O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

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Nos domínios da mediunidade — André Luiz


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Psicofonia sonambúlica

(Sumário)

1. Sob a guarda de venerando amigo, que mais se nos afigurava um nume apostolar, pobre Espírito dementado varou o recinto.

2 Lembrava um fidalgo antigo, repentinamente arrancado ao subsolo, porque os fluidos que o revestiam era verdadeira massa escura e viscosa, cobrindo-lhe a roupagem e despedindo nauseabundas emanações.

3 Nenhuma das entidades sofredoras que se acotovelavam à frente exibia tão horrenda fácies.

4 Aqui e ali, nos variados semblantes a se comprimirem no lugar reservado a irmãos menos felizes, as máscaras de sofrimento eram suavizadas por sinais inequívocos de arrependimento, fé, humildade, esperança…

5 Mas naquele rosto patibular, parecendo emergir dum lençol de lama, aliavam-se a frieza e a malignidade, a astúcia e o endurecimento.

6 Ante a expressão com que surgia de inopino, os próprios Espíritos perturbados recuaram receosos.

7 Na destra, o estranho recém-chegado trazia um azorrague que tentava estalar, ao mesmo tempo que proferia estrepitosas exclamações.

8 — Quem me faz chegar até aqui, contra a minha vontade? — Bramia, semi-afônico. — Covardes! Por que me segregarem assim? Onde estão os abutres que me devoraram os olhos? Infames! Pagar-me-ão caro os ultrajes sofridos!…

10 E evidenciando o extremo desequilíbrio mental de que se fazia portador, continuava em rude tom de voz:

— Quem disse que a malfadada revolução dos franceses terá reflexos no Brasil? A loucura de um povo não pode alastrar-se a toda a Terra… Os privilégios dos nobres são invioláveis! Vêm dos reis, que são indiscutivelmente os escolhidos de Deus! Defenderemos nossas prerrogativas, exterminando a propaganda dos rebeldes e regicidas! Venderei meus escravos alfabetizados, nada de panfletos e comentários da rebelião. Como produzir sem o chicote no lombo? Cativos são cativos, senhores são senhores. E todos os fujões e criminosos conhecerão o peso dos meus braços… Matarei sem piedade. Cinco troncos de suplício! Cinco troncos! Eis aquilo de que necessito para refazer a nossa tranquilidade.

11 — Foi um fazendeiro desumano, — esclareceu nosso orientador amigo. — Desencarnou nos últimos dias do século XVIII, mas ainda conserva a mente estagnada na concha do próprio egoísmo. Nada percebe, por enquanto, senão os quadros interiores, criados por ele mesmo, constando de escravos, dinheiro e lucros da antiga propriedade rural em que enterrou o pensamento, convertendo-se hoje em vampiro inconsciente de almas reencarnadas que lhe foram queridas no Brasil colonial. 12 Com todo o respeito que devemos à fraternidade, podemos dizer que ele nada mais fora que desapiedado algoz dos infortunados cativos que lhe caíam sob o guante de ferro. Detentor de vastíssimo latifúndio, possuía consigo larga legião de servidores que lhe conheceram, de perto, a tirania e a perversidade.

13 Valendo-me da pausa espontânea, fitei o rosto do triste recém-chegado, com mais atenção, reconhecendo que os seus olhos, embora móveis quanto os de um felino, estavam vidrados, mortos…

14 Ia apontar para aquelas órbitas inexpressivas, quando o instrutor, adivinhando-me o impulso, acrescentou:

— Odiava os trabalhadores que lhe fugiam às garras e quando conseguia arrebatá-los ao quilombo, não somente os algemava aos troncos de martírio, mas queimava-lhes os olhos, reduzindo-os à cegueira, para escarmento das senzalas. Alguns dos raros quilombolas que resistiam à morte eram sentenciados, depois de cegos, às mandíbulas de cães bravios, de cuja sanha não conseguiam escapar. Com semelhante sistema de repressão, instalou o terror em derredor dos seus passos, granjeando, então, fama e riqueza.  15 Contudo, veio a jornada inevitável do túmulo e, nessa fase nova, não encontrou senão desafetos, a se levantarem, junto dele, na feição de temíveis perseguidores. Muitas vítimas de alma branda lhe haviam desculpado as ofensas, mas outras não conseguiram a força para o perdão espontâneo e converteram-se em vingadores do passado a lhe cumularem o Espírito de aflitivo pavor.  16 Emaranhado nas teias da usura e fazendo do ouro o único poder em que acreditava, nem de leve se sentiu transportado de um modo de vida para outro, através da morte. Crê-se num cárcere de trevas, atormentado pelos escravos, prisioneiro das próprias vítimas. Vive, assim, entre a desesperação e o remorso. Martirizado pelas reminiscências das flagelações que decretava e hipnotizado pelos algozes de agora, dos quais no pretérito foi verdugo, vê-se reduzido a extrema cegueira, por se lhe desequilibrarem no corpo espiritual as faculdades da visão.


