1 A Senhora Mercedes Nunes desde muito fora chamada à tarefa espiritual; entretanto, não se adaptara aos serviços mediúnicos, aos quais fora conduzida para o trabalho de redenção.
2 Os companheiros de Doutrina esforçavam-se para despertar-lhe a noção de responsabilidade e os benfeitores desencarnados rodeavam-na de apelos e incentivos.
3 Dona Mercedes, porém, não obstante as nobres qualidades que lhe exornavam o caráter, não se conformava:
— Sou extremamente nervosa, — costumava dizer, — não me resigno a determinadas situações!…
— Mas, a senhora não vê as entidades espirituais, não lhes ouve as advertências diretas? Perguntava um amigo bem-intencionado.
4 — Sim, sim… — Respondia, confundida não alimento qualquer dúvida. Os Espíritos conversam comigo naturalmente. Ouço-lhes a palavra sábia e amiga, registo-lhes os convites generosos. Explicam-me os impositivos de trabalho, salientam a tarefa depositada em minhas mãos; no entanto, vejo-me incapacitada, em vista do sistema nervoso deficiente. 5 A visão de almas sofredoras e de pessoas doentes me apavora. Causa-me incoercível mal-estar e indizível temor. E, por outro lado, caso se operasse o meu desenvolvimento mediúnico, de que modo poderia eu satisfazer as filas intermináveis de mendigos, aflitos e desesperados da sorte que me cercariam mesmo neste mundo?! Ah! realmente, não posso, não me sinto preparada…
6 Perante afirmativas tão peremptórias, os melhores amigos se recolhiam ao silêncio, desapontados.
7 Se Dona Mercedes, guardando valores medianímicos tão extensos, se declarava incapaz de movimentar o patrimônio espiritual com que fora agraciada pelo Alto, que fazer senão aguardar a renovação de atitudes, por parte dela própria?
8 O marido, sumamente devotado aos serviços da caridade cristã, rogava-lhe, com insistência:
— Mercedes, por que não nos consagramos à missão da fraternidade e da luz? Não concordas, querida, que a inexistência de filhos em nosso jardim conjugal é forte argumento a favor de minha interrogação? Estamos quase sós, dispomos de belas oportunidades de tempo e expressivos recursos materiais. Por que não nos dedicarmos à sementeira do bem? quantas dores poderemos aliviar, quanto consolo a distribuir!… Além de tudo, Mercedes, a vida pede idealismo criador.
— Ora, Joaquim, — acentuava a esposa, ferida no amor-próprio, — e meus nervos?
9 E, denunciando a recôndita má-vontade, acrescentava:
— Receio, igualmente, as mistificações, as contrariedades… Abertas as portas de nossa casa às incursões públicas, não teríamos sossego… Não pertenceríamos ao lar, que passaria, de imediato, à condição de propriedade alheia… A pretexto de praticar o bem, seríamos fatalmente arrastados a escuro turbilhão…
10 — Não tanto, — objetava o companheiro, previdente, — aprenderíamos a aproveitar os minutos, atrairíamos grande família pelos laços do coração e estaríamos, sem dúvida, adquirindo a preciosa ciência do controle próprio.
11 A esposa, entretanto, revidava, irritadiça:
— E meus nervos doentes? Impossível!…
12 Joaquim sorria, algo desencantado, e continuava observando:
— Não transformes pequenos dissabores em fantasmas. Assinalemos a obra de nossa própria elevação, ainda por fazer; vejamos, antes de tudo, as necessidades de cooperação com o Cristo!
13 Dona Mercedes, no entanto, interceptava-lhe as palavras, clamando, intempestiva:
— Minha saúde não permite. Não disponho de enfibratura nervosa para tolerar a contemplação de entidades desequilibradas do outro mundo, nem resistência para acomodar-me com os enfermos deste… Positivamente, não posso…
