Bem, voltemos a Coimbra.
Inês já fora sepultada no Convento de Santa Clara, ( † ) Ana, a prestimosa aia, cuidava das crianças, e a vida voltava à normalidade na bucólica cidade sacudida pela inusitada violência: a morte da jovem, arrancada covardemente, antes do amanhecer, do leito em que repousava e aos filhos que amava.
E os outros personagens diretamente envolvidos?
Estamos em março de 1355, dois meses após a morte de Inês.
D. Afonso ( † ) não conseguia assimilar a tragédia que determinara manu militari contra a nora desprotegida.
Já velho, cabelos enevoados, passando dos 60 anos, extenuado e sentindo o fim aproximar-se, não estava à vontade. Meditava…
O remorso, caçador de feras, na sábia definição de Guerra Junqueiro, tomava corpo em sua consciência.
Pedro, ( † ) na pequena e informal corte improvisada em Coimbra, transido de ódio, aparentava-se, contudo, mais conformado, mais sereno.
Recebia os amigos mais próximos, em especial o cunhado Álvaro, ( † ) Sempre os mesmos que não abandonaram o casal desde sua chegada a Coimbra, em 1354, alguns anos após Inês ( † ) retornar a Portugal do exílio no Castelo dos Albuquerques, em Castela, na região conhecida por Estremadura espanhola.
Estabeleceu-se um vácuo de relacionamento entre o rei e o filho, ensejando intrigas e conchavos de bastidor, que muito contribuíram para a explosão da violência implacável, urdida nas sombras.
Como já dissemos, Pedro decidiu usar o direito de revindita, apoiando sua consciência no Direito Consuetudinário Europeu para vingar a morte da companheira.
Associaram-se-lhe os irmãos Castro e outros nobres portugueses, ansiosos de poder. Consideravam estes, em suas meditações oportunistas, que o reinado de Afonso IV caminhava para o fim, devido à idade do soberano, que realmente veio a falecer pouco depois, no início de 1357, aos 66 anos.
Pior ainda, hordas de malfeitores — contumazes aproveitadores do saque e da chacina, interessados no seu espólio — adensavam progressivamente as fileiras que se dirigiam ao Porto, a partir de Coimbra.
Nesse percurso, bandos de irresponsáveis, belicosos, muitos ainda ligados à tradição bárbara dos visigodos, incorporavam-se à triste caravana.
De modo particular, foram saqueadas e destruídas as terras dos três conselheiros de Afonso IV, n coniventes com a execução de Inês.
Até o Porto, a população simples das regiões percorridas foi esmagada, submetida a padecimentos desnecessários, não por desejo do infante revoltado, e sim pela impossibilidade de controlar-se a turba que se aproveitara da decisão infeliz de Pedro.
E o lado espiritual trabalhava…
Jesus permitiu a Isabel de Aragão ( † ) que diretamente interviesse, tranquilizando Inês, em princípio solidária às ideias de vingança de Pedro. Paulatinamente, sempre mais ligada à Rainha Santa, a jovem procurou envolver o coração do companheiro, retirando-o, assim, da violenta revolta e atenuando-lhe o ódio.
Isabel agiu com tanta inspiração que Pedro chegava ao Porto, em junho de 1355, já bastante modificado, passados quatro meses da peregrinação destruidora. Estava diferente…
Por vezes, nos raros momentos de repouso, quando descansava da faina a que se dedicava, vinha-lhe à mente a lembrança da avó, dos saudosos diálogos em sua juventude, quando Isabel o aconselhava muito sobre as responsabilidades de reinar.
Falava-lhe a Rainha Santa da necessidade de amalgamar à administração real o amor a Deus e de sua consequência mais direta: o respeito à população que serviria quando D. Afonso deixasse a Terra.
Certa noite, já muito próximo do Porto, ( † ) protegido pelas barricadas levantadas precavidamente por Álvaro Pereira, ( † ) o poderoso prior dos hospitalários (ordem religiosa com vocação militar), a presença de Isabel junto ao neto se fez mais marcante.
Isolara-se dos amigos, e, naqueles momentos de solidão, um leve torpor o envolveu. A lembrança da avó tão querida o fez adormecer.
Sentiu-se transportado a um local desconhecido — talvez algum pouso celestial, de sutil beleza, onde a paisagem se revestia de colorido suave — e reviu a avó, que o abraçou demoradamente.
Despertou convencido de que Isabel lhe dissera, entre outras palavras de alento e esperança:
— Pedro, meu neto, reconcilia-te com teu pai. Ele sofre tanto! Se pudesse devolver-te-ia Inês e a paz que perdeste…
Emocionado pela sensação da presença da avó a seu lado, Pedro lembrou-se dos momentos ainda tranquilos que vivera com Inês.
E, no Plano Espiritual, ao lado de Isabel, vendo D. Pedro mais equilibrado, Inês recordou-se, palavra por palavra, de longa conversa que tivera com o infante naqueles saudosos instantes de muita expectativa, quando a paixão entre ambos começava a tornar-se realidade, malgrado sua posição de dama de companhia de D. Constança. ( † )
Era um fim de tarde, e o sol se acomodava no poente. Pedro e Inês retornavam a casa um pouco adiante dos outros participantes do pequeno séquito.
