A observação dos acontecimentos da vida cotidiana, em todos os setores da atividade social, feita
sem o exclusivismo dos prévios pontos de vista de qualquer doutrina, convida o espírito humano a arrojados
paralelos entre as cousas grosseiramente materiais e aquelas que dizem com a Alma, jungidas embora às pesadas contingências da existência terreal.
Da fecunda treva do subsolo se extrai, inerte e frio, o carvão mineral; mas, basta que entre em
combustão, para transformar-se em calor e luz, energias alimentícias das fornalhas que movem os dínamos
das usinas elétricas, ou acionam as turbinas dos gigantescos transatlânticos.
E a deslumbrada inteligência humana, contemplando esse corriqueiro fenômeno da vida de cada
dia, permanece ignorante dos processos recônditos que estratificam claridade, calor, força, na negrura álgida e
imóvel de um lençol de carvão incrustado nas entranhas da Terra.
Assim também, nos subterrâneos do ser, existe a riqueza espiritual de uma Alma que permanece
inerte e fria, antes de trazida à plenitude de sua expansão, na entrosagem da vida, tornando-se capaz de derramar claridades e energias no ambiente social — de que é partícula integrante.
O mundo é uma ciclópica oficina de labores diversíssimos, onde cada indivíduo tem a sua parcela
de trabalho, de acordo com os conhecimentos e aptidões morais adquiridos, trazendo, por isso, para cada tarefa, o cabedal aprimorado em uma ou em muitas existências.
As hierarquias, que tanto impressionam os inscientes das leis espirituais, não influem para desempenho dos encargos individuais assumidos pelo Espírito à face do seu Destino pré-traçado.
Não há muito, quando, por entre retumbâncias telegráficas, era anunciado ao orbe que ilustre
Guilherme Marcôni realizara o milagre de iluminar, a distância, determinado local provido de lâmpadas elétricas, ocorria aqui, no Brasil, idêntico prodígio — levado a efeito por um despretensioso cidadão, tão patriota
quanto Marcôni, porém despido de auréolas, e sem os exaustivos estudos que por mais de meio século fez o
cientista italiano.
O Gênio se esconde muitas vezes, pelas contingentes necessidades da reencarnação do Espírito,
em ambiente e criaturas sem qualquer vestígio de valor intelectual, ou carecedores de todos os elementos assecuratórios do êxito na vida social.
Nenhum melhor exemplo de tal evidência do que o oferecido pelos talentos literários.
Muitas dessas glórias nasceram anônimas, desconhecidas viveram, até que explodiram em vulcões de luz e beleza.
Todos os indícios da vida de Humberto de Campos mostram que ele foi a reencarnação de um notável cultor das letras clássicas. O contraste entre o intelecto pigmeu da infância e o talento gigante da idade
adulta é bem eloquente.
Buscando Humberto de Campos desde a primeira meninice, não se lhe assinala, na vida trabalhosa e árida de órfão pobre, nenhum ensejo de haurir e acumular conhecimentos que o elevassem acima do nível
normal dos escritores e, por isso, lhe servisse de credencial para ingressar no rol dos consagrados da literatura
ou do jornalismo nacionais.
Mas, germinando espontaneamente, dos recônditos onde dormitava a preciosa hulha de formação
remota, o seu Espírito, a tempo, emergiu no homem o que o menino humilde e paupérrimo não tivera oportunidade de exteriorizar.
Lendo-se o comentário e a crítica nos seus escritos, percebe-se, sem esforço, uma erudição que
revela fundas raízes no critério filosófico dos antigos, alicerçado na observação exata dos homens e das cousas.
Referindo-se a determinado indivíduo ou a qualquer trabalho ou acontecimento que lhe merecesse
atenção e comentário, Humberto de Campos traçava conceitos acima do comum, espelhando o amadurecimento do espírito de crítica e a segura visão de quem muito vivera, muito observara e muito conhecia, — tudo contrastando com a escassa instrução humanística que se lhe atribuiria com justiça.
Ainda assim, contemporâneo de uma época de dinamismo febril, quando a multiplicidade dos assuntos e as contingências da luta pela subsistência não permitia ao indivíduo aprofundar o estudo, o critério, a classificação perfeita dos eventos cotidianos, fez o milagre de conservar-se notável dentro do mediocrismo
atabalhoado dos que necessitam pensar e escrever enquanto o estômago faz a digestão de magras refeições.
Aliás, a história de todos os povos antigos e modernos está repleta de exemplos, a confirmar que
muitos dos gênios das letras e das artes despontam de criaturas de infância humilde, e, não raro, de vocação
desconhecida e contrariada.
Humberto de Campos, órfão ao primeiro lustro de idade, teve a criação rústica, rebelde, defeituosíssima, tão comum nos nascidos em vilarejos do interior brasileiro, atrofiado pelos maus exemplos, pela linguagem viciada e baixa, grosseira e suja, pelos conselhos malsãos, pela agressividade das atitudes dos valentões da faca à cinta; aprendiz de alfaiate, e depois de tipógrafo, e afinal empregado sem categoria no comércio
vilão; aluno primário de escolas onde aprendeu rudimentos; tais os valores negativos que recebeu para entrar
na vida — que devia seguir — dentro do seu Destino de glória dolorosa e cheia de penúrias.
Tudo a confirmar que o Espírito orgulhoso, autoritário, flagelador, ancho do seu saber quando
volta a resgatar o passado de culpas, não podendo apagar o cabedal de conhecimentos adquiridos, imerge na
obscuridade de uma família ou de um ambiente, onde os impulsos inatos sejam castigados rudemente, onde
tenha oportunidade de abater o orgulho, onde a instrução lhe seja penosa de adquirir, — até vencer o estágio de
provação, e, então, bem empregar os cabedais que foram instrumento de amarguras em outras existências.
Benevenuto Celíni, que deveria incorporar-se à galeria dos maiores artistas da ourivesaria, começou a ganhar o sustento tocando trompa, ao lado do progenitor, em um bando de músicos; Antônio Cânovas, o
grande escultor, paupérrimo, obteve a proteção do opulento João Faliero por haver modelado um leão em manteiga, na cozinha do palácio desse senador Romano, isso para tirar de apuros o cozinheiro a quem o senhor
exigira um prato que, pela sua absoluta originalidade, deslumbrasse os convivas — mostrando-lhes a excelência da cozinha do anfitrião.
Martinho Lutero, eminente entre os maiores homens do seu século, era filho de um rude operário
mineiro, e muitas vezes comeu pão de esmola, a cantar nas ruas com outros condiscípulos pobrezinhos, para
poder frequentar as aulas onde estudava — distante e sem auxílio dos pais.
