O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

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O Evangelho por Emmanuel — Volume V — 2ª Parte ©

Textos paralelos de Atos dos apóstolos e Paulo e Estêvão

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Primeira pregação de Saulo em Damasco

Ao tomar alimento, recuperou as forças. Permaneceu com os discípulos, que [estavam] em Damasco, por alguns dias. n — (Atos 9:19)


31 […] Depois da primeira refeição, não obstante o dissabor que a atitude de Sadoc lhe causara, procurou avistar-se com o amigo, levado pela sinceridade que lhe pautava os mínimos atos da vida. Não o encontrou, contudo, na residência particular. Um servo informou que o amo saíra com alguns hóspedes em direção à sinagoga.


32 Saulo foi até lá. Os trabalhos do dia estavam iniciados. Fora feita a leitura dos textos de Moisés. Um dos levitas de Citium  †  havia tomado a palavra para os respectivos comentários.

A entrada do ex-rabino provocou curiosidade geral. A maioria dos presentes tinha conhecimento da sua importância pessoal, bem como do seu verbo ardoroso e seguro. Sadoc, porém, ao vê-lo, fez-se pálido, e mais ainda quando o jovem de Tarso lhe pediu uma palavra em particular. Embora contrafeito, foi-lhe ao encontro. Cumprimentaram-se sem dissimular a nova impressão que, já agora, mantinham entre si.

Em face das primeiras observações do novel evangelista, formuladas em tom amável, o amigo de Damasco explicou, evidenciando o seu orgulho ofendido:

— De fato, sabia que estavas na cidade e cheguei mesmo a procurar-te na pensão de Judas; tais foram, porém, as informações do hoteleiro, que me abstive de ir ao teu aposento. E cheguei até a pedir-lhe segredo da minha visita. Com efeito, parece incrível que te rendesses, também tu, passivamente, aos sortilégios do “Caminho”! Não posso compreender semelhante transmutação em tua robusta mentalidade.

— Mas, Sadoc — replicou o jovem tarsense muito calmo —, eu vi Jesus ressuscitado…


33 O outro fez grande esforço para conter uma ruidosa gargalhada.

— Será possível — objetou com zombaria — que tua índole sentimental, tão contrária a manifestações de misticismo, tenha capitulado nesse terreno? Acreditarias mesmo em tais visões? Não poderias imaginar-te vítima de algum desfaçado adepto do carpinteiro? Tuas atitudes de agora nos causarão profunda vergonha. Que dirão os homens irresponsáveis, que nada conhecem da Lei de Moisés? E a nossa posição no partido dominante, da raça? Os colegas do farisaísmo  †  hão de arregalar os olhos, quando souberem da tua clamorosa defecção. Quando aceitei o encargo de perseguir os companheiros do operário de Nazaret, reprimindo-lhes as atividades perigosas fi-lo pela amizade que te consagrava; e não te doerá a traição dos votos anteriores? Considera como se dificultará nosso escopo, quando se espalhar a notícia de que capitulaste perante esses homens sem cultura e sem consciência.


34 Saulo fitou o amigo, revelando imensa preocupação no olhar ansioso. Aquelas acusações eram as premissas do acolhimento que o aguardava no cenáculo dos velhos companheiros de lutas e edificações religiosas.

— Não — disse ele sentindo fundamente cada palavra —, não posso aceitar as tuas arguições. Repito que vi Jesus de Nazaret e devo proclamar que nele reconheço o Messias prometido pelos nossos profetas mais eminentes.

Enquanto o outro fazia largo gesto admirativo, ao observar aquela inflexão de certeza e sinceridade, Saulo continuava convicto:

— Quanto ao mais, considero que, a todo tempo, devemos e podemos reparar os erros do passado. E é com esse ardor de fé que me proponho regenerar minhas próprias estradas. Trabalharei, doravante, pela minha certeza em Cristo Jesus. Não é justo que me perca em ponderações sentimentalistas, olvidando a verdade; e assim procederei em benefício dos meus próprios amigos. Os amantes das realidades da vida sempre foram os mais detestados, ao tempo em que viveram. Que fazer? Até aqui, minhas pregações nasciam dos textos recebidos dos antepassados veneráveis, mas, hoje, minhas asserções se baseiam não somente nos repositórios da tradição, senão também na prova testemunhal.