Assim se recorda Inês daquele diálogo:
1 A marcha de volta a palácio se fez vagarosa. D. Pedro queria ouvir Inês, com respeito às ideias da avó Rainha Santa, para as quais não achava receptividade em outros entes queridos. E o poente parecia demorado, ensejando mais longo entendimento.
2 — Inês, disse ele, você admite que minha avó Isabel ouvisse as vozes dos santos ou as vozes de outro mundo?
— Admito. O próprio Cristo não falou com os apóstolos depois de ressuscitado?
3 — Mas você, — falou D. Pedro, quase timidamente — você mesma já ouviu alguma cousa da parte daqueles que já se foram?
— Não dos que já se foram, mas tenho tido ocorrências que me fazem pensar…
4 — Pode, falar disso?
— Muitas vezes, sonhei que o vi, muito antes de conhecê-lo, senhor! Sonhei que o encontrava e que o senhor me reconhecia.
5 Às vezes, no sonho, eu fugia de sua presença, receando incomodá-lo, pois o via casado, embora, em despertando, não tivesse qualquer ideia de seu nome e do local de sua existência…
6 Inês fez longa pausa, como quem não desejava exteriorizar tudo o que sentia, mas pareceu tomada de súbita deliberação e acentuou:
— Posso falar o resto, senhor Infante? — Claro, disse D. Pedro, curioso.
7 — Num dos sonhos últimos, antes de vir até Portugal, acompanhando a futura rainha, sua esposa, sonhei que eu não resistira… que me fizera sua mulher, mesmo sabendo que não estávamos agindo de acordo com as leis e com a Igreja… no sonho, eu me vi com os nossos filhos.
8 E Inês ruborizou-se, enquanto o Infante sorria complacente.
— Mas depois… depois… o sonho se transformou num pesadelo em que via homens me arrastando para o cepo… Ao ver-me de joelhos, ante o cutelo que se elevava para abater-se sobre mim, acordei num grito, em alta voz…
9 D. Pedro riu-se e falou, claro:
— No sonho a verdade está presente, mas no pesadelo a fantasia é indispensável. Se você, Inês, chegar a ter filhos, esses filhos serão meus, mas eu farei de você rainha, a meu lado, haja o que houver.
10 — Senhor Infante, Inês retrucou, sorrindo, não estaremos sonhando acordados?
— De modo nenhum. Minha avó D. Isabel plantou em meu coração, de tal modo, a ideia da justiça, que tudo penso raciocinando, antes de sentir quando falo. Minha ideia de lógica é uma espécie de medida em minha cabeça. Você não pertencerá a outro homem que não seja eu e, por isso, você será o que eu for.
11 — Senhor Infante, aduziu Inês, não sei o que se passa… Às vezes, temo o futuro…
— Nada tema, acrescentou o Infante, resoluto. Se os santos conversavam com minha avó e lhe diziam que devia preparar-me para executar a justiça, confesso a você, Inês, que ainda não me casei segundo a justiça.
12 Casaram-me as razões de Estado, não as razões do meu coração. Minha vida de homem é solitária a dissipar-se em questões que não me falam à vida íntima. Estou sempre na multidão, cada vez mais sozinho.
13 Meu relacionamento decorre de um dever, e o dever sem amor apenas agrava a solidão. Não acredita você que haja um casamento feito pelo coração?
14 Se o matrimônio envolve em si a doação de nosso próprio corpo, onde está a justiça se entregamos, por imposição de outros, a pessoas que não queremos aquilo que nós somos?
15 Se amo a você para fazê-la a esposa que eu quero, a futura rainha de Portugal será a Esposa do Estado, e você será a minha esposa mesmo, mãe de meus filhos, que nascerão livres das cadeias que sempre me prenderam o coração.
16 E se nasci para ser justo, chegará o momento em que farei de você uma rainha autêntica, porque novas leis surgirão para que você, com justiça, me compartilhe a existência.
17 Escutando-lhe as palavras que ardiam de sinceridade, Inês chorou, comovidamente, aparteando:
— Senhor Infante, a sua palavra está iluminada por ideais muito altos, que os nossos compatriotas, seja de Galiza ( † ) ou de Portugal, ( † ) estão muito longe de compreender…
— Serei justo, acentuou D. Pedro.
18 — Mas, quando o povo não compreende o que seja a justiça, os reis e príncipes justos passam a ser considerados ditadores ou tiranos… Se o Senhor Infante quiser me transformar em sua esposa, por força de lei que o povo não entenda, é bem possível que a segunda parte do meu sonho se faça verdade… O pesadelo deixará de ser pesadelo para converter-se em realidade…
19 D. Pedro sorriu e falou com graciosa ironia:
— Então, nesse caso, você morreria por minha causa…
— Por que não? Se devo morrer pela honra de seu nome, falou Inês, em tom profético, isso para mim não será morte, será simplesmente uma forma de demonstrar-lhe o amor com que o amo…
— Isso nunca — atalhou o príncipe, isso nunca sucederá.