14 Como o esposo a fitasse serenamente, sem reprovação e sem desalento, concluía, enfadada:
— É assunto para outra reencarnação…
15 Nas reuniões doutrinárias era amparada por advertências sublimes.
— Mercedes, minha filha, — escrevia-lhe a mãezinha carinhosa, que, desde muito, a precedera no túmulo, — vale-te da presente oportunidade para a renovação em Jesus. A reforma interior reclama trabalho, sacrifício e constantes demonstrações de boa vontade. 16 Lembra-te de que o Senhor foi altamente magnânimo para contigo, abrindo-te as portas a soberanas edificações espirituais. Acalma os impulsos nervosos e coopera com os teus irmãos na fé, alicerçando o futuro divino. Ninguém trai, impunemente, os deveres essenciais a cumprir. 17 Por que a irritabilidade perante a dor? Porventura dela estaríamos isentos? O obstáculo é serviço educativo para aquele que o encontra e para quem ajuda a solucioná-lo. Grandes sofrimentos significam grandes e abençoadas renovações. É indispensável sondar o segredo da tempestade, para que possamos receber-lhe a mensagem divina. Tremer ante as paisagens dolorosas não representa sensibilidade construtiva. Precisamos firmeza no desempenho das obrigações mais justas. 18 Admitirias, acaso, a concessão celestial sem responsabilidade terrestre ou as dádivas do Alto sem objetivo sagrado? Se enxergas aqueles que já penetraram o país da morte e se lhes ouves a voz, é imperioso recordar que não deterias semelhantes possibilidades sem fins valiosos. Colabora, pois, nas edificações do bem, aproveitando o melhor tempo.
19 Dona Mercedes, no entanto, apesar de receber as mensagens maternais, sentindo-lhes o conteúdo superior, não se rendia à verdade.
Afirmava-se esgotada, abatida, exausta.
20 E como a Sabedoria Divina não pode esperar pelos caprichos humanos, a fim de que se processe a obra do aperfeiçoamento geral, os recursos mediúnicos da serva imprevidente minguaram, pouco a pouco, fazendo-se cada vez mais imprecisos, até que desapareceram completamente, com a passagem dos anos.
21 Rolavam os dias, devagarinho, e Dona Mercedes prosseguia atenta aos caprichos pessoais.
22 Continuava crente, recordava os fenômenos observados por ela mesma, mas enquanto Joaquim se dedicava, quanto lhe era possível, ao bem dos outros, a esposa refugiava-se nos pontos de vista que lhe eram peculiares.
23 Não desejava preocupar-se nem responsabilizar-se, para não agravar os padecimentos do corpo demasiado sensível.
24 O tempo, entretanto, encarregou-se de transformar-lhe a concepção doentia.
25 Quando a velhice lhes bateu à porta, Joaquim partiu em primeiro lugar, com a paz do trabalhador fiel ao campo até ao fim do dia.
26 Começou, então, a rude prova de Dona Mercedes. A saudade amortalhou-lhe a alma na viuvez imprevista.
27 Onde se ocultava, agora, o companheiro carinhoso? Sentia-se amargurada, sem ninguém. Estava em repouso físico, no lar silencioso, adornado e calmo, como sempre desejara; no entanto, não conseguia pacificar o íntimo. A solidão assustava-a. Suspirava pela companhia de alguma afeição anônima que lhe mitigasse a fome de fraternidade, pretendia ver o esposo e receber-lhe a palavra amorosa e conselheiral…
28 Como retomar as possibilidades mediúnicas de outra época? — Inquiria, tristonha.
29 Faces engelhadas, sob rala cabeleira de neve, muito trêmula e esperançosa, dirigiu-se ao velho grupo doutrinário, na ânsia de ouvir a mãezinha, de novo, já que se lhe fizera inacessível a palavra do companheiro.
30 Reuniu-se apenas com a médium da casa e mais duas irmãs. Pedia mensagem mais íntima, em renovada orientação materna, de modo a solver o seu problema mediúnico.
31 Finda a sentida prece, a genitora prestimosa tomou a palavra com saudações afáveis e doces.
32 Dona Mercedes, em pranto, expôs o martírio do coração atormentado. Queria reapossar-se da clarividência. Aguardava, ansiosa, o instante de rever o esposo inolvidável e contribuir na missão da verdade e da luz.
33 A entidade afetuosa, em terna quietude, deixou que a filha derramasse todo o fel que se lhe represava na alma ulcerada e respondeu, por fim, em voz triste:
— Ah! Mercedes; por mais de vinte anos, convidei teu coração à redentora tarefa! Por que te demoraste tanto na decisão? Agora, filha, o dia está quase findo… enferrujou-se a enxada, sem a necessária e bendita utilização. Não quiseste nem mesmo combater as impressões nervosas, vagas e infantis, acreditando mais na moléstia que na saúde. O tempo não podia esperar por ti e, agora, é necessário que esperes pelo tempo!..
— Deus meu! — Exclamou a viúva, amargurada, — será mesmo impossível?
34 E ante as suas lágrimas convulsas, respondeu a mãezinha, angustiadamente:
— Sim, minha filha, não te posso enganar com o falso conforto. A tua tarefa mediúnica, incontestavelmente, agora, é assunto para outra reencarnação.
Irmão X
(Humberto de Campos)