35 Sadoc não conseguiu ocultar a surpresa.

— Mas… a tua posição? E os teus parentes? E o nome? E tudo que recebeste dos que rodeiam tua personalidade com fervorosos compromissos? — perguntou Sadoc revocando-o ao passado.

— Agora, estou com o Cristo e todos nós lhe pertencemos. Sua palavra divina convocou-me a esforços mais ardentes e ativos. Aos que me compreenderem devo, naturalmente, a gratidão mais sagrada; entretanto, para os que não possam entender guardarei a melhor atitude de serenidade, considerando que o próprio Messias foi levado à cruz.

— Também tu com a mania do martírio?


36 O interpelado guardou uma bela expressão de dignidade pessoal e concluiu:

— Não posso perder-me em opiniões levianas. Esperarei que o teu amigo de Chipre termine a preleção, para relatar minha experiência diante de todos.

— Falar nisso aqui?

— Por que não?

— Seria mais razoável descansares da viagem e da enfermidade, meditando melhor no assunto, mesmo porque tenho esperança nas tuas reconsiderações, relativamente ao acontecido.

— Sabes, porém, que não sou nenhuma criança e cumpre-me esclarecer a verdade, em qualquer circunstância.

— E se te apuparem? E se fores considerado traidor?

— A fidelidade a Deus deve ser maior que tudo isso, aos nossos olhos.

— É possível, no entanto, que não te concedam a palavra — ponderou Sadoc após esbarrar com a força daquelas profundas convicções.

— Minha condição é bastante para que ninguém se atreva a negar-me o que é de justiça.

— Então, seja. Responderás pelas consequências — concluiu Sadoc constrangido.


37 Naquele momento, ambos compreenderam a imensidão da linha divisória que os extremava. Saulo percebeu que a amizade que Sadoc sempre lhe testemunhara baseava-se nos interesses puramente humanos. Abandonando a falsa carreira que lhe dava prestígio e brilho, via esfumar-se a cordialidade do outro. Mas, de tal cogitação, logo lhe veio à mente que, também ele, assim procederia, provavelmente, se não tivesse Jesus no coração.

Sereno e desassombrado, evitou aproximar-se do local onde se acomodavam os visitantes ilustres, buscando aproximar-se do largo estrado em que se improvisara uma nova tribuna. Terminada a dissertação do levita de Citium, Saulo surgiu à vista de todos os presentes, que o saudaram com olhares ansiosos. Cumprimentou, afável, os diretores da reunião e pediu vênia para expor suas ideias.

Sadoc não tivera coragem de criar um ambiente antipático, para deixar que tudo corresse à feição das circunstâncias, e foi por isso que os sacerdotes apertaram a mão de Saulo com a simpatia de sempre, acolhendo com imensa alegria o seu alvitre.


38 Com a palavra, o ex-rabino ergueu a fronte, nobremente, como costumava fazer nos seus dias triunfais.

— Varões de Israel! começou em tom solene — em nome do Todo-Poderoso, venho anunciar-vos hoje, pela primeira vez, as verdades da nova revelação. Temos ignorado, até agora, o fato culminante da vida da Humanidade. O Messias prometido já veio, consoante o afirmaram os profetas que se glorificaram na virtude e no sofrimento. Jesus de Nazaret é o Salvador dos pecadores.

Uma bomba que estourasse no recinto, não causaria maior espanto. Todos fixavam o orador, atônitos.