Mas, mesmo sem necessidade de recuar a tempos mais ou menos remotos, podemos encontrar
semelhantes casos em artistas que se celebrizaram em dias contemporâneos e com a contribuição dos nossos
sinceros e calorosos aplausos.
Tita Rufo, que teve o cetro de maior e mais célebre dos barítonos hodiernos, foi despedido do
Conservatório Santa Cecília, de Roma, depois de vinte quatro meses de estudo, porque, no entender dos seus
professores, não possuía suficiência vocal para cantar óperas.
Enrico Caruso, o tenor que mais se elevou social e artisticamente em nossos tempos, era paupérrimo de origem e trabalhou feito aprendiz de mecânico — antes que sua voz, exibida nas igrejas aldeães, lhe
abrisse as portas da carreira em que tanto fulgiu. Outros ilustres só o foram depois de algo avançados em
idade, caso que La Fontaine documenta eloquentemente.
Olivério Goldsmith muito lutou e muito sofreu, nas mais variadas profissões, antes que conquistasse a glória literária.
Entre as eminências da política mesmo, basta lembrar o cardeal Júlio Mazaríni (Mazarin, depois
de naturalizado francês) que, antes de elevar-se aos justos lauréis de estadista, foi um dos mais impenitentes
jogadores do seu tempo, tendo decido a empenhar peças de roupa — no intuito de conseguir dinheiro para
jogar.
Mas, o essencial a salientar em todos esses casos de predestinação num determinado rumo de atividade, é o traço indicador de uma força propulsora, incógnita, que leva, afinal, a criatura ao verdadeiro setor
da ação que deve exercer.
As ideias inatas, a propensão para determinados rumos na existência, os cabedais surgidos inopinadamente, sem que correspondam à aparente modéstia dos recursos intelectuais do indivíduo, tudo indica que
o ser humano tem no Espírito um grande reservatório de conhecimentos e experiências de outras vidas, dos
quais se serve para completar o seu estágio evolutivo — quando reencarna no orbe terráqueo.
As figuras dos Humberto de Campos deixam sempre perceber o sulco luminoso aberto pelo seu
reservatório de recursos espirituais; mas, o preconceito que reveste as cousas da Alma com as amiantadas vestimentas da intolerância religiosa, não permite que os contemporâneos lhe possam medir a grandeza da missão
que desempenham no seu tempo e na sua especialidade de trabalho.
Se melhor observada a condição do Espírito que reencarna, porque precisado de novos estágios
de ascese, fácil se tornaria compreender a razão de certas falências, principalmente daqueles que se afundam no paul dos vícios anemizantes ou destruidores da saúde e do próprio corpo, — tudo ligado às condições de
existências anteriores, elos muitas vezes formidáveis — que a criatura necessita quebrar, empregando desesperados e hercúleos esforços.
Os grandes talentos que se deixam estiolar nos desperdícios da embriaguez, evadidos do bom-senso, nômades da moral, são, em regra, Espíritos insuficientemente preparados para lutar contra tendências
ligadas à anterior encarnação e contra a influência, os arrastamentos dos Espíritos errantes que vivem em busca de médiuns (instrumentos) para realização de seus desejos ou paixões.
Daí o espetáculo contristador que oferecem certas privilegiadas inteligências, meio afogadas no
eclipse dos entorpecentes, — patenteando nos intervalos de lucidez — quando a influência perturbadora se
afasta, os prodígios de uma arte que as imortaliza pelo decurso dos séculos sucessivos.
Quantas obras-primas de talento teriam legado as cerebrações gêmeas de Álvares de Azevedo,
sem a transbordante boemia que as conduziu à tuberculose ou à cirrose do fígado?
Poder-se-á medir o fulgor que teria tido para as letras brasileiras a época sem rival em que medrassem — sem desregramentos de alegrias displicentes — os talentos de Paula Nei, no curso de medicina;
Guimarães Passos, na poesia; José do Patrocínio, no jornalismo; Lima Barreto no romance?
É o exemplo típico desse tão apontado Edgar Poë, que bebia por impulso, e depois passava longos intervalos sem ingerir qualquer porção de álcool, para voltar, a cada novo assédio do seu obsessor, ao
mesmo exagero de deglutir mecanicamente a dosagem determinada pelo apetite do momento.
Guilherme Amadeu Hófman, sob influências mais sibaritas, emborrachava-se de vinhos superiores, e sentia — embora insciente do fenômeno, a ação de algo que o atormentava, que lhe pesava no cérebro,
na Alma, de modo a deixar-lhe a sensação de alívio — quando se retirava. À falta de expressões que caracterizassem o aspecto mediúnico da perturbação, Hófman, a cada conto que escrevia, acreditava sentir alívio correspondente a uma “purga intelectual”, uma espécie de sangria que lhe desimpedisse o cérebro.
Mas, também inteligências equilibradas dentro da cultura e das eminências científicas sofrem os
influxos poderosos dos Espíritos do Além, de modo a testificar o inevitável e permanente intercâmbio de sentimentos e de ideias entre os seres que se atraem ou se repelem, coerentes com as leis das afinidades, ligadas a
outras da interpenetração da vida universal.
Jerônimo Carden, um dos maiores matemáticos do seu século, médico, filósofo, e astrólogo, foi
um exemplo vivo de mediunidade polimorfa.
Escrevendo sobre física, astronomia, química, moral, história; viajando uma parte da Europa, a
tirar horóscopos; empenhando-se em polêmicas transcendentais para aqueles tempos, deixou espelhado em
todo esse percurso o traço das incoerências a que era arrastado, segundo as influências perturbadoras que
vinham estender sombras sobre as luminosidades recebidas de outras fontes mais elevadas.
Tendo vulgarizado processos algébricos que chegaram até nosso tempo (inclusive a chamada
fórmula de Carden, para resolução de equações cúbicas), deixou também o registro de cousas que foram classificadas de infantis.
Outras figuras de relevo na história política, literária ou artística deixaram também testemunho e
lembrança de dons mediúnicos, isto é, de influências estranhas, dessas que a Medicina classifica de nevroses
alucinatórias.
Olivério Cromwel, o que destronou Carlos I e introduziu a República entre os ingleses, era médium vidente e audiente, a quem Espíritos materializados falavam, sendo que um, de gigantesca aparência, lhe
predisse seria ele grande figura na Inglaterra.
