I
1 Na vida transitória da matéria
Julgava os homens corpos putrefatos,
Produtos de elementos correlatos,
Agregação de humor e de misérias.
2 E a alma? Função da carne deletéria
Cheia de instintos lúbricos, inatos,
Conduzia-me a análise dos fatos
Em sua enganadora periferia.
3 O cérebro era o centro aonde eu cria
Gerar-se a força plásmica do “plexus”
A candeia onde a luz se asfixia.
4 Resolvia os problemas mais complexos
E a própria luz da vida eu resumia
Na confusão erótica dos sexos.
II
1 Depois eu vi meus membros carcomidos
Transformarem-se em húmus fecundantes,
Em fibromas e larvas repugnantes
Na mansão soturnal dos esquecidos.
2 E vi desagregarem-se os tecidos
Transubstanciados e nauseantes,
Tendões e nervos, ossos perfurantes,
Tegumentos de terra apodrecidos.
3 Conhecendo-me pútrido, esquelético,
Levantei-me — figura de apoplético —
Congestionado em túrbida agonia.
4 Apalpei os meus órgãos assombrado,
E vendo a mim e ao corpo dessorado
Constatei que a minh’alma inda vivia!…
III
1 Reconheci que a vida que eu vivera
De misantropo cego pela ciência,
Em que neguei do Espírito a existência
Era a treva do mal que eu concebera.
2 Reneguei as lições que eu aprendera
Com o raciocínio em degenerescência,
Refundindo o clarão da inteligência
Na bondade do Pai de Quem descrera.
3 E desprezando o bisturi da ideia,
Exalto agora a rútila epopeia
Da excelsa luz que empolga os dias meus;
4 Vindo clamar a toda a humanidade: —
“Esquecei-vos da torva iniquidade!
Atrás da sombra existe a luz de Deus!”
Augusto dos Anjos
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