I
Kardec, ante a visão, orou a Deus
suplicando-lhe que enviasse ao mundo,
após o seu trespasse, alguns hebreus
do tempo de Jesus: Pedro, Mateus…
Ou se possível o valente Paulo
que rompera com tudo e até com Saulo.
Sofria, em febre, o grande fundador,
ao ver na Terra os seguidores seus,
reunidos como antigos fariseus
para um festim de trágico esplendor.
Kardec olhou o céu em busca de Jesus.
Por toda parte a treva. O céu não tinha luz.
— Ó Deus clemente, ó Deus de luz e amor,
porque me abandonais na hora da agonia?
Mas ao forte clamor a noite respondia
com gritos de urubus nos abismos do horror.
A escuridão do céu, tenebroso sudário,
lembrava o instante atroz em que o último grito
de Jesus abalou a terra e, do infinito,
a treva despenhou-se envolvendo o Calvário.
Era a hora final do drama da paixão,
em que se consumava a trama da traição.
II
Eis o quadro de horror que Kardec antevia,
o coração opresso, a mente em agonia:
Em torno a vasta mesa, em sala iluminada,
eram quarenta, ao todo, os rígidos perfis,
cada qual mais feroz, na posição de juiz,
olhar duro, cruel, e consciência togada.
Julgariam Kardec, e na ausência do réu,
por ele respondia a Codificação.
A sentença já pronta, isenta de paixão,
era impassível, fria e escura como o céu.
Mas de repente a mesa encheu-se de talheres
Passara o julgamento. O tribunal, agora
dispunha-se a ceiar. Era avançada a hora,
e a sala se enchia de gentis mulheres.
O tribunal virava em amplo restaurante.
Os juízes comensais sorriam satisfeitos.
Garçonetes, garçons, graçolas e trejeitos,
uma ceia de arromba, alegria esfusiante.
Mas Kardec enxergava, atrás de cada juiz,
a carranca feroz de um regente do Umbral,
esquálido, a esperar o momento fatal
em que se serviria a vítima infeliz.
Sobre a mesa, a final, foi posta a refeição:
esquartejada e frita — a Codificação.
III
A algazarra estrondou. Alegres comensais
batiam os pés no chão, os talheres nos pratos,
contando à vizinhança boquiaberta os fatos
da caçada infernal, em termos especiais.
— Uma ave bem nutrida, a Codificação,
(explicava solene, um elegante juiz)
mas já velha, cansada, ave menos feliz,
embora conservasse um porte de faisão.
Foi criada em jardins da encantadora França,
tratada por Kardec a rações de verdade,
ensinada a cantar com muita suavidade
em trinos de amor puro e notas de esperança.
Mas Kardec lhe deu (também já estava velho)
talvez por caduquice, uns grãos de falsidade
que espertalhões judeus meteram no Evangelho.
Forçoso era imolá-la a bem da santidade
do nosso bom Jesus, cujo verbo divino
jamais se maculara em palavrão mofino
e nunca tolerara expressões de maldade.
Depois, como sabeis, havia uma sentença
unânime e viril do nosso tribunal
que mandava expungir os resíduos do mal
desse corpo da mais encantadora crença.
Um só tiro bastou, em pleno coração,
para que ela tombasse inteira aos nossos pés.
No sangue que jorrou, a ira de Moisés
foi lançada num jato e coagulou no chão.
Que coágulos, meu Deus! Brilhava o sangue puro
como o sangue de Abel traído por Caim!
Seus olhos de condor lançavam sobre mim
anátema e perdão em nome do futuro.
Pousou sobre ela um torvo, horrendo escaravelho.
Crocitou na distância um como moribundo.
Senti-me um filisteu a estrangular o mundo.
O coração da ave era o próprio Evangelho!
Foi assim que a cacei por ordem da Justiça.
E ao disso me lembrar peguei-a pelos pés,
aliviei a consciência evocando Moisés
e rápido voltei à cotidiana liça.
Às vezes a consciência é incômodo troféu
que vira tribunal e nos converte em réu.
IV
A Codificação esquartejada e frita
exalava esse odor que ao estômago excita.
Velhos cardeais de outrora e bispos reencarnados,
trazendo inda por dentro as vestes purpuradas
mantinham cautamente as mãos entrecruzadas
à espreita do manjar, os olhos espichados.
— Este é um raro petisco, um albatroz glorioso!
(exclamava um bispinho esquálido e faminto)
Com dois copos ou três de um belo vinho tinto
dá-nos o que nos falta, o êxtase do gozo!
Um fradeco rotundo, envolto em seu burel,
que de bispo fingia, iludindo os videntes,
agitava-se inquieto e dizia entre dentes:
— Ave do Paraíso, um presente do céu!
— Passe-me o coração, esse é o melhor pedaço!
(gritava antigo frei de convento da Espanha
que perdera o burel mas não perdera a manha)
Por causa dele fui internado no Espaço!
Velho cardeal francês, agora doutorado,
reclamava a cabeça: “É uma delícia o miolo!