Videntes foram João Batista van Hélmont, o célebre e erudito médico belga (que via até o seu
próprio duplo); Biron, que dizia ser visitado repetidas vezes por um espectro; Mozart, que, nos últimos tempos
de sua existência, teve a visão de um fantasma que lhe falava da morte próxima e o obrigava a escrever o Requiem a ser executado nos funerais dele próprio, Mozart; Dostoiewski, um indiscutível expoente da literatura
eslava; Alfredo Musset e muitos outros, largamente estudados nos livros dos especialistas da psiquiatria.
Influências bizarras, desse teor, sofreram vários vultos de saliente relevo, da estirpe de Voltaire,
Molière, Montesquieu, Malherbe, Chateaubriand.
Napoleão I desesperava-se quando lhe acontecia quebrar um espelho; tinha pavor da sexta-feira e
do número treze, e considerava fatídica a letra M. Sabe-se que acreditava na cartomancia, e não desdenhava
ouvir a sua pitonisa, Lenormant.
Emilio Zola receava ser mal sucedido sempre que, ao sair para tratar de alguma coisa, não pisava
fora da porta com o pé esquerdo; Eça de Queiroz tinha o cuidado de entrar nos prédios com o pé direito, e, quando lhe acontecia distrair-se, voltava à rua, reencetava a marcha, para pisar no portal, em primeiro, o pé
direito.
Newton, Tasso, Vitor Hugo, Donizeti, Walter Scot, toda uma legião de homens ilustres figura no
catálogo dos loucos, maníacos, excêntricos, alucinados, apresentando exterioridades que os estudos médicos
tomaram para seu domínio.
No entanto, foram apenas médiuns, dessa imensa classe de desconhecidos, cujos admiráveis trabalhos todos aplaudem, mas sem lhes admitir o intercâmbio com o mundo dos Espíritos imortais, desses de
quem Augusto Comte (também dos maiores obsedados de gênio) disse, com inspiração interior: “Os vivos são
sempre e cada vez mais governados pelos mortos.”
Assinale-se que o Positivismo teve a sua influência na orientação de Humberto de Campos, na
época em que leu os mestres do ateísmo, embora sem apreender toda a amplitude filosófica — acima das possibilidades de compreensão dos de rudimentar conhecimento científico.
E, nessa milenária falange, que tem trazido às civilizações terrenas as luzes do seu incompreendido gênio, outros Espíritos existem, sem estigmas visíveis de mediunidade espetacular, mas, ainda assim, cumprindo brilhante e fielmente os ditames da lei que impõe às consciências o resgate, por sofrimento idêntico, dos
males causados em vidas anteriores.
Preparados espiritualmente para a provação de resgate escolhida, esses lutadores oferecem ao
mundo dos contemporâneos o edificante exemplo de uma vida de trabalho, lutas e sofrimento, sempre uniforme na perseverança de enfrentar os óbices e realizar a tarefa.
Sob a pressão moral das desilusões e das dificuldades, gemendo embora sob o guante dos padecimentos, esses heróis anônimos da glória sofredora marcham sem recuos por entre as pesadas vagas de revoltos vendavais, bem à semelhança das invictas quilhas que cortam as encapeladas superfícies dos mares mais
bravios.
Sol que a neblina esconde sob um manto de espessas nuvens, mas, ainda assim, foco de luz a irradiar claridades; Espírito constrito na mortalha tumular da Carne, mas, embora preso, a entoar os seus cantos
de amor à liberdade.
Assim, Humberto de Campos, na singeleza de uma existência que foi de martírios e grandezas
espirituais, ao termo da qual se pode constatar que o pedestal de glória que o sagrou — não foi feito de mármores
mundanos, mas de lágrimas cristalizadas no recôndito do seu coração angustiado, desde quando, órfão de pai,
teve a infância obscura pontilhada de todas as despercebidas humilhações que a pobreza desfolha em pétalas
de sarcasmo sobre a fronte dos deserdados da fortuna.
A sua resignação espontânea ante a fome e o frio não aquietava as fúrias do Destino, que o aguilhoava, num teimoso desafio à alma da criança — ainda incapaz de raciocinar sobre o porquê das desigualdades e injustiças sociais.
Só a ação misteriosa e recôndita do Espírito forte no rumo futuro, poderá explicar a resistência a
tantas amarguras.
É nesse drama silencioso, nesse abandono ao sofrimento, que se deve estudar a foz da verdade
das reencarnações dos Espíritos, que vêm resgatar passados de agudas culpas.
Nascido em família dividida por malquerenças irremediáveis, coube-lhe o ramo dos pobres, que
os do outro não ajudava.
Assim, teve margem para sofrer todas as provações duras e humilhantes, necessárias ao abatimento do orgulho, opulência e vaidade de vidas anteriores, quando possivelmente infligiu a outros as mesmas
agruras que veio, em resgate, sofrer, por sua vez.
No íntimo, jazia a Alma corajosa de um grande homem, em novo embrião, mas, na sua infância
terrivelmente travessa, podia ter ele resvalado para dentro do lodaçal dos vícios e dos crimes, em cujos beirais
molhou a pontinha dos pés, na sua inexperiência garota e mal vigiada.
Talvez houvesse vivido, inteligência de escol, com o enfatuado sibaritismo dos Médicis ou dos
Farnésios, nos fulgores finais da Renascença, dardejando, do alto da sua cultura profunda e sarcástica, as
setas aceradas de sátiras ferozes e castigando sem emoção todos os revoltados das suas cruezas.
Por isso, quiçá, quando de novo afundou no esquecimento carnal de uma nova existência terrena
(o Espírito vigilante no cumprimento da prova escolhida — dentro da lei de resgate — dente por dente, olho
por olho), foi quase insensível às privações, e a sua inteligência não revelou a inata e vigorosa pujança que a
Humberto de Campos — homem — mostraria, numa quase antítese do que fora na meninice.
Até mesmo no físico, talvez para impossibilitá-lo de reincidir em males que a beleza plástica, facilita, ele trouxe um estigma curioso e inexplicável pelas desacreditadas teorias de hereditariedade.
Moreno, cabelo duro, de uma feiura que chamava atenção, grande boca com os dentes um tanto
abrutalhados, o próprio Humberto de Campos estranhava e não definia esse capricho da natureza, pois na
família predominava o sangue europeu.
Sua avó era clara, e se sua mãe tinha o moreno característico das brancas nascidas em clima tórrido, qual o do Maranhão, seu pai era do tipo louro do norte europeu, tipo que se notava em todos os irmãos
Véras.
