1 Nos primeiros tempos da nova fé, Aureliano Correia não regateava as manifestações entusiásticas.
— Sou espiritista, — exclamava convicto, — pertenço às fileiras dos discípulos sinceros da Nova Revelação. Tenho a minha tarefa a cumprir.
2 O rapaz vivia embriagado de júbilo. Comparecia pontualmente às reuniões doutrinárias, comentava, ardoroso, os ensinamentos ouvidos. Expunha projetos grandiosos, relativamente ao futuro. Instituiria núcleos de fé viva, disseminaria fundações de amor fraternal. Afirmava, sem medo, a nova atitude e prometia realizações seguras e generosas.
3 Não se contentava em estabelecer compromissos com a fé. Aureliano ia mais longe. Referia-se ao Espiritismo na política, na filosofia, nas artes, nas ciências. Trabalharia sem cessar, dizia ele, e criaria diretrizes novas e edificações mais sólidas para o espírito humano.
4 Continuava atravessando a região do entusiasmo fácil, quando, certa noite, no parcial desprendimento do sono, foi conduzido à presença de um de seus orientadores espirituais.
O companheiro exultava.
5 A entidade amiga falou carinhosamente, depois de abraçá-lo:
— Aureliano, que o Senhor te abençoe as esperanças de redenção. Teu caminho cobre-se, agora, de júbilos santos. Guardas, meu amigo, a divina lâmpada no coração. A bênção do Eterno Pai segue tuas aspirações de progresso. Sê bendito e feliz, filho meu! Teu ideal de crente fervoroso será uma roseira florida no jardim do Mestre Generoso e o perfume das rosas abertas constituirá sagrado incenso de fé em teu espírito idealista.
O rapaz chorava de contentamento e emoção.
6 E o sábio mentor prosseguiu, calmo e bondoso:
— Atingirás a praia sublime da paz consoladora e, seguro na terra firme das convicções sadias, observarás, espiritualmente, de longe, o oceano revolto do mundo, embora continues em serviço de abnegação ativa a benefício dos nossos irmãos encarnados, aflitos e vacilantes, na grande jornada, através das ondas vorazes da ilusão. Receberás consolações celestes, ao contato dos amigos espirituais que te esperam, deste lado da vida. 7 Conhecerás a profunda alegria da luz eterna, no tabernáculo da alma crente. As dificuldades da Terra surgirão aos teus olhos, na qualidade de benfeitoras. No seio das lutas mais fortes, sentirás o beijo caricioso da amizade dos Servos Glorificados de Deus, invisíveis no mundo aos olhos mortais. Cada dia será uma taça de oportunidades benditas ao teu coração e cada noite um parque de claridades compassivas, onde meditarás nas Dádivas Celestes, entre a alegria e o reconhecimento. 8 Alcançarás o bem-estar de quem encontrou o amor universal, a compreensão de todos os seres e o respeito a todas as coisas e, venturoso, estarás a caminho de Esferas iluminadas, a distância dos Círculos inferiores da carne, seguindo com Jesus, amparado por seu divino amor…
9 Enquanto a entidade fazia súbita parada, sentia-se Aureliano o mais feliz dos homens. Seria o aprendiz superior, discípulo dileto do Cristo. Não cabia em si de satisfação.
10 O orientador devotado, porém, quebrou a pausa longa e tornou a falar:
— Mas, como sabes, Aureliano, não existe concessão sem responsabilidade. Alguma coisa darás de ti mesmo, para receberes tantas bênçãos. Para que te integres na posse definitiva de semelhante tesouro, é necessário que abandones a caverna dos instintos inferiores e que sejas um homem renovado em Cristo-Jesus. 11 Não poderás perder o Mestre de vista, procurando seguir-lhe os passos, desde a manjedoura de submissão a Deus até o cuspo irônico do povo de Jerusalém, a fim de que o encontres no Calvário, a caminho da ressurreição. É indispensável seguir Jesus e alcançá-lo, no monte do testemunho, diante dos homens e da suprema obediência ao Eterno Pai. 12 Serás bafejado pelas harmonias celestes; entretanto, não te poderás esquivar aos sacrifícios terrestres. 13 Receberás a tranquilidade que excede a compreensão das criaturas; todavia, para que isto se verifique, é indispensável te arrependas do passado delituoso e creias na tua sublime oportunidade de hoje, negando-te a alimentar o “homem velho” que ainda te domina o coração, e suportando a luminosa cruz de teus serviços de cada dia, acompanhando Aquele que nos dirige os destinos desde o princípio. 14 Ganharás a luz, Aureliano, mas é imprescindível que expulses as sombras que te rodeiam. Atingirás a Esfera superior; no entanto, é preciso que te retires das Zonas mais baixas dos vastos caminhos da vida. Não temas, porém, meu filho! Jesus não desampara a boa vontade dos homens!
15 Nesse instante, Aureliano acordou, muito pálido. Aquela advertência calara-lhe fundo. Sentia-se desapontado. Estimava o entusiasmo, as vibrações festivas, os rasgos da palavra, mas não se lembrara ainda do campo da responsabilidade e do serviço inevitável. Queria uma doutrina para se proteger, mas nunca pensara na fé que exige trabalho, abnegação e testemunho no bem ativo. Estava, portanto, decepcionado. Aureliano, tão expansivo nas afirmações fáceis, levantou-se da cama, profundamente amuado, arredio, nervoso. Sua mente recuava, a passos largos, nas promessas feitas.
16 Mal não saíra, de casa, a caminho do centro urbano, eis que quatro companheiros humildes lhe surgem à frente, solicitando ansiosos:
— Aureliano amigo, fundamos ontem um núcleo modesto e contamos com você! Sentimo-nos cercados de necessidades espirituais e precisamos cooperadores de sua envergadura. Venha hoje à noite, não falte. Esperamos que aceite o nosso convite e que não desampare a nossa confiança!
17 O interpelado, porém, muito diferente da véspera, sem qualquer disposição ao serviço sério, e positivamente em fuga ante a ideia de responsabilidade, respondeu com secura:
— Não, meus amigos, não posso dizer que sou espiritista.
18 E, depois de uma pausa, ante o espanto dos companheiros, concluiu, como muita gente:
— Tenho muita vontade de ser.
Irmão X
(Humberto de Campos)