1 Conta-se que Tiago, o velho apóstolo que permaneceu em Jerusalém, demandava Betânia, junto de Matias, o sucessor de Judas, no colégio dos continuadores do Cristo, quando foi lembrada, repentinamente, a figura do Iscariotes.
2 Contemplando um pomar vizinho, Tiago comentou, em resposta às observações do companheiro:
— Este sítio lembra o horto em que o Mestre foi traído. As árvores próximas parecem esperá-Lo, às lições do crepúsculo, quando o Senhor estimava as meditações mais profundas. Recordo-me ainda do instante inesperado, não obstante os seus avisos. Judas vinha à frente de oficiais e de soldados que empunhavam lanternas, varapaus e espadas. Contavam encontrá-Lo à noite, porque Jesus muitas vezes se alegrava em ministrar-nos ensinamentos, à doce claridade noturna. O Mestre, porém, vinha ao encontro dos adversários e estava sorridente e imperturbável.
3 Olhos mergulhados nas reminiscências, o apóstolo relembrava:
— Adiantou-se o infame e beijou-o na face. Estabeleceu-se o tumulto e consumou-se a prisão do Messias, começando, desde então, o nosso martírio.
4 — Que insolência! Que homem caviloso esse Judas terrível! — Replicou Matias, inflamado no zelo apostólico, — dói-me evocar o vulto hediondo do ingrato. Como não vacilou ele no crime ignominioso?
5 — Será Judas, para sempre, a nossa vergonha, — exclamou Tiago, arrimando-se ao bordão rústico, — muitas vezes ouço a argumentação de Pedro, que busca defendê-lo. Ouço e calo-me, porque, para mim, não existem palavras que o escusem. Esse traidor será um réu diante da Humanidade. Foi ele quem entregou o Mestre aos sacerdotes criminosos e provocou a tragédia do Gólgota. Não tem advogados, nem desculpas. Foi perverso, positivamente infame.
6 — Como se abalançou a semelhante absurdo? — Indagou o interlocutor, — tudo lhe dera o Senhor, em bênçãos eternas!
7 — Foi o espírito diabólico da ambição desregrada, — tornou Tiago, em voz firme, — Judas queria absorver a direção de nosso grupo, ombrear com os rabinos do Templo, cativar a simpatia dos romanos dominadores, criar uma organização financeira, submeter o próprio Senhor à sua vontade. Pedro costuma afirmar que o celerado não previa as consequências do ato de traição, nem alimentava o propósito de eliminar o Messias amado; contudo, não posso admitir a suposição. Judas, por certo, condenou o Senhor deliberadamente à morte, e talvez fosse ele o inspirador sutil dos tormentos na cruz. João e Pedro asseveram que o infeliz se arrependeu e chorou; entretanto, chego a duvidar. Um traidor como aquele não encontraria pranto nos olhos. Era demasiadamente perverso para sofrer por alguém.
8 — Com efeito, — observou Matias, — não devia passar de criminoso vulgar. A sua memória inspira-me compaixão e vergonha…
9 Depois de ligeira pausa, indagou:
— Chegou a vê-lo antes da morte?
— Não, — replicou Tiago, de maneira significativa, — e não sei se me comportaria fraternalmente se ainda o tivesse ante os olhos. O traidor morreu nos laços diabólicos que teceu com as próprias mãos. Devia descer aos infernos, como desceu, envolvido em trevas densas. Era um perverso gênio das potências inferiores.
10 — E os familiares desse homem cruel? — Interrogou Matias, curioso, — porventura lhe aprovaram a conduta satânica?
11 Tiago ia responder, mas alguma coisa lho impediu. O velho apóstolo arregalou os olhos, interrompeu a marcha e perguntou ao companheiro:
— Quem é aquele que vem lá, vestido em luz resplandecente?
12 Assombrado, Matias redarguiu:
— Também vejo, também vejo!…
13 Banhado, agora, em lágrimas Tiago reconheceu o Messias. Lembrou a narrativa dos discípulos, a caminho de Emaús, ajoelhou-se reverente, e falou baixinho:
— É o Senhor!
14 Aproximou-se Jesus com a majestosa beleza da espiritualidade sublime e parou, por instantes, ao lado dos companheiros. Contemplou-os, compassivamente, como Mestre afetuoso junto a dois aprendizes humildes. Matias chorava, sem força para erguer os olhos. Tiago, em pranto, ousou fixá-lo e rogou:
— Senhor, abençoai-nos!
15 Jesus estendeu a destra em sinal de amor e, como nada dissesse, o velho galileu considerou:
— Senhor, podemos voltar para Jerusalém, a fim de receber a vossa vontade e cumpri-la!
— Não, Tiago, — respondeu o Cristo, doce e firmemente, — não vou agora à cidade, sigo em missão de auxílio a Judas.
16 E sem acrescentar coisa alguma, continuou a excursão solitária, em sublime silêncio.
Nessa noite, quando voltou a Jerusalém, o velho Tiago insulou-se da comunidade, e, tomando os pergaminhos onde começara a escrever sua bela epístola à cristandade, ( † ) anotou, em lágrimas, suas famosas considerações sobre a língua humana.
Irmão X
(Humberto de Campos)