É nele que se pensa e nele se arma o rolo
que conduz ao garrote o padre rebelado!”
— “O miolo — continuava — essa invenção divina,
é fonte de heresia e ninho de pecados,
por isso tem sabor de leitos setinados,
de promessas de amor em boca fescenina.”
— Que horror! logo exclamou ex-bispo moralista —
Já de outra encarnação detesto a leviandade,
mas agora vivendo a era da verdade
permito-me provar algum sabor de artista.
— Cuidado! — advertiu um cardeal barrigudo —
é o que sai pela boca o que nos contamina!
Esta ave morreu, embora peregrina.
por mesclar palavrões no seu trinado agudo.
— Palavrões, palavrões! — disse um bispinho irado —
É hoje o que se ouve até nos Evangelhos!
Palavrões juvenis, palavrões entre os velhos!
E há quem chame Kardec — o bom senso encarnado!
Tínhamos de expungir de Kardec esse horror!
Inimigos, odiar e até Espíritos maus!
Retirar do Evangelho esses feios calhaus
é dever de cristãos, é tarefa de amor!
V
A Codificação sumia sobre a mesa.
Primeiro o Evangelho, o próprio coração
da obra de Kardec, o livro-religião
que nos religa a Deus com ternura e firmeza.
Seu texto é suave e doce, uma carne macia.
mas as fibras de luz que estruturam-lhe a forma
são duras como o aço e nelas se conforma
a verdade integral em firmeza e energia.
Depois o livro-base, essa pedra angular
que o Mundo Espiritual implantou no planeta,
o livro da razão, mais que o Sol, um Cometa
que arrasta em sua cauda a terra, o céu e o mar.
E depois o tratado da mediunidade,
livro-guia da nova comunicação,
nascido da pesquisa e da revelação,
o Código LM em que brota a Verdade.
E após, num desafio aos segredos do Eterno,
rasgando véu da sombra e os mitos da mentira,
A Gênese que espanca as ameaças da ira
e esse golpe de luz: o livro O Céu e o Inferno.
Duas asas de fogo abertas no infinito,
rompendo a escuridão do Cosmos e da Morte,
numa visão de fé da nossa própria sorte
que afugenta da mente as causas de conflito.
Era essa a ave divina, a encarnação da luz,
que as trevas devoravam em nome de Jesus.
VI
Feita a consumação, o Sínodo dos Bispos
dissolveu-se ali mesmo e somente os Cardeais,
que haviam preparado uns pitéus divinais,
ficaram no recinto a lambiscar petiscos.
— Libertos da canalha, agora vamos nós
participar em paz da ceia dos cardeais,
saboreando a final os pratos especiais!
(Isso disse o mais velho adocicando a voz).
— O primeiro pitéu, expôs o maioral!,
é que o mal se acabou entre os filhos de Deus.
Alguns são menos bons, pobrezinhos, plebeus,
e assim vão residir na Favela do Umbral.
Isso é de grande alcance e os bispos não manjaram.
Já livres de suspeita, agiremos sem peias,
como aranhas fiando em paz as nossas teias
em que as moscas humanas sempre se enredaram.
— Nada como a experiência aprimora a malícia!
(disse esfregando as mãos o cardeal menos velho)
Jesus deu bom exemplo através do Evangelho
e os devemos seguir na ação cardinalícia.
— A ação cardinalícia! É exato, meu amigo!
(exclamou Dom Miguel, o ex-cardeal de Espanha)
Que seria de nós, não fosse a nossa manha,
com essa ave a voar e nos pôr em perigo!
Esses bispos que nunca alcançarão o céu
(observou piscando o velhote Chardon)
nunca vão saborear um prato sem garçom
servido por um anjo em forma de pitéu!
Que alegria no olhar! Saíram tão contentes!
Pensam que a ave-mãe só foi purificada.
Mataram-na sem dó. Comeram-na à fartada.
E ainda agora estão a palitar os dentes.
— São crianças, notou o cardeal português.
Deviam retornar, ainda nesta existência
como bispos de novo e aumentar a experiência.
Ainda vivem a sonhar com o “Era uma vez…”
— Outro belo pitéu é a linguagem fingida
(exclamou sorridente o cardeal de Paris)
que não diz sem dizer e nem dizendo diz.
Quanto têm de aprender esses bispos na vida!
— Quando moço eu também me enganava com tudo
(murmurou a cismar o cardeal italiano)
uma jovem fatal, um sonho, o Vaticano…
Depois envelheci, prefiro ficar mudo.
— Esses bispos, porém não são jovens assim.
Alguns deles já são bem passados em anos.
E deviam saber que sempre, em nossos planos,
há lugar para o não e lugar para o sim.
— Dom Fabrizzio! gritou o cardeal mais antigo.
É hora de calar! É hora da mudez!
Não queira revelar os truques do xadrez.
Não há maus. Somos bons. Mas há sempre um perigo!
Mas apesar do aviso o toque da saudade
em todos despertara a sensibilidade.
