1 Meu caro Dirceu:
Escrevo-lhe esta carta para dizer que não morri.
2 Jamais supus me fosse possível endereçar notícias a você, depois de afastar-me do corpo terrestre. Algumas vezes, vira o enterro de crianças e pessoas grandes, da janela grande de nosso quarto, quando observávamos, em silêncio, o carro triste, enfeitado de flores, conduzindo alguém que nunca voltava…
3 Recorda-se da morte de Osório, o nosso colega do grupo escolar? Nunca me esqueci do quadro enternecedor. Dona Margarida, a mãezinha em lágrimas, conduziu-nos a vê-lo. Osório, brincalhão e bondoso, estava mudo e gelado. Parecia dormir, imóvel sob um montão de rosas e saudades.
4 Quando ouvi dizer que ele jamais voltaria, meu coração bateu forte e empalideci. Nosso velho Tomás, o porteiro da escola que assistia à cena, percebeu o que se passava e afastou-me depressa.
5 Nesse dia, não comi e passei a noite assustado. Atormentei o papai com toda a espécie de perguntas sobre a morte e arrepiava-me todo, recebendo-lhe as respostas. Por fim, ele reconheceu a minha inquietação e aconselhou-me a evitar o assunto.
6 Muito tempo passou, mas a experiência ficou guardada no meu coração. Foi por isso, talvez, que fiquei, durante o período de minha enfermidade, impaciente e aflito.
7 E, para falar francamente a você, tive medo, muito medo, ao perceber que tudo ia acabar-se, pois sempre ouvira dizer que a morte do corpo é o fim de todas as coisas. Agora, porém, posso afirmar que isso não é verdade.
8 Lembra-se do último dia que passei em casa? Mamãe chorava tanto!… Papai, muito sério, ia de um lado para outro, na sala contígua ao nosso quarto.
9 O Doutor Martinho, nosso bom amigo, segurava-me as mãos, e você, Dirceu, sentado na poltrona de vovó, olhava-me ansioso e entristecido.
10 Quis falar, mas não pude. Estava cansado sem saber o motivo. Faltava-me o ar, como se eu fosse um peixe fora d’água. Esforçava-me para dizer alguma coisa, pelo menos para tranquilizar a mamãe; entretanto, havia um peso enorme, oprimindo-me a garganta e a boca.
11 Foi então que parei meu olhar em seus olhos e chorei muito, com receio de ficar mudo e gelado como o Osório, e partir para nunca mais regressar.
12 Não consegui mover os lábios, mas, em pensamento, rezei as orações que mamãe me ensinara. Lembrei-me de Deus e esperei o sono com indizível angústia…
13 Queria dormir, dormir muito; no entanto, era tão grande o meu temor de dormir sem acordar, que, se eu pudesse, teria gritado intensamente, com toda a força de meus pulmões, pedindo ao Doutor Martinho que não me deixasse morrer.
Carlos
Neio Lúcio