Procurando decifrar o enigma de tais anomalias, ele escreveu, longe de penetrar no fundamento
verdadeiro das palavras; “Sou, física, moral e intelectualmente, o produto de quatro ou cinco famílias que o
tempo e o meio vêm debilitando, e que se aclimatou, sem se integrar, no ambiente americano. Isso explica,
talvez, as tendências disciplinadas e disciplinadoras do meu espírito, a minha paixão pela ordem clássica, e a
feição puramente europeia do meu gosto. Tenho horror à insubmissão, e à desordem, que assinalam os homens
cujos antepassados foram escravos. Vibram, automaticamente, no meu sangue e nos meus nervos, oito séculos
de civilização.”
São do Humberto de Campos ou do Espírito reencarnado as intuições de tais ideias reminiscentes?
O principal traço do seu Espírito, Humberto de Campos o sentia talvez na perseverança com que
trilhava o caminho da vida, mesmo o da obscuridade, porque (a frase é sua) disse: Gosto de subir, mas não
gosto de mudar de escada.
Em verdade, a perseverança era apenas a resistência subconsciente do Espírito aos óbices — naquela altura da vida, amolgadores da Alma culpada e carecente das provações da miséria e da humilhação.
Bem menino ainda, longe de sua mãe, sofreu dores no corpo enfermo, passou fome, curtiu chuva
e frio, teve por leito muitas vezes o chão duro e mal forrado.
Empregado de comércio caipira, Humberto de Campos desempenhou misteres rudes e rasteiros,
de vassoura na mão ou junto a tanques de lavar vasilhames, sempre identificado com as obrigações que achava
naturais e compatíveis com a sua situação subalterna.
Nunca, em tal período de provação inicial da vida, aspirou — invejoso — às culminâncias dos
contemporâneos; jamais acariciou realizações que lhe trouxessem aplausos e sagração; em oportunidade alguma fremiu pelas gloríolas de que teve notícia ou idéia, em ensaios de revolta contra a sua colocação na hierarquia social.
Nesse período (ele o diz em mais de uma parte de suas Memórias) a ambição só lhe soprou um
sonho: ser sócio da casa comercial onde mourejava.
Foi o maior remígio daquela inteligência de ouro, que só o tempo faria polir, pelas mãos do Destino, para brilhar intensamente aos olhos das gerações do presente e do futuro.
Quando o seu horizonte intelectual se elasteceu rumo das leituras, os primeiros livros apetecidos
não foram os da literatura propriamente dita, mas os que, inscientemente quiçá, lhe iam trazer alguma remota
lembrança do passado, e entre esses a estafadíssima — História de Carlos Magno e dos doze pares de França.
Leu mais tarde Coelho Neto, que, com uma viagem à terra natal, acendera grandes entusiasmos
em todo o Maranhão. Humberto de Campos partilhou do encantamento e decalcou até alguma débil produção
retirada dos livros do festejado escritor; mas, apagado o fervor, quando teve o primeiro contato com uma
biblioteca pública, seu autor preferido foi o mesmo de Santos Dumont — em idêntica altura de idade: Júlio
Verne.
Só alguns meses depois, levado por indicações que colheu em artigos que compunha na tipografia
onde trabalhou, e também hauridas em palestras que ouviu, perdeu-se no labirinto de Max Nordau, Ernesto
Haeckel, Luiz Büchner e outros grão-mestres do materialismo científico, crítico e filosófico.
Bracejando dentro da treva ainda espessa que lhe sombreava o entendimento, ele buscou assimilar
a álgebra da ciência que lhe vinha explicar os fenômenos da vida, a razão de ser de muitas cousas que o raciocínio não sabia enfrentar; procurou trazer do fundo do próprio EU a claridade — que lhe iluminasse aquele ambiente de palavras meio hieroglíficas — destruidoras de todos os sentimentos religiosos e de todos os temores
ditados pela intuição da idéia de Deus.
Lendo quanto lhe era possível, nunca teve idéia de vir a ser escritor. Nunca.
Um livro de vulgarização da filosofia positivista trouxe ao seu entendimento um pouco de esperança na primazia do homem sobre todo o Universo, mas não lhe apagou o sentimento recôndito que vigilava pelos rumos definitivos, entretendo-o apenas com ideias provisórias, até que chegasse o tempo da ascenção da
futura glória das letras pátrias.
E começou a luta de Humberto de Campos, a debater-se com ele próprio, para entender o negativismo dos materialistas.
Precisamente aí, esses líderes do Nada despertaram o adormecido passado cultural de Humberto
de Campos, trazendo à tona do seu raciocínio consciente a avantajada bagagem de conhecimentos com que
viajara através das vidas anteriores.
Agitando as fibras mais recônditas da sua Alma, e falando ao criticismo jacente no seu Espírito,
tais autores fizeram o benefício de trazer-lhe a oportunidade de aquecer ao sol do livre exame as velharias
religiosas, salpicadas da ferrugem do passado e encharcadas pelo enxurro do ateísmo negador.
Humberto de Campos confessa que o esforço para compreender os transcendentes problemas versados por aqueles ateus eminentes, ficava acima dos seus conhecimentos e da sua capacidade de assimilação.
E ficava sem destrinçar o porquê de alguns fenômenos, ainda que contente com a liberdade aparente que as doutrinas negadoras lhe haviam proporcionado.
Criado à solta, num vilarejo de acanhados limites, o menino Humberto aprendeu todas as maldades garotas que na sua idade dão a medida de uma índole má; vivendo em lar onde não havia homens e onde
contava com o imenso amor que lhe votava sua mãe; ligado a outros criançolas vadios, que viviam de traquinadas perversas, e mesmo a adultos de ímpetos facinorosos; Humberto aprendeu também uma linguagem imunda de que se servia, nas repetidas explosões de cólera infantil, apesar dos castigos rigorosos recebidos das
mãos maternas.
Por isso, tinha ele um vago receio dos castigos com que os preceitos religiosos ameaçavam os filhos desobedientes, os autores de atos perversos; mas, quando o materialismo quebrou em seu entendimento
ainda rudimentar a idéia de Deus, de uma outra vida de reparação e arrependimento — exultou e sentiu-se
mais à vontade na intenção de praticar cousas piores, de vez que o Nada da morte tudo apagaria.
Mas, algo velava pela responsabilidade futura do seu próprio Espírito.
A seus olhos veio a leitura de Samuel Smiles, o autor dos livros mais sadios que se possam exigir
para formação do caráter e disciplina da atividade.
Recebendo indelével impressão dos profundos ensinamentos morais que neles se encontram, fez
desses livros seus verdadeiros mestres e seus defensores no júri espiritual onde seriam julgados os criminosos
princípios do ateísmo, homicidas da sua ingênua crença de adolescente.
