:
— Irmão, apieda-te dos fracos!…
O interpelado não lhe permitiu continuar.
— O tempo urge, — bradou, — e a questão dos pusilânimes não me atinge. Sou forte e nada possuo de comum com os inúteis e inábeis.
8 A Caridade apareceu e apelou:
— Meu amigo, perdoa e ajuda para que a tranquilidade more contigo. Tudo passa na carne. A eternidade reside em teu coração. Por que não te amoldares à lei do amor, a benefício da própria iluminação?
O Homem, porém, redarguiu, entediado:
— O tempo urge! Deixem-me! Conheço o caminho e vencerei por mim. Quem perdoa, opera contra a dignidade pessoal e quem muito ampara desampara-se.
9 Então, reconhecendo o Senhor que o Homem estragava o tempo e consumia a vida, inutilmente, sem qualquer consideração para com as Virtudes salvadoras, enviou-lhe alguns dos seus Poderes, de modo a chamá-lo a Juízo.
10 Aproximou-se inicialmente a Dor.
Não lhe deu conselho algum.
Privou-o do equilíbrio orgânico e acamou-o.
O Homem modificou gesto e linguagem, suplicando:
— Quem me acode? Compadeçam-se de mim!…
Mas a Dor respondeu apenas:
— O tempo urge.
11 Logo após, veio a Verdade e apodreceu-lhe o corpo.
O Homem rogou:
— Piedade! Piedade! Salvem-me!…
A Verdade, contudo, limitou-se a dizer:
— O tempo urge.
12 Em seguida, veio a Morte.
O Homem reconheceu-a, apavorado, e pôs-se a gritar:
— Livrem-me do fim! Não posso partir!… Não estou preparado!… Socorro!… Socorro!…
A Morte, no entanto, repetiu:
— O tempo urge.
E arrebatou-lhe a alma.
Irmão X
(Humberto de Campos)