20 E como se estivesse enxergando muito longe, num futuro que ele mesmo não saberia precisar, anotou com expressão de superioridade e de dor:
— Se isso porventura acontecesse algum dia, eu a faria soberana de Portugal, mesmo depois de morta e, se alguém se atrevesse a lavrar qualquer sentença contra sua vida, levaria minha justiça até a vingança…
21 Inês teve apenas tempo para dizer-lhe: — Pedro, amo a você cada vez mais… Os excursionistas estavam chegando de regresso ao paço.
22 Mas D. Pedro, sem explicar a si mesmo porque o sonho de Inês com a ideia da morte o impressionara, solicitou de D. Ana, a camarista, lhe preparasse um aposento particular para uma entrevista, a sós com Inês, daí a uma hora, e, decorrido esse tempo, avisada pela servidora amiga, Inês se dirigiu para o local indicado, algo intrigada.
23 O Infante compareceu transcorridos alguns minutos, trancou a porta, certificou-se de que ambos se encontravam desligados de todos e, tomando-a nos braços fortes, sussurou-lhe aos ouvidos:
24 — Inês, você é minha esposa, minha esposa para sempre. viva ou morta, feliz ou infeliz, bastarda ou fidalga legítima, doente ou sã, eu quero você para mim, para mim somente.
25 Você é minha alma… não me conte sonhos infelizes. Nunca, nunca mais. De qualquer forma, como você seja ou esteja, você é minha e será minha para sempre.
26 Inês não conseguiu resistir à doce pressão daqueles braços que a retinham para o amado, para ele somente, e, enquanto D. Pedro a beijava, reiteradamente, embora trêmula de emoção, Inês reconheceu que, daquele momento em diante, os dois, ele e ela, estavam ligados um ao outro para sempre.
Inês de Castro
E, inspirada pelos diálogos dos tempos felizes, acima transcritos, Inês se propôs a trabalhar, ao lado de Isabel, para apagar em Pedro as ideias de vingança.
Já em julho, poucos meses após a perda da companheira, D. Pedro, os nobres que o acompanhavam, vindos de Coimbra, ( † ) com o exército mal organizado, porém numeroso, e os cunhados, Fernando ( † ) e Álvaro, ( † ) descendo da Galiza, ( † ) sitiaram o Porto. ( † )
Segundo se depreende das crônicas da época, se conquistassem a cidade, estariam em posição bélica vantajosa com relação ao exército do rei. O futuro seria de difícil previsão, mas certamente a destruição e as mortes abateriam profundamente a gente lusitana.
O guardião do Porto, como já se falou, era Álvaro Pereira, ( † ) apoiado pelos seus frades soldados. Digno e querido por todos, dedicava a D. Pedro amizade antiga e fraternal. Um de seus filhos, Nuno Álvares Pereira, ( † ) seria, para orgulho do reino, o herói da Batalha de Aljubarrota ( † ) em 1385, consolidando o início da dinastia joanina.
Dizem os escritos que, para despertar no príncipe revoltado os sentimentos mais nobres, Álvaro Pereira colocou vários Pavilhões Nacionais, retirados às embarcações costeiras, sobre desprotegidas barricadas, que mandara levantar em defesa da cidade do Porto, no intuito de sensibilizar o amor pátrio do amigo invasor.
As reiteradas intervenções espirituais da Rainha Santa e também a constante presença de Inês — agora distante dos impulsos de revolta que a envolveram meses antes — haviam transformado Pedro. Caminhando para os 36 anos, já o vemos mais calmo e amadurecido, cada dia menos envolvido com os propósitos desesperados de confrontar o pai.
A atuação de sua mãe, D. Beatriz, ( † ) até então aparentemente apagada no que se refere ao episódio, buscando sensibilizar o filho; as ponderações de Álvaro Pereira e as constantes lembranças dos tempos que passara com Inês na Quinta dos Canidelos, ( † ) que insistentemente não lhe saíam da memória, levaram D. Pedro a entrevistar-se com D. Afonso, ( † ) também ansioso pela paz.
Com surpresa para seus seguidores, que desejavam o conflito, foram lavradas as Pazes de Canaveses, ( † ) juridicamente respaldadas na legislação da época, a cinco de agosto de 1355, na presença de respeitáveis testemunhas.
O documento continha recíproca concessão de ambas as partes e sepultou um melancólico capítulo da história de Portugal.
Foram perdoados os agressores de Inês de Castro (será?), prevaleceu o respeito à autoridade real, e a Justiça do reino passou às mãos de D. Pedro. ( † ) Aliás, não lhe falara Isabel sobre justiça, mesclando aos interesses da Nação os valores espirituais?
Ressalte-se que a aplicação da justiça em seu reinado de dez anos, ainda que com excessos e arbitrariedades, foi sua maior preocupação, ao lado da paz, o que levou o cronista Fernão Lopes a dizer, a respeito, que tempos como tais nunca houvera em Portugal.
Caio Ramacciotti
[1] Diogo Lopes Pacheco, ( † ) Álvaro Gonçalves ( † ) e Pero Coelho. ( † )