1 Rosalino Perneta alcançara os círculos da morte, em falência integral.
Extrema bancarrota.
Perdera todas as ricas possibilidades que o Senhor lhe colocara nas mãos.
2 Estava sozinho, sob o látego do remorso e do sofrimento.
Por anos longos viveu assim o desventurado, chorando os dias perdidos e implorando a concessão de oportunidades novas.
3 Os lustros sucediam-se uns aos outros, quando Sizínio, velho amigo espiritual, veio ao encontro dele, fazendo-se-lhe visível.
4 Rosalino caiu-lhe aos pés, em soluços.
— Meu abençoado amigo, — clamou em lágrimas, — por que tamanha desdita? Vivo num inferno de sombras e padecimentos incríveis. Onde está Deus que se não compadece de minha miserabilidade?
5 Sizínio contemplou-o, paternalmente, e observou:
— Não, Perneta. Não te lastimes de semelhante modo. Antes de tudo, recorda os próprios erros e lava o coração nas águas do arrependimento. Não atendeste aos deveres humanos, não cultivaste o campo da espiritualidade enobrecida, mergulhaste a alma em verdadeiro banho de lodo. Que fazer, agora, senão suportar a reparação com paciência? Tem confiança e solidifica os bons propósitos.
6 O infeliz tentou enxugar o pranto copioso e, depois de outras considerações, alusivas ao passado, interrompidas pelas advertências e frases consoladoras do amigo espiritual, Rosalino terminou:
— Ah! Se eu pudesse voltar!… Se eu pudesse renascer!…
7 E, fixando no benfeitor o olhar dorido, acentuava:
— Sizínio, meu grande irmão, não poderias obter-me a oportunidade nova? Auxilia-me, por piedade…
8 Intensamente comovido, o interlocutor prometeu ajudá-lo no que estivesse ao seu alcance.
E, com efeito, em breve Sizínio regressou à sombria furna, trazendo esperanças novas.
9 Rosalino recebeu-o, radiante.
— Perneta, — disse o amigo generoso, — sabes que o aval é ato grave para quem lhe assume a responsabilidade.
— Sei, sim, — respondeu o mísero.
10 E o benfeitor prosseguiu:
— Não ignoras também que, por enquanto, não tens direito a reclamação alguma.
— Reconheço.
11 — Desconsideraste as oportunidades divinas, menosprezaste a família, o trabalho, o corpo físico…
— Tudo é verdade, — gemeu o infeliz.
12 — Pois bem, — continuou a entidade amiga, — não encontrei nenhuma expressão valiosa em tua existência última, na qual me pudesse basear, a fim de pedir alguma coisa em teu nome. Em razão disso, não somente reforcei tuas súplicas, como também solicitei um empréstimo para a tua experiência nova. 13 Há na Terra grande movimento de restauração do Evangelho, renovando esperanças e redimindo corações. Terás nele humilde e valiosa posição de trabalhador e ensinarás, no Plano dos encarnados, o caminho justo aos necessitados da Esfera visível e invisível. 14 Entretanto, meu caro, o serviço não será fácil, porque não se resumirá a questão de palavras. Serás constrangido a viver o ensinamento em ti mesmo, não atenderás aos caprichos próprios, não procurarás o contentamento da ilusão, mas, sim, atenderás a tudo o que represente interesse de Jesus, no círculo das criaturas. Deves muito aos homens e encontrarás no empréstimo a que me refiro os recursos indispensáveis ao pagamento.
15 Rosalino ouvia, feliz.
— Recomendo, com insistência, — acentuou Sizínio, criterioso, — não esqueças a tua condição de devedor. O lar, o carinho dos teus, a bênção materna, a saúde física, o ambiente de trabalho, o pão cotidiano, o campo de testemunho cristão e todas as demais possibilidades constituirão o precioso depósito do Senhor confiado em caráter experimental às tuas mãos, porque não dispões ainda do justo merecimento. Recorda que vais movimentar um patrimônio que te não pertence por direito e que receberás, por bondade de Jesus, semelhante concessão a título precário. Vê como te comportas!…
16 Prometeu Rosalino fiel observância ao compromisso.
Fez cálculos, expôs o que pensava do futuro e até marcou o tempo de materializar no mundo as promessas que formulava, entusiasta, com o grande otimismo do devedor, junto à fonte de recursos novos.
17 Sizínio mobilizou as medidas necessárias e o amigo teve a felicidade de renascer junto de pais cristãos que, desde o berço, lhe forneceram sublimes notícias do Cristo.