39 A assembleia estava obstúpida. Saulo, contudo, prosseguia intrépido, depois de uma pausa:

— Não vos assombreis com o que vos digo. Conheceis minha consciência pela retidão de minha vida, pela minha fidelidade às leis divinas. Pois bem: é com este patrimônio do passado que vos falo hoje, reparando as faltas involuntárias que cometi nos impulsos sinceros de uma perseguição cruel e injusta. Em Jerusalém, fui o primeiro a condenar os apóstolos do “Caminho”; provoquei a união de romanos e israelitas para a repressão, sem tréguas, a todas as atividades que se prendessem ao Nazareno; varejei lares sagrados, encarcerei mulheres e crianças, submeti alguns à pena de morte, ocasionei um vasto êxodo das massas operárias que trabalhavam pacificamente na cidade para seu progresso; criei para todos os espíritos mais sinceros um regime de sombras e terrores. Fiz tudo isso, na falsa suposição de defender a Deus, como se o Pai Supremo necessitasse de míseros defensores!… Mas, de viagem para esta cidade, autorizado pelo Sinédrio e pela Corte Provincial, para invadir os lares alheios e perseguir criaturas inofensivas e inocentes, eis que Jesus me aparece às vossas portas e me pergunta, em pleno meio-dia, na paisagem desolada e deserta: — Saulo, Saulo, por que me persegues?


40 A essa evocação, a voz eloquente se enternecia e as lágrimas lhe corriam copiosas. Interrompera-se ao recordar a ocorrência decisiva do seu destino. Os ouvintes contemplavam-no assombrados.

— Que é isso? — diziam alguns.

— O doutor de Tarso graceja!… —  afirmavam outros sorrindo, convictos de que o jovem tribuno estivesse buscando maior efeito oratório.

— Não, amigos — exclamou com veemência —, jamais gracejei convosco nas tribunas sagradas. O Deus justo não permitiu que minha violência criminosa fosse até ao fim, em detrimento da verdade, e consentiu, por misericórdia de acréscimo, que o mísero servo não encontrasse a morte sem vos trazer a luz da crença nova!…


41 Não obstante o ardor da pregação, que deixava em todos os ouvidos ressonâncias emocionais, rompeu no recinto estranho vozerio. Alguns fariseus mais exaltados interpelaram Sadoc, em voz baixa, quanto ao inesperado daquela surpresa, obtendo a confirmação de que Saulo, de fato, parecia extremamente perturbado, alegando ter visto o carpinteiro de Nazaret nas vizinhanças de Damasco. Imediatamente estabeleceu-se enorme confusão em toda a sala, porque havia quem visse no caso perigosa defecção do rabino, e quem opinasse por enfermidade súbita, que o houvesse dementado.

— Varões de minha antiga fé — trovejou a voz do moço tarsense, mais incisiva —, é inútil tentardes empanar a verdade. Não sou traidor nem estou doente. Estamos defrontando uma era nova, em face da qual todos os nossos caprichos religiosos são insignificantes.


42 Uma chuva de impropérios cortou-lhe repentinamente a palavra.

— Covarde! Blasfemo! Cão do “Caminho”!… Fora o traidor de Moisés!…

Os apodos partiam de todos os lados. Os mais afeiçoados ao ex-rabino, que se inclinavam a supô-lo vítima de graves perturbações mentais, entraram em conflito com os fariseus mais rudes e rigorosos. Algumas bengalas foram atiradas à tribuna com extrema violência. Os grupos, que se haviam atracado em luta, espalhavam forte celeuma na sinagoga, percebendo o orador que se encontravam na iminência de irreparáveis desastres.

Foi quando um dos levitas mais idosos assomou ao grande estrado, levantando a voz com toda a energia de que era capaz e rogando aos presentes acompanhá-lo na recitação de um dos Salmos de David. O convite foi aceito por todos. Os mais exaltados repetiram a prece, tomados de vergonha.


43 Saulo acompanhava a cena com profundo interesse.

Terminada a oração, disse o sacerdote, com ênfase irritante:

— Lamentemos este episódio, mas evitemos a confusão que em nada aproveita. Até ontem, Saulo de Tarso honrava as nossas fileiras como paradigma de triunfo; hoje, sua palavra é para nós um galho de espinhos. Com um passado respeitável, esta atitude de agora só nos merece condenação. Perjúrio? Demência? Não o sabemos com certeza. Outro fora o tribuno e apedrejá-lo-íamos sem pestanejar; mas, com um antigo colega os processos devem ser outros. Se está doente, só merece compaixão; se traidor, só poderá merecer absoluto desprezo. Que Jerusalém o julgue como seu embaixador. Quanto a nós, encerremos as pregações da Sinagoga e recolhemo-nos à paz dos fiéis cumpridores da Lei.