Segundo Max Nordau (Humberto o lembra), a memória, isto é, a repetição de um determinado
pensamento, era consequência de movimentos sanguíneos acionando células cerebrais; no entanto (raciocínio
de Humberto), o gramofone — simples máquina, repetia mais do que o pensamento, a voz humana, sem intervenção de neurônios e das cordas vocais.
Era a prova de que, dentro do anão humano dos livros, havia o hércules do subconsciente: o Espírito.
E, assim, por entre essas crises de espiritualidade que lhe assaltaram a alma aos três lustros de
existência, sentindo em choque constante, no subconsciente, as leituras que fizera (Büchner e Smiles, Comte e
Coelho Neto), o futuro escritor — glória das letras brasileiras — foi emergindo de si próprio, aprimorando sua
cultura, sem recursos pecuniários, nem possibilidades que lhe permitissem aspirar a um diploma de doutor das
academias científicas.
E afinal venceu, porque trabalhou, sentiu a verdade dentro das lutas, auscultou a predestinação
das criaturas no cenário das realidades, e só não viu através da cortina da Dúvida porque lhe faltou coragem
para levantá-la e espiar no além da vida terrena.
Trabalhou, subindo os grandes rios amazônicos até às regiões ingratas dos seringais, onde as febres se embocam em remansos paludosos; auscultou a predestinação das criaturas, observando a triste condição dos servos daquelas glebas, verdadeiros escravos na terra da liberdade maior; contemplou o cenário das
realidades constatando o contraste entre o sacrificado extrator do látex precioso, sempre pobre, anônimo, febricitante de paludismo, preso ao patrão-senhor, — e o ricaço que, nas capitais frui o sangue, a vida a tristeza, as
lágrimas, as desesperanças daqueles párias, mudadas no conforto dos palacetes e nas alegrias do vinho de
luxo, existências consumidas e transformadas em ouro para enfeite das verdes flanelas que forram as mesas de
jogatina nos cassinos elegantes.
E só não viu além das fronteiras da vida, porque não testemunhou — de visu — o sofrimento
castigador que tritura, no remorso e no desespero, os Espíritos culpados, nos insondáveis arcanos das consciências, na Terra e no Espaço.
Mas não foi perdido o fruto de tais observações. Ele escreveu para a imprensa emocionadas páginas de narração e defesa, sobre a situação humilhante e sacrificada daquela gente, novos calcetas do trabalho forçado.
Foi o primeiro traço que o indicou à notoriedade entre os homens que escrevem para o público,
embora ele (que jamais pensava em ser escritor) houvesse cogitado apenas em protestar contra o regímen
cruel dos seringueiros e pedir para isso a ação do Governo.
Ingressando, a seu tempo, na aristocracia do jornalismo que vicejou nas terras da Amazônia, na
época de Eliseu César, Dias Fernandes, Paulo Maranhão e tantos outros, ali seu Espírito reconstituiu decerto
muitos quadros das existências anteriores, quando estudou os costumes quixotescamente pródigos dos tabaréus enriquecidos nos seringais, e observou o luxo importado da Europa pelos magnatas da política e do dinheiro.
Foi nesse período, de primeiras alternativas, quando ainda escrevia nas colunas da oposição, que
completou talvez o derradeiro estágio preliminar da sua ressurreição intelectual, antes de tornar-se, ali e na
metrópole brasileira, um dos altos expoentes dos talentos literários do seu tempo, como que a documentar que
o valor das inteligências é interior e independe de grande saber e de grandes ambientes sociais preparatórios.
Quiçá, por força de tal disposição inata, Humberto de Campos disse do seu feitio: “Não gostava
de estudar; mas gostava de ler.”
Iniciando sua vida de plumitivo, Humberto de Campos revelou ser um grande e elegante psicólogo, que sabia mesclar a um incidente banal da vida cotidiana o comentário erudito, cheio de observação e filosofia, exteriorizando um Espírito seguro dos seus pontos de vista.
Mas, onde haurira esse aticismo, aquela ironia finamente sarcástica com que pontilhava as referências aos ridículos de todo gênero?
Quem lhe deu, no ambiente plebeu da matutada que fingia de elegante e culta, o dom de altear-se — sem mestres — às culminâncias de crítico simpático ou justo, bitolando o perfeito e o censurável nas medidas exatas da verdade?
Amadurecendo seu entendimento num meio infestado de adventícios, para os quais a Canção do
aventureiro (do Guarani, de Carlos Gomes) poderia servir de primeiro versículo da GÊNESIS da sua Bíblia,
Humberto de Campos subiu para os minaretes do bom-senso, ao invés de descer a escadinha que conduz à
piscina de lodo onde se banham as consciências sem escrúpulo.
Viu decerto muita vez o ricaço pachola, para acender o charuto, tirar do combustor de gás a chama com uma cédula de quinhentos mil réis…
E então observou serenamente, sem a invejosa revolta que faz de cada fracassado um socialista — noivo do Comunismo, todas as contingências inelutáveis das sociedades, e tirou as equilibradas conclusões da — harmonia dentro das desigualdades — que lhe nortearam a existência de homem pobre e trabalhador incansável.
Compreendeu que a vida se rege por uma série de leis naturais que ninguém pode modificar, e
que as coletividades se governam pelas convenções que consultam os interesses dos mais fortes.
Respeitar essas leis e essas convenções, eis a maneira do indivíduo entrar e vencer na harmonia
da vida comum.
Só com a sua inteligência estelar, com o altivo desejo de trabalhar pelo pão de cada dia, dentro da
lei divina que para isso impôs o “suor do rosto” aos Espíritos culpados, Humberto de Campos, com a mesma
pena, feita de — perseverança — escreveu o nome na lista dos parlamentares da Câmara dos Deputados e o
inscreveu também, na elegante imortalidade da academia Brasileira de Letras.
Servido por um talento, que era brilhante do mais alto quilate, tanto fulgia à luz solar, nas primorosas crônicas de comentário elegante, quanto fulgurava à brancura lunar, nas facécias salgadas que era preciso esconder nas sombras da noite, para que não se visse o rubor que acendiam, equações de riso — simbolizadas algebricamente por XX…
Para não acotovelar concorrentes, subiu pelo meio da escada, deixando os corrimãos aos trôpegos, e assim venceu sem polêmicas, sem invejar ninguém, sem o cabotinismo de bater aplausos à frente dele
próprio, sem conduzir no bolso vidros de pó dourado para derramar sobre os tamancos da fatuidade endinheirada, novo engraxate a polir de lisonja os coturnos dos que dão boa gorjeta.