18 Perneta, no entanto, nas primeiras recapitulações, demonstrou a maior teimosia e a antiga má-vontade.
19 Não valiam lições de Jesus no Evangelho, conselhos paternais e sugestões superiores e indiretas de Sizínio que o acompanhava, solícito, do Plano espiritual. Apesar de advertido, assistido e guiado, Perneta não queria saber de problemas fundamentais do destino.
20 Apossara-se novamente da vida terrestre, como o fauno sequioso de prazer na floresta das emoções planetárias.
21 Convidado ao serviço de espiritualização, não respondeu à chamada, alegando que os pais cometiam a loucura de se devotarem ao bem dos outros. Dizia-se incompreendido, inadaptado e, se alguém o compelia a raciocínios mais lógicos, reportava-se à escassez de tempo e à falta de oportunidade.
22 Voltou vagarosamente aos mesmos erros criminosos de outra época. Casou-se, foi esposo e pai, mas nunca se rendeu, de fato, às obrigações do lar, junto da esposa e dos filhos.
23 Borboleteava, à procura de sensações que lhe saciassem a vaidade.
Quando alguma voz amiga se referia à espiritualidade, esquivava-se ao assunto, apressado. Não pretendia cogitar de assuntos referentes à religião, à morte, ao “outro mundo”, — dizia, enfático e orgulhoso.
24 Sizínio, vigilante, desvelara-se no sentido de chamá-lo aos compromissos assumidos; no entanto, tão grandes faltas perpetrara Rosalino, que, ao atingir ele os quarenta e cinco anos, outros amigos espirituais da família que o recebera, generosamente, começaram a reclamar providências ativas. Em vão se movimentou o avalista, no propósito de acordá-lo para as realidades essenciais. Perneta, porém, não respondia satisfatoriamente. Declarava-se muito bem, desenvolvendo embora a longa série de disparates.
25 A experiência, todavia, chegava ao fim.
Em virtude da rebeldia e da ingratidão de Rosalino, os superiores espirituais intimaram Sizínio a retirar o empréstimo concedido. Não obstante a amargura, o velho amigo foi obrigado a obedecer.
26 O avalista iniciou o trabalho, alimentando, ainda, a esperança de que o companheiro despertasse.
27 Operou devagarinho, ansioso de observar-lhe alguma reação benéfica, mas o desventurado não sabia senão revoltar-se e ferir.
28 Primeiramente, a esposa de Perneta foi chamada à vida espiritual; em seguida, os filhinhos separaram-se de sua companhia. A casa em que se lhe situara o ninho doméstico foi a leilão para pagamento de vultosas dívidas. Perdeu, mais tarde, o emprego e a consideração dos amigos. Os bens emprestados foram sendo recolhidos por Sizínio, lentamente.
29 Rosalino, porém, não mostrava qualquer sinal de renovação.
Foi irredutível na maldade, na ingratidão, na blasfêmia.
30 Por fim, o avalista retirou-lhe a última concessão, que era a saúde física.
31 No leito humilde de hospital, reconsiderou Perneta a situação, refletiu com mais clareza nas bênçãos de Deus e meditou na eternidade, desejando voltar no tempo, mas… era tarde.
32 Não valeram rogativas e prantos.
Em manhã muito fria, absolutamente isolado de todos, apartou-se do corpo de carne, premido pelas exigências da morte.
33 Recomeçou para ele, então, o angustioso caminho.
Recordou o empréstimo, a dedicação do benfeitor, os compromissos anteriores, a bondade que o cercara em todos os instantes, no transcurso de sua experiência, na Terra. Implorou a presença da esposa, nas densas trevas de que se rodeava, mas o silêncio inalterável era a única resposta às suas súplicas. Não obstante envergonhado, rogou a visita de Sizínio, mas o benfeitor, agora, parecia inacessível.
34 Desdobraram-se muitos anos, quando, um dia, o amigo dedicado se fez visível, novamente.
— Sizínio! Sizínio! — Gritou Perneta, em lágrimas dolorosas, — ajuda-me! Compadece-te de mim! Estende-me as tuas mãos, nobre amigo! Perdoa-me e atende-me!
E, antes que o velho companheiro respondesse, desfiou o rosário das justificativas, das reclamações, dos remorsos e desculpas.
35 Quando terminou, em soluços, o protetor fixou nele o olhar muito lúcido e asseverou:
— Por enquanto, Rosalino, ainda não paguei todas as consequências do empréstimo que te foi concedido e do qual fui espontaneamente avalista. Tuas lágrimas, agora, não me sensibilizam tão fortemente o coração.
Ofereci-te o suor que salva, mas preferiste o pranto que lamenta. Pede, pois, ao Senhor que te renove a esperança, porque, para voltar ao empréstimo contraído, é muito tarde!…
Irmão X
(Humberto de Campos)