44 O ex-rabino suportou a increpação com grande serenidade a lhe transparecer dos olhos. Intimamente, sentia-se ferido no seu amor-próprio. Os remanescentes do “homem velho” exigiam revide e reparação imediata, ali mesmo, à vista de todos. Quis falar novamente, exigir a palavra, obrigar os companheiros a ouvi-lo, mas sentia-se presa de emoções incoercíveis, que lhe infirmavam os ímpetos explosivos. Imóvel, notou que velhos afeiçoados de Damasco abandonavam o recinto calmamente, sem lhe fazer sequer uma ligeira saudação. Observou, também, que os levitas de Citium pareciam entendê-lo, através de um olhar de simpatia, ao mesmo tempo que Sadoc fixava-o com ironia e risinhos de triunfo. Era o repúdio que chegava. 45 Acostumado aos aplausos onde quer que aparecesse, fora vítima da própria ilusão, acreditando que, para falar com êxito, sobre Jesus, bastavam os louros efêmeros já conquistados ao mundo. Enganara-se. Seus cômpares punham-no à margem, como inútil. Nada lhe doía mais que ser assim desaproveitado, quando lhe ardia nalma a devoção sacerdotal. Preferia que o esbofeteassem, que o prendessem, que o flagelassem, mas não lhe tirassem o ensejo de discutir sem peias, a todos vencendo e convencendo com a lógica de suas definições. Aquele abandono feria-o fundo, porque, antes de qualquer consideração, reconhecia não laborar em benefício pessoal, por vaidade ou egoísmo, mas pelos próprios correligionários atidos às concepções rígidas e inflexíveis da Lei.


46 Aos poucos a sinagoga ficara deserta, sob o calor ardente das primeiras horas da tarde. Saulo sentou-se num banco tosco e chorou. Era a luta entre a vaidade de outros tempos e a renúncia de si mesmo, que começava. Para conforto da alma opressa, recordou a narrativa de Ananias, no capítulo em que Jesus dissera ao velho discípulo que lhe mostraria quanto importava sofrer por amor ao seu nome.

Acabrunhado, retirou-se do templo, em busca do benfeitor, a fim de reconfortar-se com a sua palavra.

Ananias não se mostrou surpreendido com a exposição das ocorrências.

— Vejo-me cercado de enormes dificuldades — dizia Saulo um tanto perturbado. — Sinto-me no dever de espalhar a nova doutrina, felicitando os nossos semelhantes; Jesus encheu-me o coração de energias inesperadas, mas a secura dos homens é de amedrontar os mais fortes.

— Sim — explicava o ancião paciente —, o Senhor conferiu-te a tarefa do semeador; tens muito boa vontade, mas, que faz um homem recebendo encargos dessa natureza? Antes de tudo, procura ajuntar as sementes no seu mealheiro particular, para que o esforço seja profícuo.


47 O neófito percebeu o alcance da comparação e perguntou:

— Mas, que desejais dizer com isso?

— Quero dizer que um homem de vida pura e reta, sem os erros da própria boa-intenção, está sempre pronto a plantar o bem e a justiça no roteiro que perlustra; mas aquele que já se enganou, ou que guarda alguma culpa, tem necessidade de testemunhar no sofrimento próprio, antes de ensinar. Os que não forem integralmente puros, ou nada sofreram no caminho, jamais são bem compreendidos por quem lhes ouve simplesmente a palavra. Contra os seus ensinos estão suas próprias vidas. Além do mais, tudo que é de Deus reclama grande paz e profunda compreensão. No teu caso, deves pensar na lição de Jesus permanecendo trinta anos entre nós, preparando-se para suportar nossa presença durante apenas três. Para receber uma tarefa do Céu, David conviveu com a Natureza apascentando rebanhos; para desbravar as estradas do Salvador, João Batista meditou muito tempo nos ásperos desertos da Judeia.  † 


