Artur da Távola
Independente de qualquer posição pessoal, crença ou convicção, a figura de comunicação de Francisco Cândido Xavier percorre décadas da vida brasileira operando um fenômeno (refiro-me à comunicação terrena mesmo) de validade única, peculiar, originalíssima. Não vou, portanto, por falta de autoridade para tal, analisá-lo do ângulo religioso e, sim, as relações de sua figura de comunicação com o público.
Com todos os significantes necessários a já ter desaparecido ou ter-se isolado como um fenômeno passageiro, a figura de comunicação de Francisco Cândido Xavier, no entanto, ganha um significado profundo, duradouro, acima e além de paixões religiosas, doutrinas científicas ou interpretações metafísicas.
A inexistência de um tipo físico favorecedor, funciona como outro curioso paradoxo a emergir da figura de comunicação de Chico Xavier.
Aquele homem de fala mansa, peruca, acentuado estrabismo, pessoa de humildade e tolerância, não configura o tipo físico idealizado do líder religioso, do chefe de seita, do místico impressionante.
A clássica barba dos místicos, ou a cabeleira descuidada, ou o olhar penetrante e agudo dos líderes, inexistem no visual de Chico Xavier.
Acrescente-se a inexistência, em seu modo de vestir, de qualquer originalidade ou definição de estilo próprio, ainda que contestador dos estilos formais e burgueses.
Não tem, portanto, Chico Xavier, nos aspectos externos e formais de sua figura de comunicação, nenhum dos elementos habitualmente consagrados como funcionais, ou impressionantes dos aspectos externos do grande público, elementos de comunicação incorporados consciente ou inconscientemente por figuras importantes nas religiões.
Até a figura do Papa, líder de uma comunidade religiosa, é envolta em pompa e festa, estratégia visual destinada à maior pregnância de sua mensagem e à definição de sua posição como símbolo.
Nem mesmo a mais decidida modéstia e humildade pessoal de vários papas são suficientes para que a figura papal se desvista da pompa e simbologia relativas ao reinado que representa.
Até nas religiões orientais, menos pomposas, as figuras líderes são cercadas da visão carismática do líder.
Francisco Cândido Xavier, porém, representa uma espécie de antítese vitoriosa da figura carismática.
Não tem, do ponto de vista externo ou visual, nenhum elemento característico.
Até ao contrário.
Pessoalmente, é o anticarisma.
Funciona como símbolo de negação de qualquer pompa ou formalidade, um retorno talvez à pureza primitiva dos movimentos religiosos.
E, no entanto, emerge da figura dele uma das mais poderosas forças de identificação da vida brasileira.
Ele é uma espécie de líder desvalido dos desvalidos, dos carentes, dos sofredores, dos não onipotentes, dos despretensiosos, dos modestos, dos dispostos a perder para ganhar.
Curiosamente, tal posição é conquistada naturalmente e sem qualquer traço político direto de tomada de posição ao lado dos fracos, num século em que a revolução social aparece como a tônica e como a grande aglutinadora dos movimentos humanos, inclusive os religiosos.
Sem qualquer formulação política, sem qualquer mensagem diretamente relacionada com a exploração do homem, sem qualquer revolta direta e institucionalizada contra a miséria ou a injustiça, Francisco Cândido Xavier emerge com a força do perdão, da tolerância, da fraternidade real, da fraqueza forte da fé, da humildade e do despojamento erigidos como regra de vida, como trabalho efetivo da caridade; da não violência em qualquer de suas manifestações, mesmo as disfarçadas em poder, glória, secretismo, hermetismo, iniciação, poder temporal ou promessa de Vida Eterna.
A figura de comunicação de Francisco Cândido Xavier emerge, portanto, de uma relação profunda e misteriosa com um certo modo de sentir do homem brasileiro, relação esta ainda insuficientemente estudada ou conhecida até mesmo pelos que a vivem, comandam ou exercem.
Até mesmo para ele, Francisco, deve haver muita coisa envolta em mistério, um mistério que os seguidores dele tentam definir e enchem-se de explicações científicas, religiosas, ou religiosizantes, psicológicas, parapsicológicas ou parapsicologizantes.
Para tal contribui, além do aspecto misterioso da psicografia e da relação com os que morreram, a igualmente misteriosa aura de paz e pacificação que domina os que com ele se relacionam pessoalmente ou via meios de comunicação, na relação cuidada e cautelosa, equilibrada e pouco frequente por ele mantida com a Televisão, na qual aparece muito pouco, uma vez por ano no máximo e sempre para grandes públicos.
Além da aura de paz e pacificação que parte dele, há um outro elemento poderoso a explicar o fascínio e a durabilidade da impressionante figura de comunicação de Francisco Cândido Xavier: a grande seriedade pessoal do médium, a dedicação integral de sua vida aos que sofrem e o desinteresse material absoluto.
A canalização de todo o dinheiro levantado em direitos autorais para as variadíssimas atividades assistenciais espíritas dão a Chico Xavier uma autoridade moral — tanto maior porque não reivindicada por ele — que o coloca entre os grandes líderes religiosos do nosso tempo.
Quem se aproximar da atividade real de assistência material e espiritual da comunidade espiritualista brasileira, verificará que ela é íntegra e heroica, tal e qual o que há e sempre houve de melhor em assistência de religiões como a Católica e a Protestante (entre nós), prodígios de dedicação, silêncio e humildade que justificam as vidas dos que dela participam.
Síntese final:
A integridade pessoal;
a íntima relação entre a pregação e a própria vida;
a honestidade de seus seguidores;
a ausência completa de significantes externos; o contato com o mistério;
a ausência de qualquer forma de violência em sua figura e pregação;
a nenhuma subordinação a hierarquias aprisionantes;
a discrição pessoal;
a nenhuma procura de poder político, temporal ou econômico para o desempenho da própria missão;
as forças originais de organização interna do seu movimento, sem personalismos ou autoritarismos tudo isso gera uma figura de comunicação de alta força, mistério, empatia e grandeza moral, principalmente se considerarmos que enfrentou e ultrapassou tempos diferentes do atual (no qual o ecumenismo felizmente impôs-se).
Antes, manifestações como as dele eram removidas como bruxaria ou perigosas, ou bárbaras ou alucinantes quaisquer manifestações místico-religiosas diferentes ou discrepantes da religião da classe dominante.
(“O Globo”, 26-05-1980 — Transcrito do Jornal “Lavoura e Comércio” de Uberaba, Minas, do dia 4 de junho de 1980.)