Para que melhor se possa compreender a mensagem seguinte, transcrevemos, pedindo vênia, a brilhante página literária publicada em 4 de outubro de 1939, no prestigioso diário Jornal do Brasil, pelo festejado escritor que se pseudonimizou — Gastão Penalva:
A Humberto de Campos — (Onde estiver)
Meu irmão.
Passei todo o domingo a reler tua obra de afeto e de melancolia, enquanto o rádio, posto a falar baixinho, anunciava os últimos telegramas da guerra.
Então, verifiquei como tua alma sofreria se ainda estivesse cá por baixo, no nosso convívio amigo, e a tua imensa sensibilidade se havia de ferir nos afiados gumes das surpresas diárias, quando, às primeiras horas da manhã, já se depara o grande mundo sofredor às voltas com os seus novos sofrimentos.
Sou, como tu, um torturado espírito que teve a infelicidade de nascer no tempo cruel dos desentendimentos e das ambições fratricidas. Vi, com olhos infantes, uma mudança de regime, ao passo que na minha casa os mais idosos comentavam com lágrimas a desaparição do culto magnânimo em que poderiam ter esperado morrer. Ouvi, de ouvidos que se fizeram para os enlevos balsâmicos da poesia e da música, o estrondo ameaçador das granadas de 93 [1893], naquela jornada de ódios e rivalidades que, tanto tempo, separou duas classes. Então, fugimos da cidade para as caladas bucólicas do Andaraí. Corremos para a nossa chácara, onde, menino, tracei e executei todo um programa de estrepolias terríveis, as falcatruas dos meus oito anos, acolitadas pelo moleque inseparável, o “demônio familiar” do avisado Macedo. De lá, entre as mangueiras acolhedoras do arredado bairro, na pista dos coleiros que vinham buscar o alimento nas armadilhas mascaradas, em troca da própria vida, de lá, ainda escutava o ribombo longínquo que denunciava a entrada à barra do famoso “Aquidaban”, o qual, alguns anos depois, na vida de Marinha, seria o meu primeiro embarque. Na passagem do século, quando esboçavas aquela página tristíssima das tuas desoladas memórias, criança ainda, no fundo de um armazém provinciano, a marcar fardos de toucinho, eu entrei para o Colégio Militar, animado, feliz, sob os carinhos de todos, e tu, lá longe, no teu Maranhão ilustre, já na luta da vida em que mais tarde te farias um pobre herói vencido.
Em seguida, outras tragédias. Outras revoluções.
1904 traz, quase ao fechar as portas, o tumulto político que se valeu da imposição da vacina obrigatória. Eu, aspirante de Marinha, fazia, nos alcantis de S. Bento, uma zelosa guarda de frades que me valeu uma semana de tratamento fidalgo. Vi com mágoa o final da mazorca, ao largar para sempre a penedia conventual que fora, em eras da Colônia, o primeiro abrigo da minha escola e da minha classe.
1910, no mesmo mês fatídico que os fados escolhiam para mandar revoltas ao Brasil, a Armada se rebela, põe manchas negras no sol da profissão nobilíssima, que decai, se acabrunha, definha, até que auras galernas vêm de novo apojar as gáveas do retorno.
1914 traz para o mundo a guerra máxima, cujos ecos de dor e maldição só desaparecem ao despontar no proscênio um panorama mais desolador de rancores desabridos e assaltos clamorosos ao direito dos povos.
Folheio então páginas hediondas. Constato cenas que escaparam às outras guerras da história. Surpreendo horrores que jamais vieram à mente dos Átilas antigos, com venenos nos olhos e maldições nas patas dos cavalos.
Já ouviste falar, meu Humberto, ao tempo em que vivias mortalmente, em guerras sem declaração, invasões sem anúncio, conquistas sem ideal? Nunca. Tiveste notícia de mães desventuradas a cobrir com o próprio corpo os corpinhos dos filhos, enquanto ruge acima o pássaro da desgraça? Nunca. Sabias que se formavam legiões de homens e mulheres, os falhados, os párias, os descridos da vida, sob o rótulo de suicidas de guerra, eleitos para as missões que encerram fatalmente a morte? Já viste coisa mais apavorante, Humberto? Figura, por um momento, esse desfile incrível de sonâmbulos humanos, com o coração já sem rumo, e o olhar perdido da salvação de além-túmulo… Credo! Quanta miséria escapou ao Dante para incluir nos seus ciclos eternos!
Pois é o que ainda vemos cá na Terra. O que a minha geração, que foi tua, ainda assiste com a alma aflita, imersa em negro pó.
Neste ponto, continuo a rever na tua obra os conceitos e as imagens em que profligas o próprio homem na sua rota maldita que vai dar num caminho de trevas. Há um capítulo magistral que intitulas “O rei da criação”. Um Gênio, farto do Espaço, decide habitar a Terra. Baixa à extensa planície e logo avista um camponês a puxar um burro pelo cabresto. Trava-se aquela conversação que pontilhas de filosofia e amargura.
O Gênio: — Qual foi, de vós, neste planeta, que inventou a guerra?
O burro (indicando o homem com o focinho): — Foi ele, senhor.
E após uma lição superior em que realçam as virtudes do animal:
O Gênio: — Qual, por ter vida honrada e pura é o Rei da Criação, e se considera, na Terra, a imagem de Deus? (Para o burro). És tu, não é verdade?
O burro: — Não; é ele, senhor.
Há uma lenda árabe em que Deus, arquitetando milagres, encontra o Diabo arquitetando maldades, e lhe pergunta, abismado:
— Anjo mau, que fizeste das minas de ouro que acabei de colocar aqui, bem batidas da luz do Sol?
— Escondi-as nas entranhas da terra, Senhor. Se o homem as descobrisse, com certeza as transformaria em armas.
Aí está, meu amigo, o que eu te queria contar. Agora, vou continuar a reler os breviários de amor e desventura que deixaste entre nós.
Desculpa perturbar-te o sono. E até logo.
Gastão Penalva
[Vide a resposta de Humberto de Campos na mensagem que segue.]