48 As ponderações carinhosas de Ananias caíam-lhe na alma opressa como bálsamo vitalizante.

— Quando hajas sofrido mais — continuava o benfeitor e amigo sincero —, terás apurado a compreensão dos homens — e das coisas. Só a dor nos ensina a ser humanos. Quando a criatura entra no período mais perigoso da existência, depois da matinal infância e antes da noite da velhice; quando a vida exubera energias, Deus lhe envia os filhos, para que, com os trabalhos, se lhe enterneça o coração. Pelo que me hás confessado, é possível não venhas a ser pai, mas terás os filhos do Calvário em toda parte. Não viste Simão Pedro, em Jerusalém, rodeado de infelizes? Naturalmente, encontrarás um lar maior na Terra, onde serás chamado a exercer a fraternidade, o amor, o perdão… É preciso morrer para o mundo, para que o Cristo viva em nós…


49 Aquelas observações tão sadias e tão mansas penetraram o espírito do ex-rabino como bálsamo de consolação de horizontes mais vastos. Suas palavras carinhosas fizeram-no recordar alguém que o amava muito. De cérebro cansado pelos embates do dia, Saulo esforçava-se por fixar melhor as ideias. Ah!… agora se lembrava perfeitamente. Esse alguém era Gamaliel. Veio-lhe de súbito o desejo de se avistar com o velho mestre. Compreendia a razão daquela lembrança. É que, também ele, pela última vez, lhe falara da necessidade que sentia dos lugares ermos, para meditar as sublimes verdades novas. Sabia-o em Palmira,  †  na companhia de um irmão. Como não se recordara ainda do antigo mestre, que lhe fora quase um pai? Certamente, Gamaliel recebê-lo-ia de braços abertos, regozijar-se-ia com as suas conquistas recentes, dar-lhe-ia conselhos generosos quanto aos rumos a seguir.


50 Engolfado em recordações cariciosas, agradeceu a Ananias com um olhar significativo, acrescentando sensibilizado:

— Tendes razão… Buscarei o deserto em vez de voltar a Jerusalém precipitadamente, sem forças, talvez, para enfrentar a incompreensão dos meus confrades.

Tenho um velho amigo em Palmira, que me acolherá de bom grado. Ali repousarei algum tempo, até que possa internar-me pelas regiões ermas, a fim de meditar as lições recebidas.

Ananias aprovou a ideia com um sorriso. Ainda ficaram conversando longo tempo, até que a noite mergulhou a alma das coisas no seu velário de sombras espessas.


51 O velho pregador conduziu, então, o novo adepto para a humilde reunião que se realizava nesse sábado de grandes desilusões para o ex-rabino.

Damasco não tinha propriamente uma igreja; entretanto, contava numerosos crentes irmanados pelo ideal religioso do “Caminho”. O núcleo de orações era em casa de uma lavadeira humilde, companheira de fé, que alugava a sala para poder acudir a um filho paralítico. Profundamente admirado, o moço tarsense enxergou ali a miniatura do quadro observado pela primeira vez, quando tivera a curiosidade invencível de assistir às célebres pregações de Estêvão em Jerusalém. Em torno da mesa rústica, juntavam-se míseras criaturas da plebe, que ele sempre mantivera separada da sua esfera social. Mulheres analfabetas com crianças ao colo, velhos pedreiros rudes, lavadeiras que não conseguiam conjugar duas palavras certas. Anciães de mãos trêmulas, amparando-se a cajados fortes, doentes misérrimos que exibiam a marca de enfermidades dolorosas. 52 A cerimônia parecia ainda mais simples que as de Simão Pedro e seus companheiros galileus. Ananias chefiava e presidia o ato. Sentando-se à mesa, qual patriarca no seio da família rogou as bênçãos de Jesus para a boa vontade de todos. Em seguida, fez a leitura dos ensinos de Jesus, respigando algumas sentenças do Mestre Divino nos pergaminhos esparsos. Depois de comentar a página lida, ilustrando-a com a exposição de fatos significativos, do seu conhecimento, ou da sua experiência pessoal, o velho discípulo do Evangelho deixava o lugar, percorria as filas de bancos e impunha as mãos sobre os doentes e necessitados. 53 Comumente, segundo o hábito das primeiras células cristãs do primeiro século, ao memorar as alegrias de Jesus quando servia o repasto aos discípulos, fazia-se modesta distribuição de pão e água pura em nome do Senhor. Saulo serviu-se do bolo simples enternecidamente. Para sua alma, o cibo mesquinho tinha o sabor divino da fraternidade universal. A água clara e fresca da bilha grosseira soube-lhe a fluido de amor que partia de Jesus, comunicando-se a todos os seres.  54 Ao fim da reunião, Ananias orava fervorosamente. Depois de contar a visão de Saulo e a sua própria, nos comentários singelos daquela noite, pedia ao Salvador protegesse o novo servo em demanda a Palmira, a fim de meditar mais demoradamente na imensidão de suas misericórdias. Ouvindo-lhe a rogativa que o calor da amizade revestia de amavio singular, Saulo chorou de reconhecimento e gratidão, comparando as emoções do rabino que fora, com as do servo de Jesus que agora queria ser. Nas reuniões suntuosas do Sinédrio, jamais ouvira um companheiro exorar ao Céu com aquela sinceridade superior. Entre os mais afeiçoados só encontrara elogios vãos, prontos a se transformarem em calúnias torpes, quando lhes não podia conceder favores materiais. Em toda parte, admiração superficial, filha do jogo dos interesses inferiores. Ali, a situação era outra. Nenhuma daquelas criaturas desfavorecidas da sorte viera pedir-lhe facilidades; todos pareciam satisfeitos ao serviço de Deus, que assim os congregava a termo de trabalhos exaustivos e penosos. E, por fim, ainda rogavam a Jesus lhe concedesse paz de espírito para o seu empreendimento.