É que naquele engenho cerebral só se produzia o mel alvejável que açucara as emoções das sãs
leituras, e nunca a bagaceira que embriaga de sentimentos malsãos as mentes afeitas a beber nos livros e jornais o aperitivo com que aguçam o apetite para os banquetes infernais da intolerância política ou religiosa.
É preciso admitir a predestinação do Espírito — na escolha das provações — para compreender
porquê Humberto de Campos não se atolou nas corruptelas, transigindo, venalizando-se para nadar em conforto e banhar-se de luxos requintados nas praias e cassinos.
Desde antes de ingressar na imprensa carioca, ainda na Amazônia, os seus escritos mostram uma
conceituação filosófica que não teve tempo de aprender nos compêndios tabaréus do interior nortista, nem no
rápido estágio do periodismo local.
Naquele cenáculo de talentos que fulguram na Província do Pará não havia lugar para tatibitates
primários, nem professores para ensinar o abc do jornalismo a matutos de boa vontade.
Humberto de Campos teve contato com os governantes dali, secretariou o árbitro da política paraense, o então indiscutível — Antônio Lemos, teve nas mãos todas as oportunidades para fazer negócios e
amealhar fortuna; mas, quando tudo mudou, e a turba apedrejou os ídolos da véspera, desmoronando os templos da antiga devoção, a Humberto de Campos, de quanto lhe viera para os bens patrimoniais, só lhe ficara a
sua pena de ouro, com a qual escrevia — molhando-a às escondidas no próprio coração.
Foi com esse cabedal (verdadeiro tesouro, decerto, para quem o sabe movimentar) que chegou ao
Rio de Janeiro, onde venceu pelos fulgores de um Espírito que ressurgia para a vida intelectual, trazendo nos
baús do subconsciente a indumentária completa para os grandes festins da Inteligência.
Percorrendo-se as crônicas de Humberto de Campos nota-se o estranho consórcio de uma filosofia profundamente erudita e sintética, de cunho espiritualista, com uns laivos, esporádicos e típicos, daquele
naturalismo que fez certa fama do teatro grego — tão flagrante na Lisistrata, de Aristófanes… E quando
escreveu naturalismo algo mais cru, talvez fosse para dar ao bolso mal provido a moeda devida ao merceeiro…
Cioso do seu cabedal, o Espírito de Humberto de Campos não se banalizou nas arremetidas boêmias contra a garrafeira dos botequins afidalgados ou não, ou para cortejar a popularidades, a espalhar ditos,
em pílulas de galhofa, para gáudio da gente que ama e cultiva a pornografia.
Sem empáfias de senhor das letras, sem impingir-se — à força de dizer: aqui estou eu! a glória literária lhe chegou às portas do lar e lhe deu ingresso para o Panteão dos verdadeiros imortais.
Não adulou governos, nem deitou a tarrafa do elogio venal, para pescar o peixe vitalício de boa
sinecura burocrática.
Agradou, é certo, alguns políticos e literatos; mas o fez com a linguagem carinhosa de amigo, e
não com a reverência do cortejador que se percebe estar semeando — para colher mais tarde…
Esmerilhando-se particularidades da vida do grande escritor, possivelmente se lhe notarão jaças
no diamante do seu caráter; mas, é preciso compreender Humberto de Campos em toda a extensão da sua
personalidade espiritual, frisando as condições especialíssimas que assinalam os responsáveis por grandes
culpas do passado, quando reencarnam para uma vida de resgate.
Sempre tocados de mediunidade, esses Espíritos são acessíveis a influências e arrastamentos ligados às afinidades das existências anteriores, e, por isso, têm atitude bem díspares — nem sempre explicáveis
dentro do padrão de conduta ou das exigências das condições sociais do indivíduo.
Também é mister atentar para o profundo pessimismo que a vida de Humberto de Campos armazenou durante a estadia no norte do Brasil, onde os costumes obedeciam a usos e necessidades locais.
Educado na pobreza descuidada e desprovida de tudo que alicerça um bom início de vida, ele,
pobre garoto — cuja riqueza única foi o imenso amor que sua mãe lhe consagrou, vicejou isolado, com o estigma da feiura plástica que o tornara desconfiado e arredio, sem exemplos de moral sadia (inclusive em parentes — de família margem da lei); ele não teve, na
sociedade mais alta em que ingressou, exemplos fortemente sãos, nobilitantes, elevados, que lhe apagassem as
indeléveis impressões que armazenara na memória.
Bem ao contrário, o espetáculo que se lhe apresentou foi o de uma turba que se entredevorava, na
ânsia de ganhar dinheiro, na febre do ensilamento da borracha, sem escrúpulo no sacrifício dos seus semelhantes, tripudiando — impunes — sobre as mais comezinhas leis de humanidade.
Por outro lado, gozadores indiferentes aos males alheios, em orgias permanentes de gastar dinheiro, tomando coquetéis de champanhe, espojavam-se nos vícios do jogo e da sensualidade, sem que represália
alguma lhes viesse sobre o egoísmo empedernido.
Sem fé, tendo atravessado o mar da Dúvida, sem conseguir atinar com o porto da Certeza, seu
espírito religioso ficou, após o insucesso da viagem, bordejando nas águas mornas da indiferença.
Por isso, quando ingressou num ambiente e numa situação para a qual não estava preparado, o — homem — nem sempre teve a firmeza que o — Espírito — guardou no rumo.
E também por isso, talvez, quando as glorificações lhe chegaram, não teve a alegria de viver,
porque, desde então, muito lutou e muito sofreu, presa de um mal terrível que lhe atormentava o corpo, permitindo-lhe às vezes, sonos de uma hora apenas, deixando-lhe só a lucidez para medir a extensão do seu drama, vendo-se — ele — o festejado literato predileto da época, acorrentado pela Dor, enquanto os medíocres os
rimadores das favelas e das silabadas matutas palmilhavam livremente as avenidas…
Conduzido por invisíveis mãos protetoras e amigas, chegou ao pináculo de uma vida, que devia
terminar cedo, oferecendo a eloquente lição sintetizada na sua existência de sagração e amargura, fundidas
num vinho fascinante de perfume, mas terrivelmente amargo de tragar.
E a santificar e a explicar o calvário da sua reencarnação — ei-lo formidavelmente resignado,
mostrando o Espírito, enriquecido no passado, a sofrer todas as penúrias no resgate das culpas, a lutar heroicamente até ao final.