2. Enquanto se nos alongava o entendimento, o infeliz foi situado junto de Dona Celina.

A medida impressionou-me desfavoravelmente.

2 Logo Dona Celina, o melhor instrumento da casa, é quem deveria acolher o indesejável comunicante?!

Reparei-lhe a luminosa auréola, contrastando com a vestimenta pestilencial do forasteiro, e deixei-me avassalar por incoercível temor.

Semelhante providência não seria o mesmo que entregar uma harpa delicada às patas de uma fera?

3 Áulus, porém, deu-se pressa em explicar-nos:

— Acalmem-se. O amigo dementado penetrou o templo com a supervisão e o consentimento dos mentores da casa. 4 Quanto aos fluidos de natureza deletéria, não precisamos temê-los. Recuam instintivamente ante a luz espiritual que os fustiga ou desintegra.  5 É por isso que cada médium possui ambiente próprio e cada assembleia se caracteriza por uma corrente magnética particular de preservação e defesa. 6 Nuvens infecciosas da Terra são diariamente extintas ou combatidas pelas irradiações solares, e formações fluídicas inquietantes, a todo momento são aniquiladas ou varridas do Planeta pelas energias superiores do Espírito. 7 Os raios luminosos da mente orientada para o bem incidem sobre as construções do mal, à feição de descargas elétricas. 8 E, compreendendo-se que mais ajuda aquele que mais pode, nossa irmã Celina é a companheira ideal para o auxílio desta hora.


3. Indicando-a, exclamou:

— Observemos.

2 A médium desvencilhou-se do corpo físico, como alguém que se entregava a sono profundo, e conduziu consigo a aura brilhante de que se coroava.

3 Clementino não teve necessidade de socorrê-la. Parecia afeita àquele gênero de tarefa. Ainda assim, o condutor do grupo amparou-a, solícito.

4 A nobre senhora fitou o desesperado visitante com manifesta simpatia e abriu-lhe os braços, auxiliando-o a senhorear o veículo físico, então em sombra.

5 Qual se fora atraído por vigoroso ímã, o sofredor arrojou-se sobre a organização física da médium, colando-se a ela, instintivamente.

6 Auxiliado pelo guardião que o trazia, sentou-se com dificuldade, afigurando-se-me intensivamente ligado ao cérebro mediúnico.

7 Se Eugênia revelara-se benemérita enfermeira, Dona Celina surgia aos nossos olhos por abnegada mãezinha, tal a devoção afetiva para com o hóspede infortunado.

8 Dela partiam fios brilhantes a envolvê-lo inteiramente e o recém-chegado, em vista disso, não obstante senhor de si, demonstrava-se criteriosamente controlado.

9 Assemelhava-se a um peixe em furiosa reação, entre os estreitos limites de um recipiente que, em vão, procurava dilacerar.

Projetava de si estiletes de treva, que se fundiam na luz com que Celina-alma o rodeava, dedicada.

Tentava gritar impropérios, mas debalde.

10 A médium era um instrumento, passiva no exterior, entretanto, nas profundezas do ser, mostrava as qualidades morais positivas que lhe eram conquista inalienável, impedindo aquele irmão de qualquer manifestação menos digna.

11 — Eu sou José Maria… — Clamava o visitante, irritadíssimo, enfileirando outros nomes com o evidente intuito de lançar importância sobre a sua origem.

12 Amontoava reclamações, deitava reprimendas e revoltava-se exasperado, contudo, percebi que não usava palavras semelhantes às que proferira junto de nós. Achava-se como que manietado, vencido, embora prosseguisse rude e áspero.


4. Aparecia tão completamente implantado na organização fisiológica da medianeira, tão espontâneo e tão natural, que não sopitei as perguntas a me escorrerem céleres do pensamento.

2 A mediunidade falante em Celina era diversa? Eugênia e ela se haviam desligado da veste carnal, durante o trabalho… Por que a primeira se mantivera preocupada, qual enfermeira inquieta, enquanto que a segunda parecia devotada tutora do irmão dementado, seguindo-o com cuidados de mãe? Por que numa delas a expectação atormentada e na outra a serena confiança?

3 Desculpando-nos a condição de aprendizes, Áulus passou a esclarecer-nos, enquanto Clementino e Raul Silva amparavam o comunicante, através de orações e frases renovadoras de incentivo ao bem.