55 Terminada a reunião, Saulo de Tarso tinha lágrimas nos olhos. Na igreja do “Caminho”, em Jerusalém, os Apóstolos galileus o trataram com especial deferência, atentos à sua posição social e política, senhor das regalias que as convenções do mundo lhe conferiam; mas os cristãos de Damasco impressionaram-no mais vivamente, arrebataram-lhe a alma, conquistando-a para uma afeição imorredoura, com aquele gesto de confiança e carinho, tratando-o como irmão.

Um a um, apertaram-lhe a mão com votos de feliz viagem. Alguns velhos mais humildes beijaram-lhe as mãos. Tais provas de afeto davam-lhe novas forças. Se os amigos do judaísmo lhe desprezavam a palavra,  acintosos e hostis, começava agora a encontrar no seu caminho os filhos do Calvário. Trabalharia por eles, consagraria ao seu consolo as energias da mocidade. Pela primeira vez na vida, revelou interesse pelo sorriso das criancinhas. Como se desejasse retribuir as demonstrações de carinho recebidas, tomou nos braços um menino doente. Diante da pobre mãe sorridente e agradecida fez-lhe festas, acariciou-lhe os cabelos desajeitadamente. Entre os acúleos agressivos de sua alma apaixonada, começavam a desabrochar as flores de ternura e gratidão.


56 Ananias estava satisfeito. Junto dos irmãos de mais confiança, acompanhou o neófito até à pensão de Judas. Aquele modesto grupo desconhecido percorreu as ruas banhadas de luar, estreitamente unido e reconfortando-se em comentários cristãos. Saulo admirava-se de haver encontrado tão depressa aquela chave de harmonia que lhe proporcionava segura confiança em todos. Teve a impressão de que nas genuínas comunidades do Cristo a amizade era diferente de tudo que lhe dava expressão nos agrupamentos mundanos. Na diversidade das lutas sociais o traço dominante das relações cifrava-se agora, a seus olhos, nas vantagens do interesse individual; ao passo que, na unidade de esforços da tarefa do Mestre, havia um cunho divino de confiança, como se os compromissos tivessem o ascendente divino, original. Todos falavam, como nascidos no mesmo lar. Se expunham uma ideia digna de maior ponderação, faziam-no com serenidade e geral compreensão do dever; se versavam assuntos leves e simples, os comentários timbravam franca e confortadora alegria. Em nenhum deles notava a preocupação de parecer menos sincero na defesa dos seus pontos de vista; mas, ao invés, lhaneza de trato sem laivos de hipocrisia, porque, em regra, sentiam-se sob a tutela do Cristo, que, para a consciência de cada um, era o amigo invisível e presente, a quem ninguém deveria enganar.