Sem isso, a sua reencarnação teria sido inócua, quase estéril, talvez em pura perda, valendo por
uma estagnação temporária na ascese para estágios de mais alta perfeição.
O seu fim, de torturas, é a tinta forte a ressaltar o fundo do quadro: o palácio da Glória, a cuja
porta a Morte o espera com o seu fatal amplexo.
E até essa esplêndida vivenda, onde também vive a Fama com as suas tubas de ouro, ele chegou
sem perder o trilho.
Infante, correu sérios riscos de mergulhar no nomadismo parasita, desajudado que foi de qualquer
educação vigilada e eficientemente moralizadora; moço, caiu num ambiente em que as seduções fascinam e
subjugam em múltiplas volúpias, e onde se aprende no bilhar do fingimento as carambolas dos amores ilícitos,
no pôquer da vida a blefar os incautos, na Bolsa dos desonestos a impingir apólices que representam contos-do-vigário.
Depois, chegando mais alto, se se dobrasse às tentações da situação reinante, teria metido fundo
as mãos nos cofres dos favores públicos, tirando de lá aquela farta côdea de pão desavergonhado que dá para
sustento durante um bom resto de existência; se obedecesse aos acenos da cobiça e da inveja, Humberto de
Campos teria sido um desses socialeiros disfarçados, que gritam contra as injustiças sociais, achando as riquezas e bens mal divididos — só porque não lhes está nas unhas sujas um bom quinhão de dinheiro e de honrarias.
Guardado, porém, pelos invisíveis Amigos que o confortaram e lhe estenderam mãos compassivas, ele viveu — homem do seu tempo, sem laivos angélicos — uma existência útil de bom brasileiro, que
enriqueceu o patrimônio literário da sua terra, pagando o pesado tributo lançado sobre as grandes inteligências — quase sempre em conta corrente devedora no Passado.
Sem resignação para sofrer, teria fugido ao cárcere da Dor, pulando a janela do suicídio, mesmo
indiretamente, enfiando-se na vida meio inconsciente dos boêmios que não se respeitam e preferem mostrar-se
em público quando a polícia está cochilando de cansaço nas rondas.
Seus escritos não têm jeremiadas de injustiçado da Fortuna, e, na medida da sua beleza e da sua
forma erudita e adequada, guardam a linha reta que vai do — Humberto de Campos moço, festejado e próspero, ao — Humberto de Campos enfermo, atormentado de sofrimento e de responsabilidades pecuniárias, que o
seu cérebro media e provia cotidianamente.
Trabalhando até às vésperas de baquear sob a ininterrupta agrura de um mal progressivamente
doloroso, ele ficou, sem orgulho, mas altivo, esperando que a Morte lhe viesse arrancar das mãos a pena incansável no ganho honesto do pão cotidiano.
A sua coragem na luta pela vida não teve crises de anemia.
Seu Espírito trouxe reservas de resistências, e com esse mealheiro atravessou reveses tremendos,
sem choramingar a piedade humilhante de quem quer que seja.
Muitas vezes, quando fazia pender a fronte exausta sobre as mãos, terá tido, possivelmente, a visão indecisa de um amigo imponderável a encorajá-lo a suportar impávido todas as amarguras, sem blasfêmias, sem murros de revolta sobre a mesa do labor, que os seus olhos, semifechados pela moléstia, cada vez
menos divisava.
E assim misteriosamente confortado, Humberto de Campos oferecia a surpreendente aparência de
uma criatura que, durante a noite, tomava injeções de dores, para, durante o dia, sentir-se mais forte na resistência ao sofrimento.
Certo, ele se considerava um enterrado vivo; mas, nesse mesmo paralelo, mostrava a quietude dos
mortos — que jamais podem protestar contra o domínio térreo do silêncio e contra o reino perpétuo da treva
que soberanos são das sepulturas.
Se escrevia chorando, as lágrimas eram transformadas na tinta melancólica e emocionante que
emprestava às palavras uma ressonância de poesia dolorida, de místicas melodias vibradas de alma para outras almas gêmeas, num mistério indefinível de piedade e dor. E quando as mãos anquilosadas pela intumescência mórbida só lhe permitiam o trabalho em máquina de escrever, ainda o misterioso elo parecia transmitir
aos corações dos leitores as pancadas do teclado, levando em cada letra um soluço do cruciado Humberto de
Campos — que com esses soluços gravados no papel oferecia ao mundo os seus derradeiros poemas de amargura e resignação.
Nem mesmo a doçura suavíssima da crença religiosa atenuava o drama silencioso daquele esboroar de corpo heróico, talvez para que não parecesse ser a sua conformação ao sofrimento a simples consequência de autossugestão inibitória, de misticismo fanático a galvanizar-lhe a alma na resistência à dor física.
E isso ainda mais agrada a delicadeza, triste e resignada, com que agradecia as manifestações de
simpatia recebidas, olhando com a tolerância de um apóstolo de brandura os testemunhos da alheia fé.
Já em 1933, nas colunas de um dos nossos prediletos jornais, o Diário Carioca, Humberto de
Campos deixava este lapidar e eloquente documento de terna e comovida simplicidade:
“Uma das últimas publicações que fiz nesta folha antes que a gripe me pusesse knock-out”, constou apenas da transcrição de alguns trechos do meu “Diário”, relativos a dois meses de 1931, e teve, mesmo,
como título, “Diário de um enterrado vivo”. Gritos de alma, gestos surdos de um coração no fundo de uma
existência calada. Agonia ignorada de todo o mundo. Pedidos de socorro… levantados num subterrâneo deserto. Gemidos, enfim, de um homem que se habituou a gemer com os lençóis na boca, afogando-se a si próprio,
para não perturbar o sono do seu vizinho.
A denúncia imprudente desse sofrimento, agora, encontrou, todavia, repercussão em algumas almas caridosas. Dez ou doze cartas me vieram às mãos, trazendo, cada qual, uma palavra de solidariedade e de
conforto. Pessoas que jamais vi, corações que jamais palpitaram nas proximidades do meu, deixaram os seus
cuidados cotidianos, gastaram o níquel do seu pão ou do seu cigarro no selo da franquia postal, e enviaram ao
trabalhador ferido e pobre o remédio que lhe podiam dar.
Estou às suas ordens, — dizem alguns dos missivistas; — estou pronto para, sem nenhuma retribuição, ser o seu datilógrafo, e fixar o seu pensamento, quando lhe faltar de todo a luz dos olhos!
— Continue essa admirável lição de coragem, recebendo de cabeça erguida a sentença do Destino! — Incentivam-me outros.