4 — Celina, — explicou, bondoso, — é sonâmbula perfeita. A psicofonia, em seu caso, se processa sem necessidade de ligação da corrente nervosa do cérebro mediúnico à mente do hóspede que o ocupa. A espontaneidade dela é tamanha na cessão de seus recursos às entidades necessitadas de socorro e carinho, que não tem qualquer dificuldade para desligar-se de maneira automática do campo sensório, perdendo provisoriamente o contato com os centros motores da vida cerebral. 5 Sua posição medianímica é de extrema passividade. Por isso mesmo, revela-se o comunicante mais seguro de si, na exteriorização da própria personalidade.  6 Isso, porém, não indica que a nossa irmã deva estar ausente ou irresponsável. Junto do corpo que lhe pertence, age na condição de mãe generosa, auxiliando o sofredor que por ela se exprime qual se fora frágil protegido de sua bondade. 7 Atraiu-o a si, exercendo um sacrifício voluntário, que lhe é doce ao coração fraterno, e José Maria, desvairado e desditoso, imensamente inferior a ela, não lhe pôde resistir. 8 Permanece, assim, agressivo tanto quanto é, mas vê-se controlado em suas menores expressões, porque a mente superior subordina as que se lhe situam à retaguarda, nos domínios do Espírito. 9 É por essa razão que o hóspede experimenta com rigor o domínio afetuoso da missionária que lhe dispensa amparo assistencial. Impelido a obedecer-lhe, recebe-lhe as energias mentais constringentes que o obrigam a sustentar-se em respeitosa atitude, não obstante revoltado como se encontra.

10 Diante da pausa que se fazia natural, reparamos que Silva conseguia franco progresso na doutrinação.

O ex-tirano rural começava a assimilar algumas réstias de luz.

11 Hilário, contudo, provocou a continuidade da lição, perguntando:

— Embora seja preciosa auxiliar, como vemos, não se lembrará Dona Celina das palavras que o visitante pronuncia por seu intermédio?

12 — Se quiser, poderá recordá-las com esforço, mas na situação em que se reconhece, não vê qualquer vantagem na retenção dos apontamentos que ouve.


5. — Indubitavelmente, — ponderou meu colega, — observamos singular diferença entre as duas médiuns que caíram em transe… 2 Tenho a ideia de que, na psicofonia consciente, Dona Eugênia exercia um controle mais direto sobre o hóspede que lhe utilizava os recursos, ao passo que Dona Celina, embora vigiando o companheiro que se comunica, deixa-o mais à vontade, mais livre… 3 Caso não fosse Dona Celina a trabalhadora hábil, capaz de intervir a tempo, em qualquer circunstância menos agradável, não seria de preferir as faculdades de Dona Eugênia?

— Sim, Hilário, você tem razão. 4 O sonambulismo puro, quando em mãos desavisadas, pode produzir belos fenômenos, mas é menos útil na construção espiritual do bem. 5 A psicofonia inconsciente, n naqueles que não possuem méritos morais suficientes à própria defesa, pode levar à possessão, sempre nociva, e que, por isso, apenas se evidencia integral nos obsessos que se renderam às forças vampirizantes.


6. Hilário refletiu um momento e tornou a considerar:

2 — Aqui, vemos a médium fora do vaso físico, dominando mentalmente a entidade que lhe é inferior… Mas… e se fosse o contrário? Se tivéssemos aqui uma entidade intelectualmente superior senhoreando mentalmente a médium?

3 — Nesse caso, — redarguiu o paciente interlocutor, — Celina seria naturalmente controlada. Se o comunicante fosse, nessa hipótese, uma inteligência degenerada e perversa, a fiscalização correria por conta dos mentores da casa e, em se tratando de um mensageiro com elevado patrimônio de conhecimento e virtude, a médium apassivar-se-ia com satisfação, porquanto lhe aproveitaria as vantagens da presença, tal como o rio se beneficia com as chuvas que caem do alto.

4 O instrutor ia continuar, mas Clementino solicitou-lhe o concurso para a remoção de José Maria que, algo renovado principiava a aceitar o serviço da prece, chegando mesmo a atingir a felicidade de chorar.

5 Nosso orientador passou a contribuir na assistência ao visitante, que foi novamente entregue ao amigo paternal que o trazia, a fim de internar-se em organização socorrista distante.


André Luiz



[1] [Psicofonia inconsciente — O mesmo que psicofonia sonambúlica, subentendendo-se a permanente consciência espiritual do medianeiro desdobrado de seu veículo somático.]


Texto extraído da 1ª edição desse livro.

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