57 Consolado e satisfeito de haver encontrado amigos na verdadeira acepção da palavra, Saulo chegou à estalagem de Judas, despedindo-se de todos profundamente comovido. Ele próprio surpreendia-se com o sabor de intimidade com que as expressões lhe afloravam aos lábios. Agora compreendia que a palavra “irmão”, largamente usada entre os adeptos do “Caminho”, não era fútil e vã. Os companheiros de Ananias conquistaram-lhe o coração. Nunca mais esqueceria os irmãos de Damasco.

No dia imediato, contratando um serviçal indicado pelo estalajadeiro, Saulo de Tarso, ao amanhecer, embora surpreendesse o dono da casa com o seu ânimo resoluto, pôs-se a caminho da cidade famosa, situada num oásis em pleno deserto.


58 Nas primeiras horas da manhã, saíam das portas de Damasco dois homens modestamente trajados, à frente de pequeno camelo carregado das necessárias provisões.

Saulo fizera questão de partir assim, a pé, de modo a iniciar a vida com rigores que lhe seriam sumamente benéficos mais tarde. Não viajaria mais na qualidade de doutor da Lei, rodeado de servos, sim como discípulo de Jesus, adstrito aos seus programas. Por esse motivo, considerou preferível viajar como beduíno, para aprender a contar, sempre, com as próprias forças. Sob o calor calcinante do dia, sob as bênçãos refrigeradoras do crepúsculo, seu pensamento estava fixo n’Aquele que o chamara do mundo para uma vida nova. As noites do deserto, quando o luar enche de sonho a desolação da paisagem morta, são tocadas de misteriosa beleza. Sob as frondes de alguma tamareira solitária, o convertido de Damasco aproveitava o silêncio para profundas meditações. O firmamento estrelado tinha, agora, para seu espírito, confortadoras e permanentes mensagens. Estava convicto de que sua alma havia sido arrebatada a novos horizontes, porque, através de todas as coisas da Natureza, parecia receber o pensamento do Cristo que lhe falava carinhosamente ao coração.


Emmanuel



[1] O texto de Atos apresenta, nesta perícope, um tema que é debate entre estudiosos. A leitura rápida parece sugerir que os acontecimentos entre a visão de Jesus, na estrada para Damasco, e a saída de Paulo da cidade em um cesto, com destino à Jerusalém, fizeram parte de uma única permanência do ex-rabino em Damasco. Isso, contudo, parece não se conciliar com o que é relatado pelo Apóstolo dos Gentios em sua carta aos gálatas (1:16ss). Nessa carta ele registra que, entre a visão de Jesus e a ida pela primeira vez para Jerusalém ao encontro dos Apóstolos, transcorreram-se três anos. A cronologia dos acontecimentos que Emmanuel apresenta concilia os dois textos e apresenta duas estadias de Paulo em Damasco, uma, logo após a visão de Jesus, que termina com a ida do Apóstolo dos Gentios para o deserto, onde ele permanece por 3 anos, e a outra, ao fim desse período de exílio no deserto, que termina com sua fuga em um cesto com destino à Jerusalém. O texto de Atos reuniria, dessa forma, as duas passagens de Paulo por Damasco e o texto de Paulo e Estêvão detalha o que houve, não só em cada uma dessas estadias, quanto o que ocorreu nos 3 anos registrados em Gálatas. Por essa razão, a equipe organizadora reuniu os relatos das duas passagens de Paulo por Damasco, vinculando-as aos textos de Atos da melhor forma possível, a fim de que o leitor se familiarizasse com esses acontecimentos.

Dado aos objetivos deste projeto e a extensão da narrativa, os três anos em que Paulo esteve no deserto não foram aqui transcritos. O leitor interessado encontrará o relato desse período no capítulo 2 da segunda parte do livro Paulo e Estêvão, intitulado O Tecelão.


(Paulo e Estêvão, FEB Editora. Segunda parte. Capítulo 1, pp. 198 a 208. Indicadores 31 a 58)


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