E outros, ainda:
— Volte-se para Deus; prepare a sua morte com a sabedoria cristã que a misericórdia divina lhe
forneceu e que não soube utilizar na edificação da sua vida. Aproveite a luz que bruxuleia no fundo do seu
espírito, e peça à Igreja o consolo que o mundo lhe nega.
Três desses missivistas, compadecidos, me apontam, porém, para chegar à presença de Deus, e
obter aqui mesmo na Terra as suas graças, outro caminho: são almas caridosas que me desejam ver, não livre
dos tormentos do Inferno na outra vida, mas da cegueira completa, que continua a processar-se, aqui mesmo,
neste mundo. E os signatários, que se revelam todos, além de bondade de coração, de cultura de espírito, me
dizem, com insistência afetuosa:
— Por que não tenta o Espiritismo? Por que, se a Ciência dos homens lhe tirou a esperança, não
tenta o sobrenatural? Não precisa crer; ninguém exige a sua adesão; mande consultar um “médium”, siga as
prescrições que ele lhe der, e espere. Não precisa fé. A bondade de Deus é para todos os seus filhos. O senhor
pode receber a parte do Filho Pródigo.
Ante essas manifestações de interesse pela sorte de um humilde escritor doente, é natural que esse
escritor demonstre a esses amigos generosos e desconhecidos que não é por orgulho, ou por intolerância filosófica ou religiosa, que ainda se não curou. Não foi o enfermo que recusou os recursos da medicina sobrenatural: foi a farmácia prodigiosa e invisível que se fechou diante dele. E como todos os acontecimentos da minha
vida constam do “Diário” que ainda agora determina esta explicação pública, limito-me, para este esclarecimento, à cópia de duas páginas desse livro íntimo. Ei-las:
“DOMINGO, 14 DE AGOSTO 1932. — Há um mês, mais ou menos, mme. F., proprietária
da pensão em que atualmente resido, perguntou-me se acreditava no espiritismo. Respondi-lhe
com um gesto vago, mas em que havia mais negativa do que afirmação.
— Eu também não creio, — respondeu-me; — mas, tais são as cousas que tenho visto, e
tantas as curas por Espiritismo, que fico na dúvida, sem saber o que pense a respeito.
E conta-me o seu caso, e o caso de amigas e conhecidas suas, cujas enfermidades foram
diagnosticadas, e curadas com receitas fornecidas pelos “médiuns” os quais chegaram a corrigir,
algumas vezes, médicos ilustres anteriormente consultados. E conclui:
— Por que o senhor não experimenta o Espiritismo? Se o senhor quiser, ponha o seu nome, a sua idade e a sua residência em um papelzinho, que eu dou a meu marido e ele faz a consulta.
Dou-lhe a papeleta, com essas informações pessoais. E esgota-se a primeira semana. Decorre a segunda. Termina a terceira. E não me lembrava mais do caso, quando esta manhã, mme.
F., empurrando levemente a porta do gabinete, onde eu escrevia tranquilamente, pediu licença e,
entrando, encostou-se à mesa.
— O senhor deve estar aborrecido comigo e com F., começa, ao mesmo tempo que
calça as luvas, pois que vai sair para a reunião dominical da sua igreja protestante; mas meu
marido não se esqueceu do negócio do Espiritismo… Ele está é embaraçado para lhe dar a resposta… O senhor é, porém, um homem superior, e não ignora a gravidade da sua doença. De modo
que eu achei melhor vir lhe dizer logo a verdade.
Toma fôlego. Desabotoa as luvas. Abotoa-as novamente. Continua:
— F… (o marido) foi a duas sessões de Espiritismo, e tanto numa como na outra, com
dois “médiuns”, que não conheciam um a resposta do outro, o resultado foi o mesmo: isto é, que o
senhor está muito doente e pode morrer de um momento para outro; de modo que nem vale a pena
receitar… Os Espíritos acrescentam que o senhor abusa muito da sua saúde, mas que o médico
que o senhor tem é muito bom…
E notando, parece, em mim, o efeito da notícia:
— É possível, porém, que isso não seja verdade… No meu caso ele acertou… No de S…
também, e em todos os outros… Mas, no do senhor pode não dar certo… De qualquer modo, o senhor é um espírito forte, e é melhor estar prevenido…
Um frio irresistível me corre pela espinha. Agradeço a informação, simulando serenidade,
e mme. F. retira-se. O coração bate-me, descompassado. Tenho a impressão de que vou desfalecer. Ponho-me de pé, buscando respirar com força. Deito-me. Levanto-me. Passeio pelas duas salas desertas, atônito, o pensamento em desgoverno, como quem acaba de receber uma violenta
pancada no crânio.
Afinal, eu creio ou não creio?”
Aí está uma explicação, sincera, leal, aos espíritas que me escrevem, interessando-se pela minha
saúde. Bati, embora sem fé, ou mandei bater por mão alheia, à porta em que todos recebem esperanças e consolação. E o que de lá me veio foi, ainda, como vêem, a desilusão e a Dor…”
Hoje, quantos têm entendimento de entender, podem constatar que o grande e querido escritor — chamado, na Terra, Humberto de Campos, nunca esteve abandonado daqueles Seres que aparecem aos olhos
do vulgo insciente como constituindo o — sobrenatural.
As mensagens do Espírito de Humberto de Campos identificam, pelo texto e pela mesma vibração
de beleza das do Humberto de Campos-homem, a continuação da vida intelectual, deste, naquele.
Se às horas do sofrimento do corpo, não veio o remédio material, descia de lá a aura de coragem
resignada para balsamizar a provação do Espírito na subida do seu calvário, até que chegasse o momento do
testemunho.
E o testemunho aí está reiterado em páginas de encanto e ensinamento, a caminho de uma biblioteca, a que ficará ligado também o Espírito meigo e sensibilíssimo do médium, Francisco Cândido Xavier.
Do fundo da minha humildade absoluta, não tenho autoridade para pedir cousa alguma a esses gigantes do Espiritualismo onde milita um EMMANUEL, e onde já fulge Humberto de Campos; mas, apesar disso,
tenho o desejo de suplicar que sobre a Alma de cada um dos leitores de tais mensagens desça a luz da crença,
ou, quando menos, uma sensação de bênção, de paz, de conforto, de esperança serena, de confiança no futuro,
um propósito de melhores sentimentos, a PAZ DA CONSCIÊNCIA, tudo para maior glória do Espírito de Humberto
de Campos, na verdadeira glória da VIDA ETERNA!
Almerindo Martins de Castro