VII
Cada bispo ao sair levou a tiracolo
o verdugo umbralino a que estava amarrado.
Os cardeais, ao revés, traziam escravizado
um verdugo servil rastejando no solo.
À evocação fatal da antiga encarnação,
os olhos dos cardeais lacrimejavam tanto
que os verdugos, em pé, se entregaram ao pranto…
Gritavam com voz grossa em tom de cantochão.
Envolvidos no sonho, errando na distância,
os cardeais não ouviam os lamentos do Umbral.
Continuaram a cismar lembrando cada qual
a mocidade heróica e alegrias da infância.
— Ah, disse o mais antigo, de alva cabeleira,
que saudade da Espanha, essa terra cristã,
onde coisas como esta ou encrencas do Islã,
resolvíamos sempre ateando uma fogueira!
Nada nos impedia agirmos à vontade.
Nosso amor pelo Cristo impunha-se viril
no fogo salvador ou no garrote vil.
Vivíamos na lei da pura Cristandade!
Ó, heroica Madri de juízes implacáveis!
Barcelona queimou a Codificação.
A andaluza Sevilha erguia o seu brasão
em noitadas de ferro e sangue memoráveis!
Silenciou o cardeal, os olhos marejados.
e um suspiro escapou dos seus lábios magoados.
Dom Fabrizzio exclamou: Que saudades da Itália
que vigoroso amor o nosso por Jesus!
Foi Roma que inventou o suplício da cruz
para glorificá-lo em sudário e mortalha.
A bela catedral de São Pedro e São Paulo
foi sempre o meu refúgio em tempos que lá vão!
De um lado o velho Pedro e de outro o jovem Saulo
proclamam o poder sem par da conversão.
Quanto amei nessa terra em puríssimo ardor.
Vigilante que eu era em todos os processos
meti no calabouço alguns padres possessos
e outros mandei queimar. Mas tudo por amor!
Suspirou o cardeal e caiu no mutismo,
nostálgico, a lembrar o antigo Cristianismo.
O terceiro evocou, tristonho, a velha França
dos seus tempos de herói nas ruas de Paris,
quando moço arriscara a vida por um triz
na mais gloriosa noite, ordenando a matança.
Oh, noite imemorial de São Bartolomeu!
Uma jovem que amei, donzela suave e pura,
fi-la tombar à espada numa esquina escura.
Entreguei-a a Jesus. Era infiel: morreu.
Mandei rezar por ela uma missa às ocultas,
Comprei flores e enviei à sua sepultura.
Era uma encantadora e doce criatura.
Não podia ficar, como outras, insepulta.
Soluçou o cardeal. Tinha os olhos em brasa.
Levou a mão ao peito: Essa emoção me arrasa!
E temia morrer ao voltar para casa.
O quarto estremeceu: Ah, como é diferente!
Sim, como é diferente o amor em Portugal!
Nosso amor por Jesus, em Lisboa ou no Porto,
não era assim violento, assim fero e brutal.
Dávamos ao herege uma cela somente,
em que ele, arrependido, acabaria morto
pela própria exaustão, de modo natural.
Como era bom, assim poupá-lo das torturas,
deixá-lo sossegado a procurar o Cristo
no cilício comum das próprias amarguras.
Caía geralmente em transe nunca visto,
logo se inteiriçava e os anjos o atendiam.
Morria suavemente e buscava as alturas.
Nas regiões infernais fui sempre socorrido
por almas divinais luminosas e puras,
que me diziam sempre haver-se redimido
no silêncio ideal das celas sem torturas.
Por isso aprovo agora expungir-se a maldade
das sublimes lições do Meigo Nazareno.
Não vivemos no inferno, embora os palavrões,
os crimes a matança e o horror dos assaltos
sejam hoje comuns neste mundo terreno.
Talvez chamando bons a todos os vilões,
tirando ao dicionário os termos menos altos,
consigamos fazer da Terra um paraíso,
um mundo menos mau, com gente de bom siso.
Embora, na verdade, eu creia que isso cabe
ao sublime Jesus no Dia de Juízo.
Mas Deus é lá quem sabe!
Mergulhou-se o cardeal, perplexo, em mudez.
A verdade brilhava em límpida nudez.
VIII
Kardec, tristemente, enviou a Deus
uma sentida prece de perdão.
Compreendia que o homem, seu irmão,
não superara a lei dos fariseus.
Heranças milenares o impediam
de compreender a luz do Espiritismo.
O coração do homem é um abismo
em que as sombras do mal se debatiam.
Lembrou-se da batalha sem quartel
que enfrentara em Paris para legar
à humanidade um código sem par
que ela transforma em Torre de Babel.
Quanto sofrera parecia inútil
ante a visão que ali o assombrara.
A Codificação se revelara
grave demais para esse homem fútil.
Que mais restava? Só pedir perdão
para si mesmo e para todos quantos
julgando-se mais santos do que os santos
destruíam-lhe a Codificação.
Kardec olhou o céu em busca de Jesus.
Por toda parte a treva. O céu não tinha luz.
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